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Escrever é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se

sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocado. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada

(Clarice Lispector).

Resgatando o processo formativo das alunas, traremos algumas considerações que emergiram das análises feitas acerca do trabalho investigativo desenvolvido durante quatro semestres, em especial o primeiro, com as alunas do curso de Pedagogia..

Comumente encontramos uma defasagem no que se refere às bases conceituais da matemática entre os estudantes de Pedagogia, o que nos levou a considerar importante desenvolver o trabalho da disciplina relacionada ao ensino e à aprendizagem de matemática, a partir da retomada de conceitos essenciais. Entendemos que isso auxiliou na organização didático-metodológica das pedagogas em formação.

O recurso da escrita das narrativas no contexto da formação inicial de professoras que vão ensinar matemática para os anos iniciais mostrou-se como fator que desencadeou nas alunas o conhecimento de si acerca de saberes sobre as operações aritméticas e potencializou-os para a construção de saberes docentes.

A impressão inicial das alunas acerca de ser a matemática uma ciência pronta foi sendo desconstruída à medida que participavam das práticas reflexivas e podiam explorar e investigar, utilizando-se dos recursos que já possuíam e incorporando outros que adquiriam na relação com as colegas. As ansiedades primeiras foram sendo dizimadas. No percurso, foram refletindo a respeito das vivências iniciais que as envolveram nas séries do ensino básico e que iam ao encontro do que se refere Bishop (1999), ao escrever:

o currículo dirigido ao desenvolvimento de técnicas está formado por procedimentos, métodos, atitudes, regras e algoritmos que dão uma

imagem da matemática como uma matéria baseada no “fazer”. Isto é, as matemáticas não se apresentam como uma matéria de reflexão. Não são uma maneira de conhecer. Naturalmente, dentro desse currículo é necessário pensar, mas é um pensamento limitado e reduzido, relacionado com a adoção do procedimento adequado, o emprego do método correto de solução, o seguimento de regras e a obtenção de resposta correta. Portanto, trata-se de um currículo em que “a prática leva a perfeição” mediante exemplos que se devem imitar e exercícios que se devem concluir (p. 24, tradução nossa, grifos do autor). 14

Como pudemos perceber, as dificuldades que as alunas sentiam, relacionadas aos conceitos aritméticos, ou as defasagens sentidas no percurso inicial de sua aprendizagem, refletiam na preocupação com a futura prática de professoras, aquela que começava a ser configurada no momento de formação do curso de Pedagogia. Os cenários de investigação constituíram-se importante estratégia para os momentos das cooperações investigativas e foram recursos úteis para a superação dos limites das alunas envolvidas, auxiliando-as a compreender o que sabiam e a (re)significar os conceitos para a construção de saberes pedagógicos.

O cenário investigativo, como descrito por Alrø e Skovsmose (2006), solicitava que as alunas aderissem ao processo investigativo. E elas aceitaram o convite, tanto da professora-pesquisadora quanto do cenário, e estabeleceram entre si relações de coleguismo que proporcionaram a aprendizagem.

Aceitar um convite depende da natureza do convite (a possibilidade de explorar e explicar assuntos de matemática pura pode não ser muito atrativa para muitos alunos); depende do professor (um convite pode ser apresentado de várias formas e, para alguns alunos, um convite partindo do professor pode parecer uma ordem); e certamente depende dos alunos (eles podem ter outras prioridades no momento (ALRØ; SKOVSMOSE, 2006, p. 57-58).

As alunas perceberam-se incluídas num grupo em que era possível fazer emergir o que já sabiam sobre matemática. Nesse ambiente, errar era permitido, e o erro tornava-se recurso para a aprendizagem. Sentiam-se impelidas a (re)significar conceitos já aprendidos para utilizá-los nas práticas cotidianas e nas ações de professoras que irão ensinar matemática. Tudo isso permitiu que se percebessem produtoras de

14 “El currículo dirigido al desarrollo de técnicas está formado por procedimientos, métodos, aptitudes,

reglas y algoritmos que dan uma imagen de las matemáticas como uma matéria baseada em el ‘hacer’. Es decir, lãs matemáticas no se presentam como uma matéria de reflexión. No son uma manera de conocer. Naturalmente, dentro de este currículo es necesario pensar, pero es um pensamiento limitad y constreñido, relacionado com la adopción del procedimiento adecuado, el empleo del método correcto de solución, el seguimiento de reglas y la obtención de la respuest correcta. Por lo tanto, se trata de um currículo em el que ‘la práctica lleva a la perfección’ mediante ejemplos que se debem emular y ejercicios que se deben

conhecimentos matemáticos. Ou seja, começaram a sentir-se engajadas e incluídas nos aspectos referentes à educação matemática, confiando no que sabiam, e passaram a construir novos conhecimentos matemáticos, mudando de uma relação aversiva para outra favorável.

