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CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DOCUMENTAL

4.2 Concepções sobre surdez e políticas educacionais

4.2.3 A mobilização da comunidade surda

Ao mesmo tempo em que as políticas educacionais dos anos 90 anunciavam a tendência oficial de atrair os estudantes com surdez para as escolas regulares, as discussões sobre bilinguismo e educação bilíngue para surdos, desenvolvidas até então em círculos restritos do meio acadêmico, expandiam-se e começavam a frutificar.

Propagava-se entre pesquisadores e profissionais da Linguística, da Psicologia e de áreas afins o entendimento da língua de sinais como fundamental para o desenvolvimento da linguagem, estruturação do pensamento e construção de identidade da pessoa surda, e aprofundava-se entre educadores a compreensão de que o aprendizado da língua portuguesa, direito essencial do surdo para sua inserção social e funcional na sociedade brasileira, precisaria ser feito de forma diferenciada, como segunda língua, e após a aquisição da LIBRAS.

Nesse sentido, no Rio de Janeiro, no INES, estudos, debates e aproximações com universidades e Movimentos Sociais, realizados já havia anos por uma parcela do corpo docente e da direção da instituição, levaram a uma iniciativa, então inédita no país, de criação e implantação no Instituto de um projeto bilíngue de educação de surdos, utilizando a LIBRAS como língua de convívio e de instrução, a partir de uma pedagogia pensada para aqueles alunos. O projeto, inicialmente voltado para a Educação Infantil, visava a se estender gradativamente a todos os demais níveis educacionais, incluindo o desenvolvimento de uma metodologia do ensino da língua portuguesa escrita para surdos.

A inovação gerou conflitos e embates com professores que se mostravam resistentes à língua de sinais e inseguros dentro das novas relações (inclusive de poder) que se estabeleciam entre surdos e ouvintes. Além disso, não encontrou, na época, respaldo maior por parte do Ministério da Educação. Assim sendo, apesar de embasado em estudos e pesquisas, de ir de encontro aos anseios dos alunos, de seus familiares e de grande parte da comunidade surda, e a despeito dos bons resultados alcançados (em

81 Para esta e a próxima seção foram usados, como fontes, THOMA e KLEIN (2010), teses, dissertações, artigos e outros trabalhos acadêmicos, além de depoimentos pessoais de membros dessa comunidade (surdos, seus familiares, professores, etc.), acessados por pesquisa na Internet ou obtidos através de entrevistas.

termos de progresso cognitivo, emocional e pedagógico, entre outros ganhos) o projeto, depois de alguns anos, acabou sendo descontinuado.82

Ainda naquela década, acadêmicos do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul criaram, sob a orientação e liderança do Prof. Dr. Carlos Skliar (então professor orientador do Programa), o Núcleo de Pesquisa em Políticas Educacionais para Surdos (NUPPES) com o objetivo de potencializar pesquisas nesse campo, articulando pesquisadores e universidade com os Movimentos Surdos.

Logo de início, o NUPPES promoveu cursos de formação de intérpretes e de professores de surdos, criou fóruns permanentes de discussão e proposição de políticas e realizou, em 1999, o V Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngue para Surdos.

Semanas antes desse evento, lideranças surdas por todo o país formaram Grupos de Trabalho (GTs) para discutir questões educacionais e, de forma mais abrangente, localizar suas aspirações e seus posicionamentos dentro do campo dos direitos humanos, de forma a poder apresentá-los e defendê-los naquele encontro de educadores.83

Receando, no entanto, que durante o Congresso as discussões e decisões viessem a ser conduzidas e tomadas pela maioria ouvinte, e ancorados no princípio defendido pela então recém fundada International Disability Alliance (IDA), Aliança Internacional das Pessoas com Deficiência,84 de que nenhuma determinação formal ou deliberação sobre pessoas com deficiência pode ou deve ser gerada sem a participação de representantes desses indivíduos no processo de elaboração e tomada de decisão,

82 Para conhecimento detalhado do processo de construção, aplicação e rejeição a esse projeto, assim como de seus significados, seus resultados e suas implicações, recomenda-se a leitura de FAVORITO (2006), PEDREIRA (2006) e FREITAS (2012), entre outros.

83 Fontes diferentes (depoimentos e artigos diversos) registram entre 150 e 200 participantes surdos em GTs, reunidos nas principais cidades brasileiras de norte a sul do país.

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Entidade fundada em 1999, com sede em Genebra, a IDA é uma rede de organizações globais e regionais de pessoas com deficiências com o objetivo de promover uma efetiva e integral implementação dos direitos dessas pessoas. Congregando organizações membros por todo o mundo, a IDA é reconhecida pela ONU como maior representante dos cerca de um bilhão de indivíduos com essa condição. A Federação Mundial de Surdos (WFD) e a Federação Mundial de Surdocegos (WFDB) são membros da IDA. Site consultado em 07/03/2013: http://www.internationaldisabilityalliance.org/en

esses mesmos ativistas se anteciparam e promoveram, nos dois dias que antecederam ao evento, uma grande reunião no mesmo local do Congresso.

No decorrer desse Pré-Congresso, que reuniu, segundo registros em ata, aproximadamente 300 surdos brasileiros, latino-americanos, norte-americanos e europeus, os participantes socializaram as discussões dos GTs e produziram o manifesto coletivo A Educação que Nós Surdos Queremos (FENEIS, 1999).

Em seguida, durante a realização do Congresso, organizaram uma passeata pelas ruas centrais da cidade com a participação das 1.500 pessoas inscritas no evento, além de professores e alunos das escolas de surdos da região metropolitana de Porto Alegre, e nomearam uma comissão, que foi até o então governador do Estado do Rio Grande do Sul e entregou a ele e à sua Secretária de Educação uma cópia do documento. Essa entrega foi referência para que as demais lideranças surdas também encaminhassem o manifesto às autoridades de seus municípios e estados, chamando a atenção dos diversos governos e da sociedade em geral para a necessidade de mudanças, tanto na legislação educacional, quanto na formação de professores e na organização das escolas. O Manifesto, também levado ao MEC para ser considerado no processo de elaboração das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (Resolução CNE/CEB nº 02, de 11/09/2001), foi apenas parcialmente atendido nos programas e ações governamentais que se seguiram àquele período, mas subsidiou outros debates e constitui-se em marco importante na história política dos surdos no Brasil, até hoje orientando os Movimentos Surdos pela Educação.