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3.5 Análise de processos trabalhistas movidos por estagiários

3.5.1 Metodologia de análise e esclarecimentos

Como já foi dito neste estudo, a Justiça do Trabalho não tem um controle do número de processos por faixa etária e isso impossibilita mensurar o número de jovens que recorrem à Justiça do Trabalho. Então, focou-se a análise dos processos nos processos de estagiários, visto que muitas vezes eles são jovens.

Os processos analisados se referem à legislação de estágio anterior (modificada em 2008), pois são do período entre 2000 e 2005 e isso implica que os direitos garantidos aos estagiários são menores dos que foram disponibilizados a partir da nova lei. Por exemplo, a nova lei do estágio garante o direito ao recesso remunerado de um mês após um ano de estágio. A discussão da nova lei do estágio foi feita no capítulo 2 e suas implicações na visão de jovens e juízes serão realizadas nos capítulos 4 e 5.

Para essa análise foram selecionados 21 processos trabalhistas de estagiários, sendo 12 do TRT

da 4ª Região e 9 do TRT da 2ª Região64, e esses processos foram analisados de forma qualitativa

e a partir de um olhar sociológico, sem que fossem levadas em conta especificidades jurídicas. O número de processos se deve ao fato da amostra ter sido delimitada e os processos para serem

64 O número de processos iniciados e julgados no TRT da 2ª Região é superior aos do TRT da 4ª Região, mas no

TRT da 2ª Região somente nove processos estavam disponíveis para a pesquisa, seguindo os critérios exigidos para esse estudo.

aceitos tinham que ter certas características: terem se iniciado entre 2000 e 2005; os reclamantes deveriam ter entre 15 e 24 anos e todos deviam ter chegado ao menos a segunda instância (TRT),

ou seja, deveria ter se dado ao menos um recurso65. Apesar do número de processos analisados

não ser extenso eles fornecem uma série de questões que permitem pensar o objeto de pesquisa. Teve-se, em relação a esses processos, além de um olhar sociológico um olhar crítico.

Parte dos processos se refere a jovens com idade entre 20 anos e 24 anos, sobretudo nos processos do TRT da 4ª Região, sendo que em boa parte dos processos os estagiários eram solteiros.

O primeiro procedimento para a realização da análise dos processos foi a leitura dos mesmos, que em média tinham 300 páginas e duraram pelo menos 3 anos. Após isso, foram feitas fichas de leitura dos processos. Essas fichas fazem uma descrição do que aconteceu no processo, inclusive com informações referentes aos estagiários (reclamantes) e as empresas (reclamadas) em que eles atuaram.

Com a leitura dos processos e a elaboração das fichas de leitura, várias questões chamaram a atenção, especialmente aquelas relacionadas às condições em que o estágio era realizado e à atuação das empresas durante o estágio. Outras questões que também merecem destaque foram os argumentos de estagiários e de empresários para justificar a validade do estágio.

Além disso, a análise dos processos levou em conta a atuação da Justiça do Trabalho e os argumentos utilizados pelos juízes para considerar o estágio válido ou mesmo para entender que não havia estágio e que deveria ocorrer o reconhecimento do vínculo empregatício.

Quando se analisa os processos, são conseguidas várias informações relevantes acerca do ingresso dos jovens no mercado de trabalho através de estágio. Essas informações indicam tanto que o estágio pode ser um meio de adquirir conhecimentos práticos na área de formação do jovem, quanto um mecanismo de precarização utilizado pelas empresas para substituir trabalhadores formais por estagiários.

Nesses processos, constam as seguintes informações: a idade e cidade de residência do estagiário; o tipo de empresa em que o estágio foi realizado; o período em que o estágio foi

65 “Por uma série de circunstâncias estão as questões submetidas aos Tribunais sujeitas ao duplo grau de jurisdição,

em razão do qual é possível o reexame da sentença por um juízo superior. Daí a utilização do recurso, que no sentido jurídico, significa o meio de que se vale a parte para o reexame da sentença que lhe tenha sido total ou parcialmente desfavorável” (ALMEIDA, 2001, 281-282).

realizado; a participação de um Agente de Integração (se houver); a área que o estágio foi realizado; e o valor da bolsa-auxílio do estágio (se houver).

Há também, registradas nos processos, as demandas dos estagiários na Justiça do Trabalho, sendo que a principal delas é a solicitação de reconhecimento do vínculo empregatício. No processo podem existir informações que indiquem que houve desvirtuamento do estágio, tais como a relação das atividades realizadas no estágio com a área de formação do jovem, a realização de horas extras, o acompanhamento da instituição de ensino ao estágio realizado por seu estudante.