Mas essa adesão ao trabalho, por prescindir de regras prescritivas como aquelas comumente usadas na elaboração de exercícios tradicionais que envolvem o ensino de matemática, passou por momentos de desânimo e turbulência. Foi necessário que nos mantivéssemos atentos e em constante interação com a turma, verificando os caminhos trilhados, as dificuldades, reorganizando os rumos, quando necessário, incentivando a persistência investigativa.

Assumir outras práticas que não as tradicionais, para ensinar ou para provocar a aprendizagem das operações fundamentais no contexto escolar, proporcionou às alunas uma maior segurança no conteúdo matemático e nas próprias ações para realizar os cálculos e a compreensão dos porquês das etapas de realização de tais operações. Perceberam que não é natural que todos resolvam da mesma forma os algoritmos das operações fundamentais. Por isso mesmo, foi importante que as alunas buscassem seus próprios recursos para tais cálculos, ao invés de tão-somente os resolverem a partir da transmissão das práticas sociais e históricas impregnadas no cotidiano escolar. Valorizamos os processos pessoais de apropriação do cálculo escrito, sem a intenção de categorizá-los como fáceis ou difíceis, mas de perceber que se tratava de “categorias relativas às características e finalidades do sujeito que se apropria dessa prática e às condições sob as quais ocorrem os processos de apropriação.” (SOUZA, 2004, p. 185).

No processo investigativo, coube a cada aluna apropriar-se da prática que julgou mais conveniente na realização do cálculo escrito. Foi preciso partir da superação do algoritmo tradicional, utilizado com ausência de sentido, o que foi feito a partir do que podemos chamar de liberdade para trabalhar com as situações propostas, desenvolvendo a autonomia de estratégias que favorecem a aprendizagem. Ou seja, promovia-se uma desnaturalização do processo de transmissão dos algoritmos, a partir da realização das operações, utilizando diferentes recursos: o cálculo mental; os diferentes processos escritos aritméticos; as propriedades das operações, ainda que de forma intuitiva. Tornava-se possível vislumbrar alternativas diferentes de aprender e ensinar matemática no espaço da escola fundamental que não as dos algoritmos tradicionais. Tais ações, desenvolvidas no interior das práticas reflexivas exploratório-investigativas, a partir da possibilidade de discussão entre as alunas integrantes dos cenários de investigação,

proporcionaram a constituição de professoras de matemática para os anos iniciais que desenvolveram sua autonomia na produção de estratégias para ensinar e aprender matemática.

Todo o percurso foi permeado pelo esforço das alunas, muito em função de que as instigávamos a utilizar recursos com os quais não estavam habituadas. Como exemplo, retomamos o registro escrito do raciocínio mental contado para outra pessoa: tanto aquela que relatava seu processo de cálculo quanto a outra aluna que interpretava e precisava registrar a partir da escrita o pensamento da colega precisaram dedicar-se com afinco. Em alguns momentos havia dificuldade de uma e de outra parte, mas perceberam que, ao relatarem seus processos e ouvirem os dos colegas, emergia uma diversidade de possibilidades para um mesmo cálculo. Na relação com as colegas, surgiam formas diferentes de fazer a mesma conta e de respeitar pensamentos

diferentes. E é legal que todas nós possuímos dificuldades, mesmo que sejam diferentes. Aí verificamos que nossos pensamentos são importantes (Geovana).

Nos momentos da confecção e socialização dos cartazes, novamente era possível compreender os procedimentos tradicionais dos algoritmos e superá-los, utilizando algoritmos produzidos por alunas ou grupos delas. O registro escrito mais uma vez se manifestava fundamental. Nas narrativas das alunas, encontramos registros de que a escrita lhes causava tranqüilidade, pois proporcionava a explicação de dúvidas e impulsionava-as a conquistar novos horizontes. A partir dessas experiências, dirigiam outros olhares para as práticas das salas de aulas do Ensino Fundamental que freqüentavam durante os estágios e procuravam tecer caminhos diferentes para a futura prática docente.

Também a utilização de materiais didáticos e dos jogos configurou-se para as alunas em importante estratégia. Pelos relatos das alunas, poucas tinham experiências anteriores com esses recursos. Mesmo nas práticas de estágio, raramente observavam o uso de materiais didáticos. Os materiais que conheceram e utilizaram nas aulas da Pedagogia não consistiam em nada de complexo, caro ou de difícil acesso. Conforme vivenciaram nas atividades no decorrer do semestre, o manuseio dos materiais proporcionava uma concretização das estratégias utilizadas para a resolução dos cálculos aritméticos. A utilização do material dourado e do ábaco estimulava a compreensão para o algoritmo tradicional das operações aritméticas e também favorecia a organização de outras estratégias e recursos para o cálculo mental e escrito. O manuseio dos materiais nessa etapa da formação permitia ainda ampliar os recursos

didáticos que podem ser utilizados no ensino e na aprendizagem da matemática.

