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O luto materno e o sofrimento da família

1.2 LUTO

1.2.3 O luto materno e o sofrimento da família

A maternidade é definida como a suprema capacidade criativa do ser humano. Deve ser compreendida desde a fecundação até quando termina o desenvolvimento infantil. Após a infância, a maternidade continua e representa a transcendência por intermédio dos filhos,89 em

sentido individual, da nova geração social.

O amor materno é a expressão afetiva direta da relação positiva com o filho, sendo sua principal característica a ternura. Essa pesquisa dá destaque ao luto materno principalmente porque, atualmente, apesar da expectativa de vida elevada e do progresso constante das técni- cas médicas, os dados estatísticos revelam a triste realidade de que a morte está atingindo muitos jovens e adolescentes, estando esses números principalmente relacionados com aci- dentes de trânsito e mortes violentas, como homicídios e suicídios.90

Para os representantes da UNESCO,91 embora os jovens sejam a parcela da população mais vulnerável à violência em todo o mundo, consideram-se os índices muito altos. Defende-

89 Para facilitar a leitura, a palavra filho(s) é usada para se referir aos dois gêneros: masculino e feminino. 90 Cf. RODRIGUES, C. F. Adolescentes: vidas interrompidas: por que é tão importante falar de morte com eles?

In: ______. (Org.). Morte e existência humana: caminhos de cuidados e possibilidades de intervenção. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008, p. 21-24.

91 UNESCO: The United Nations Educational Scientific and Cultural Organization, traduzido para o português

como: Organização das Nações Unidades para a Educação, Ciência e Cultura. (Cf. WAISELFISZ, J. J. Mapa da

violência no Brasil 2012: os novos padrões da violência homicida no Brasil. 2011. A pesquisa: O mapa da vio- lência de 2012, reconhecido pelo IBGE, apresenta os padrões da violência homicida no Brasil, sendo os resulta-

dos alarmantes. Em 2010, cerca de 73,2% das mortes de jovens brasileiros ocorreram por razões violentas, ao mesmo tempo que entre os não jovens esse percentual nem alcança 10%. A proporção de mortes por homicídio e acidente de trânsito é altíssima entre os jovens, uma das maiores da América Latina. Segundo a pesquisa, as mai- ores vítimas de morte violenta são jovens com idade entre 15 e 24 anos. No Brasil, a porcentagem de mortes por assassinato (nessa faixa etária) é 170% maior do que a de qualquer outra faixa etária. A probabilidade de um jo- vem brasileiro ser vítima de homicídio é 30 vezes maior que a de um jovem europeu e 70 vezes maior que a de um morador ma Inglaterra, na Áustria ou no Japão. Em relação à violência na Serra Gaúcha, pesquisa do IBGE mostra que a morte de jovens com idade entre 15 e 24 anos aumentou em Caxias do Sul, comparando dados de 2010 e 2005. Conforme o estudo do IBGE sobre Registro Civil em 2010, das 2.882 mortes registradas em Caxias do Sul, 313 foram mortes violentas, como acidentes de trânsito, afogamentos, suicídios e homicídios. Jovens com

se a necessidade de intensificar os programas de prevenção, como políticas de emprego, es- portes e cultura.

O pensamento de Kübler-Ross ratifica as pesquisas e a opinião da UNESCO. Segundo ela, na atualidade, não se veem tantos jovens morrendo de doenças, mas os vemos morrer por suicídios, acidentes, uso de drogas e homicídios, tornando urgente e necessária uma reflexão sobre as causas dessas formas de morte de jovens.92 No entanto, de modo particular, são as famílias as mais atingidas por essa morte escancarada,93 que, num instante, desmorona so-

nhos e o equilíbrio de pais, mães e irmãos com a notícia de uma morte violenta.

Quanto à morte de um filho, se poderia pensar que, para as mães que os perdem, prin- cipalmente quando adultos, o luto seria menor do que quando ocorre a morte do parceiro. Po- rém, segundo Parkes, as evidências clínicas e pesquisas comparativas mostram exatamente o contrário. “Para a maioria das pessoas do mundo ocidental, a morte de um filho é a fonte de pesar mais atormentadora e dolorosa.”94

A perda de um filho adulto resulta em luto intenso, mais persistente e em maior de- pressão do que a perda do cônjuge, de pais ou irmãos. Pesquisadores relatam que toda morte de um filho é traumática, e que não existe diferença entre o luto de pais e mães cujos filhos morreram de doenças crônicas e o daqueles cujos filhos morreram em acidente.

Ainda se constata o fato de que a maioria das mães que perde um filho é atingida pela dor como de uma mutilação. Assim, na literatura sobre o luto, os autores afirmam que, embo- ra se possa reagir de modo semelhante a todas as perdas, o luto pela morte de um filho é, em geral, o mais intenso. O padrão de respostas de uma mulher diante do luto materno pode ter muito em comum com a morte do cônjuge. Mas quaisquer que sejam as semelhanças entre os diferentes tipos de vínculo, cada um tem as suas singularidades. “Toda perda gera um grande sofrimento. Sofrimento indescritível quando se trata de um filho. A mãe se questiona sobre o que fará sem seu filho. Foi esperado e acalentado. Havia sonhos e expectativas.”95

idade entre 15 e 24 anos representam 20,7% das vítimas de mortes trágicas. O número de jovens que perderam a vida de forma violenta foi 27,4% maior do que em 2005, considerando a mesma faixa etária.

92 Cf. KÜBLER-ROSS, E. A roda da vida: memórias do viver e do morrer, p. 41.

93 Termo usado por Kovács para tratar da morte violenta. Esse conceito já foi abordado anteriormente. 94 PARKES, C. M. Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações, p. 191.