As categorias de análise criadas para a discussão dos processos são as seguintes: 1) escolaridade; 2) tipo de empresa em que o estágio era realizado; 3) condições em que o estágio era realizado; 4) características de gênero, como a possibilidade de gravidez das jovens; 5) se houve acordos e decisões da Justiça do Trabalho.

Os processos permitem refletir sobre a efetividade do acesso aos direitos no Brasil. De acordo com Nardi (2006), a lei brasileira afirma a existência de direitos, mas o Estado não torna esses direitos reais. Tanto é que Zaluar (1994) assinala que existe um abismo entre o Brasil legal e o Brasil real, ou seja, entre a lei e a sua aplicação há uma grande distância, o que afasta da população uma série de direitos. Assim, “quando o Estado se faz presente, o faz na forma da força, da violência policial e da estigmatização da população pobre” (NARDI, 2006, p. 147).

O estagiário66 que ingressa com ação na Justiça do Trabalho tem algum conhecimento da

legislação de estágio e de seus direitos como estagiário. Mas não se pode negar que esse jovem que recorre à Justiça do Trabalho pode sofrer influências de advogados, familiares e até de outros jovens, inclusive daqueles que já procuraram a Justiça do Trabalho e tiveram decisões favoráveis para os seus processos. A discussão do capítulo anterior, acerca das condições encontradas pelos jovens no mercado de trabalho, traz elementos para a reflexão sobre a situação dos estagiários. E os processos indicam que a precariedade faz parte do cotidiano dos jovens no mercado de trabalho.

Além disso, as ações trabalhistas indicam que os jovens questionam não apenas os estágios, mas também o mercado de trabalho que muitas vezes oferece a eles situações

66 Um estagiário que era estudante de Turismo ingressou com uma ação cível reivindicando danos morais, pois,

durante o estágio realizado em uma prefeitura do interior do Rio Grande do Sul ele criou um logotipo para uma festa regional e nesse logotipo não havia qualquer menção de autoria. Após ter tido decisão favorável na primeira instância na Justiça Civil, a decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e ele recebeu R$ 2 mil como indenização. Disponível em http://www.espacovital.com.br/noticia_ler.php?id=20391. Acesso em 03/09/2010.

desfavoráveis no que tange à inserção, à condições de trabalho e à remuneração. Os processos demonstram também que os estagiários não conseguiram por meio do diálogo com o empregador alterar certas situações vivenciadas no estágio, por isso a solução vista por eles foi procurar a Justiça do Trabalho e esperar que ela resolvesse os problemas do estágio. Outro aspecto relevante mostrado pelos processos é a grande heterogeneidade das condições de escolarização e trabalho vivenciadas pelos jovens. Como afirma Gonzalez (2009), essas condições interferem no momento de ingresso dos jovens no mundo do trabalho.

Uma parte dos jovens que encontra estágios desvirtuados pode deixar de recorrer à Justiça do Trabalho por considerar que essa precariedade é temporária e que faz parte do percurso no mercado de trabalho e do destino dos jovens trabalhadores. Além disso, não existem no país movimentos de estagiários que questionam o desrespeito a seus direitos e o que vigora é a ideia de que o estágio desvirtuado é um problema individual, tal como se percebe nos processos, pois a luta é individual apenas pelo seu direito a ter garantido o reconhecimento do vínculo empregatício devido a um estágio desvirtuado.

Outras solicitações dos estagiários na Justiça do Trabalho foram o recebimento das verbas rescisórias (aviso prévio, férias, 13º salário), do FGTS e até o direito a receber diferenças salariais, uma vez que consideravam que no ‘falso estágio’ recebiam valores inferiores ao do piso da sua categoria profissional. Mas esses direitos só são garantidos aos estagiários se houver o reconhecimento do vínculo empregatício.