Talvez as professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental tenham desconhecimento dessas práticas ou ainda lhes falte incentivo para a sua utilização. A experiência que realizamos e retratamos neste trabalho mostra um possível caminho para a reversão desse quadro: investir na mudança programática e metodológica das disciplinas específicas do Curso de Pedagogia e em programas colaborativo- investigativos de formação em serviço.

Com tais considerações, queremos dizer que nossa pesquisa trouxe evidências concretas de que a reflexão sobre as práticas passadas durante o curso de Pedagogia proporcionaram a construção de conhecimento dos processos aritméticos. Ou seja, foi fundamental a reflexão que fizeram sobre os procedimentos que utilizavam, sobre as formas de operar e sobre outras possibilidades.

A relação que construímos no percurso da pesquisa foi marcada por intensas relações entre as alunas e entre estas e a professora/pesquisadora. No processo de ensino-aprendizagem, buscamos contribuir para a construção de um projeto educativo que visava, além da (re)construção de saberes aritméticos, a construção de saberes/processos para ensinar matemática. As ações que se deram foram permeadas por investigações e, nesse sentido, cooperações de aprendizagem entre todas as envolvidas foram estabelecidas.

Nesse contexto, convém destacar dois aspectos indicados por Tardif (2002, p. 255): “a epistemologia da prática profissional e o saber profissional”. Há um conjunto de saberes que são utilizados pelos professores durante as suas aulas, quando desempenham suas tarefas (epistemologia da prática profissional). Mas o saber profissional tem “um sentido mais amplo que engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes, isto é, aquilo que muitas vezes foi chamado de saber, saber-fazer e saber-ser.” (TARDIF, 2002, p. 255).

Muito embora a maior parte das alunas ainda não tivesse experiência docente, já possuía algumas experiências de atuação na escola através de estágios e também das memórias que buscavam de suas aprendizagens iniciais. Teciam relações entre as suas experiências enquanto alunas do Ensino Fundamental e aquilo que viam em seus estágios e experienciavam nas aulas do curso de Pedagogia. Na tentativa de favorecer reflexões acerca dessas diferentes vivências, buscamos assumir uma postura de educação crítica, sendo possível que o vivido e o observado fossem utilizados para a construção dos novos conhecimentos. Isso proporcionou a cada aluna assumir sua

responsabilidade no processo ensino-aprendizagem e também buscar a compreensão da realidade escolar, construindo saberes para nela intervir.

Pelo exposto, as narrativas constituíram uma prática bastante valorizada pelas alunas. Perceberam que sua utilização proporcionava o desenvolvimento dos aspectos já vivenciados, desde o (auto)conhecimento de cada uma a respeito das suas potencialidades, passando pelos processos de investigação das operações aritméticas básicas e possibilitando algumas (re)invenções de caminhos pedagógicos relacionados à matemática. As alunas, em suas narrativas, descreviam experiências a respeito do que estavam trabalhando; escreviam suas preocupações; compartilhavam situações com as colegas numa linguagem prática; encontravam-se nas narrativas das outras; observavam ou discutiam as certezas e as dúvidas. Tudo isso permitiu a construção ou a derrubada de argumentos elaborados no percurso das investigações.

Enfim, o que depreendemos das narrativas das alunas e das reflexões acerca do percurso vivenciado leva ao entendimento de que a escrita de si pode proporcionar auxílio à constituição do professor que vai ensinar matemática para os anos iniciais do Ensino Fundamental. Ao escreverem e socializarem suas ações, percebiam, como destacado por algumas alunas, que os conhecimentos e as experiências se cruzavam, ocorrendo trocas que se complementavam. Isso permitiu que mudassem suas concepções sobre ensinar e aprender matemática. Trazendo novamente o registro de uma das alunas, encontramos: Nunca poderia imaginar que essa matéria poderia ser

dada/aprendida dessa forma. E um ponto importante é sistematizar, registrar para refletir o que aprendemos.

Em conformidade a Freitas e Fiorentini (2007), foi possível verificar que a interação e a comunicação potencializadas pelo diálogo são ingredientes fundamentais nos ambientes de aprendizagem, sobretudo quando permeadas pelas narrativas: “A narrativa, neste contexto, coloca em foco o contar sobre o processo de produção de conhecimento em busca de explicitar ou clarificar idéias e conceitos.” (p.64).

Vivenciamos experiências nos ambientes de uma disciplina relacionada ao ensino e à aprendizagem de matemática que deram oportunidade para que as incompreensões das alunas viessem à tona, o que permitiu a exposição de suas angústias e ansiedades e proporcionou a interlocução entre as vidas dos participantes e de seus ambientes socioculturais. Tudo isso se mostrou ingredientes essenciais para a constituição do professor. Ao investirmos na compreensão das percepções das alunas e nas suas concepções a respeito dos conteúdos matemáticos que vão ensinar e das