O aspecto mais comum e mais frequente observado na mãe que perde um filho é a ambivalência. A ambivalência nas relações anteriores entre mãe e filho inibe o processo do luto, causando culpa e raiva na mãe enlutada.

O narcisismo96 é outra causa das complicações no processo do luto, porque a pessoa

morta, neste caso do luto materno, representa uma extensão do próprio ego. Admitir que a perda do filho representa uma perda de parte de si mesma é muito difícil para a mãe enlutada.97

O sofrimento e as reações à perda é tão desestruturante que, muitas pessoas, ao volta- rem para casa, não sabem como agir.

Mesmo com muitas mudanças na configuração familiar na contemporaneidade, a Psi- cologia Sistêmica conceitua família como um sistema movendo-se através do tempo, com papéis, funções e relacionamentos insubstituíveis.A família é uma unidade, um todo em que seus membros se influenciam reciprocamente e compartilham algumas crenças, valores, tare- fas, segredos ou intimidade, um espaço físico e emocional. Esse sistema tem ciclos, que po- dem ser facilitadores ou dificultadores na aceitação de mudanças, dentre elas, as perdas. Pode acontecer a ocorrência de acontecimentos contraditórios ao mesmo tempo. Por exemplo: uma família com três filhos – um em fase terminal, outro casando e outro viajando para estudos. No entanto, qualquer problema, com maior ou menor intensidade, afeta todo o sistema famili- ar.98

Quando acontece uma morte na família, é praticamente inevitável que toda ela entre num abismo de tristeza que não poderia imaginar. Por não conseguir ter clareza acerca dos sentimentos e das reações, muitas coisas ficam no campo dos segredos familiares.99

96 Narcisismo é um termo muito usado na Psicologia, principalmente na Psicanálise. Retirado da mitologia grega

de Narciso, remete aos aspectos da própria imagem, do próprio eu, no caso do luto materno, causando a cha- mada ferida narcísica, pois o filho morto é uma parte do ser da mãe que se perde. (Cf. BECKER, E. A negação

da morte: uma abordagem psicológica sobre a finitude humana, p. 166-169).

97 FREITAS, N. K. Luto materno e psicoterapia breve, p. 41.

98 Cf. CARTER, B.; MCGOLDRICK, M. As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia

familiar, p. 87-91. Ao analisar a família na contemporaneidade, deve-se fazer uma redefinição da mesma, pois, atualmente, a família não obedece à composição clássica de um casal heterossexual com seus filhos, e uma família extensa com avós, tios e primos. Por isso, deve-se ampliar o conceito de família como referida aos vínculos de sangue e aos vínculos legais através do casamento (parentes legais), para incluir aquelas pessoas que constituem a rede de apoio, cuidado e vínculos emocionais mais próximos, com quem se compartilha a vida cotidiana.

99 Expressão muito usada na Psicologia Sistêmica para indicar que várias coisas poderiam ser ditas e esclarecidas

na família, mas que permanecem latentes. A revelação de certos segredos familiares poderia trazer maior desconforto e desequilíbrio no sistema familiar.

Segundo Parkes, há evidências de sérias dificuldades conjugais em um terço dos casais após a morte súbita de um filho. A mãe que está em desespero precisando de apoio emocional pode perceber o marido lidando com seu pesar de modo evitador.100 Consequentemente, rea- ções de raiva também podem destruir a família, sobretudo quando as pessoas culpam umas às outras, com ou sem razão, pela perda.

“Em particular, parece provável que a combinação de ansiedade e ambivalência na mãe e evitação do pai vai estar associada a altos níveis de conflito conjugal, de pesar, e sofri- mento emocional na mãe após a morte do filho.”101

É necessário levar em conta que cada membro reage e vivencia de modo diferente as fases que envolvem a perda. As mães enlutadas costumam exaltar as qualidades do filho fale- cido, gerando certo mal-estar nos demais filhos que se sentem deixados de lado, como se mais ninguém tivesse qualidades.102

No luto por suicídio, as reações e sentimentos mais comuns dos membros da família são a vergonha relacionada ao estigma, culpa ligada à responsabilidade, raiva por se sentir rejeitado e medo quanto aos próprios impulsos destrutivos. Há uma tendência, tanto da mãe quanto dos demais familiares, de se manterem calados. O silêncio causa grande amargura. É por vivenciar esses sentimentos que a família precisa de um espaço de escuta e acolhimento para que possa elaborar o processo de luto.103

Para conseguir reestruturar a vida familiar, é valioso dispor de uma rede de apoio de pessoas amigas que visitem e encorajem a família enlutada. De acordo com Keller,104 algumas pessoas formam uma rede de proteção gentil e habilidosa, ocasião em que se pode chorar e falar sobre o filho falecido.105 Esse tipo de ação pode ser considerado um fator que favorece a pessoa enlutada a tornar-se mais resiliente perante a situação de sofrimento.

100 Cf. PARKES, C. M. Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações, p. 192. 101 Ibid., p. 193.

102 Cf. FREITAS, N. K. Luto materno e psicoterapia breve, p. 48.

103 Cf. MELEIRO, A.; BOTEGA, N.; PRATES, J. G. Manejo das situações ligadas ao suicídio. In: MELEIRO,

A. (Org.). Suicídio: estudos fundamentais. São Paulo: Segmento Farma, 2004, p. 175-192.

104 A autora relata sua experiência por ter perdido um filho. Ela testemunha a importância de ter uma rede de

apoio para não se fechar em si e, ao mesmo tempo, poder expressar seus sentimentos e necessidades.

105 Cf. LAMANNO-ADAMO, V. A família sob impacto. In: BOTEGA, N. J. (Org.). Prática psiquiátrica no