Não se pode negar que, nos processos analisados, fica evidente que, na Justiça do Trabalho, ocorre o conflito capital – trabalho e que cada um dos grupos defende seus interesses utilizando diversos argumentos, alguns até bem diferentes e radicais. Em um dos processos analisados, um dos argumentos do estagiário era o de que as empresas se aproveitam da imaturidade dos jovens para oferecer estágios que nada condizem com o que determina a legislação. Por outro lado, algumas empresas argumentavam que não poderiam ser condenadas com o reconhecimento do vínculo empregatício do estagiário, pois tinham feito uma atuação social de grande importância ao contratá-lo. Percebe-se que, no argumento dessas empresas, existe até um tom de ameaça ao dizerem que, caso sejam condenadas, não contratarão mais estagiários e, assim, deixarão de ajudar tanto os jovens como a sociedade. Alguns advogados defendem que as empresas fazem um 'bem' para a sociedade ao contratar estagiários e que essa é uma ação de responsabilidade social e de comprometimento com a sociedade. Exemplo disso é o

discurso do advogado de uma empresa, em um Recurso para o TRT da 2ª Região, após ter tido decisão desfavorável na Vara do Trabalho. Segue os argumentos desse advogado e da empresa que ele representava.

“Punir uma empresa que demonstra não só responsabilidade jurídica por observar a risca todos os ditames legais para a admissão de estagiários, bem como responsabilidade social, por contribuir com função precípua do estado, de inserir o jovem no mercado de trabalho, não traduziria a melhor forma de direito, o direito social. A contratação de estagiários traduz a preocupação de uma empresa responsável socialmente, que contrata anualmente, a título de estágio, de 20 a 30 pessoas, o que após o presente processo pode deixar de ocorrer” (pág. 99 do processo).

Esse discurso tem como objetivo colocar para segundo plano qualquer discussão sobre como as empresas utilizam os estagiários e se elas respeitam a legislação do estágio, pois o enfoque está na ideia de que o mais importante é o auxílio da empresa aos jovens e a possibilidade dadas a eles de uma oportunidade de estagiar.

Contratar estagiários é uma ação de responsabilidade social das empresas ou uma forma de ter mão-de-obra qualificada a baixo custo sem pagamento de direitos trabalhistas? Não se pode negar que existem empresas e órgãos públicos que respeitam os estagiários e seus direitos, contudo, muitas empresas e até órgãos públicos veem os estagiários como mão-de-obra a ser precarizada e utilizada como se fosse mais um trabalhador, sem valorização alguma ao processo de aprendizagem do estagiário.

Vale ainda salientar que muitos empregadores veem os jovens que procuram a Justiça do Trabalho como indivíduos que não devem ser contratados, maus exemplos para outros trabalhadores e até como aproveitadores e exploradores dos patrões. E uma parte da sociedade entende que os jovens que recorreram à Justiça do Trabalho percorrem um caminho incerto, pois deveriam ter tentado dialogar com o empregador antes de procurá-la; a sociedade também concebe esses jovens como indivíduos que incentivam o conflito e levam para a Justiça do Trabalho questões que poderiam ser resolvidas fora da esfera judicial.

No caso dos processos analisados, os jovens entendem que a Justiça do Trabalho pode resolver a situação de precarização encontrada no estágio. Mas essa procura apenas se deu após o estágio, pois ingressar com ação trabalhista durante o estágio significaria ser desligado da empresa. Em todos os processos foi solicitado o reconhecimento do vínculo empregatício e,

consequentemente, o cancelamento do estágio. Os argumentos para isso são variados: englobam desde a realização de horas extras até a realização de estágios em áreas diferentes da sua formação como estudante. Os processos indicam também que muitos jovens tinham conhecimento de que realizavam estágios desvirtuados e sabiam o que garante a legislação para o estagiário .

O fato de ter encontrado um estágio desvirtuado causa certo desânimo e frustração para os jovens, pois muitos deles acreditavam que no estágio iriam ampliar os conhecimentos da teoria e teriam a possibilidade de efetivação, e com isso, a chance de ter um emprego formal. E quando a relação com a Justiça do Trabalho não resolve a desvirtuação do estágio, cresce ainda mais a frustração e nasce um sentimento de descrédito em relação à Justiça e sua atuação. Como assinala Pochmann (1998), as condições de trabalho dos jovens tendem a ser extremamente flexíveis e instáveis, sendo que não são poucas vezes em que essas condições se dão por formas ilegais e isso se verificou em vários processos analisados e nas entrevistas de vários jovens que recorreram à Justiça do Trabalho.

O modo como a Justiça do Trabalho julga um processo faz pensar em como o Estado age para combater certas práticas precarizadoras realizadas por empregadores, ou mesmo, como o Estado legitima ou torna válida essas práticas. Esse julgamento, por sua vez, acaba por influenciar a visão que a sociedade, mais especificamente os jovens têm dessa Justiça.

Quando a decisão da Justiça do Trabalho é favorável ao estagiário, há o reconhecimento do vínculo empregatício e isso significa que o período que havia sido de estágio se transforma em um período de emprego formal, em que o jovem passa a ter acesso a vários direitos trabalhistas. Assim, com o reconhecimento do vínculo empregatício, o empregador tem que assinar a Carteira de Trabalho do jovem, além de depositar o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e os seus 40% - relativos à rescisão do contrato de trabalho. O empregador também tem de pagar as verbas rescisórias (férias, 13º salário, aviso prévio) e garantir ao jovem trabalhador direitos que constam na Convenção Coletiva de sua categoria profissional.

Além disso, os processos demonstram que muitas vezes há uma grande distância entre a lei do estágio e as condições que os jovens encontram quando vão estagiar, especialmente no que tange à relação entre as atividades realizadas e a área de formação dos jovens. Assim como quanto aos casos de estágio em que há realização de horas extras, que acabam por prejudicar a ida a escola e diminuem o período que os jovens tem disponíveis para se dedicar aos estudos. Na

verdade, muitos estagiários são trabalhadores precários sem qualquer acesso aos direitos trabalhistas e utilizados pelas empresas com um único objetivo: diminuir os custos com a força de trabalho. Portanto, os processos demonstram que muitas vezes o estágio é uma relação de emprego disfarçada.

Os processos indicam que os estagiários muitas vezes são tratados como simples trabalhadores e lhes é imposto certas exigências que são exageradas, tais como cumprir metas de produtividade ou até mesmo de vendas, bem como realizar horas extras ou participar de programas de banco de horas. Esses fatos indicam que a aprendizagem que deveria ser o objetivo do estágio fica para segundo plano.

Mas nem sempre os estagiários têm razão no processo, como demonstra a Justiça do Trabalho. Há juízes que entendem que existe um exagero dos jovens ao procurar à Justiça do Trabalho e, ainda, reproduzem o discurso de muitos advogados de empresas, que o importante para a validade do estágio é a existência de documentação, ou seja, o Termo de Compromisso de Estágio (TCE).

Decisões como essa podem se basear em um critério de classe e decidir a favor dos interesses do mercado e dos empresários e apenas beneficiam os empregadores que desejam utilizar estagiários para diminuição de custos. Como dizia Marx, o Direito como uma forma ilusória de igualdade.

A grande seletividade imposta aos jovens pelo mercado de trabalho faz que muitos jovens avaliem antes de buscar a Justiça do Trabalho. Assim, essa seletividade faz com que muitos estagiários que encontraram a precariedade durante o estágio desistam de procurar a Justiça do Trabalho, sobretudo devido ao medo de ficar ‘marcado’ no mercado de trabalho e ter dificuldades de conseguir um emprego. Em alguns processos de seleção de emprego, uma das primeiras questões feitas aos candidatos é se eles já tiveram algum processo trabalhista.

O estágio é uma alternativa ao desemprego e uma possibilidade de ingresso no mercado de trabalho. Como muitos contratos de estágio não são renovados ou não há o processo de efetivação, existem jovens que saem dos estágios e voltam para o grupo dos desempregados e para a situação de incerteza quanto ao futuro, mesmo quando ainda continuam estudando. Assim, como diz Pochmann (2007a):

Diante da atual complexidade na transição do sistema escolar para o mundo do trabalho, cabe perfeitamente uma maior atenção do poder público, bem como de

toda a sociedade, tendo em vista o descompasso entre o que a juventude poderia ser e o que realmente é no Brasil. (POCHMANN, 2007, p. 8).

Ao discutir os processos de estagiários e a temática do emprego juvenil não se pode deixar de ressaltar que a globalização influencia na maneira que as empresas utilizam sua força de trabalho e, consequentemente seus estagiários. Como diz Ianni (1996) a globalização gerou ampla transformação na esfera do trabalho e no modo pelo qual o trabalho se relaciona com a organização social da vida do indivíduo, das famílias e das classes sociais.

Outro autor que aborda a questão dos efeitos da globalização sobre a força de trabalho é André Gorz (2004). Para ele, a globalização, aliada à intensificação da concorrência em todos os mercados de todos os países levou ao aumento do desemprego, à precarização do trabalho e à deterioração das condições de trabalho. E os jovens envolvidos nos processos já sentiram ‘na pele’ as conseqüências da globalização e das práticas empresariais para os trabalhadores, especialmente de gestão de Recursos Humanos.