• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DOCUMENTAL

4.2 Concepções sobre surdez e políticas educacionais

4.2.2 A transição para um novo modelo

Ao término dos anos 1980, a Integração começou a perder força à medida que o conceito de sociedade inclusiva, baseada nos paradigmas de igualdade, equidade, remoção de barreiras e disponibilização de condições de acessibilidade, propagado pela Organização das Nações Unidas, ganhava espaço mundialmente, refletindo-se, também, no Brasil.73

Membros de minorias se aproximavam, formando grupos em torno de seus interesses comuns. Entre eles, surdos de todo o país desenvolviam um senso de igualdade pela diferença que os levaria, como visto no Capítulo 3 deste trabalho, à organização de associações e à participação, na década seguinte, em lutas pela inclusão social, pelo reconhecimento de sua identidade e da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como meio legítimo de comunicação e por novas formas de atuação na sociedade brasileira.

Em relação à nomenclatura (e ao que as palavras significam como representação mental),74 o termo “surdo” foi se firmando como preferido por esses novos cidadãos em formação, que, passaram crescentemente a explicitar que não queriam mais ser identificados como deficientes ou portadores de deficiências, fazendo questão de ser vistos a partir de uma perspectiva sociocultural, como usuários de uma língua diferente e com uma forma particular de apreensão e externalização de mundo, que, como viriam cada vez mais a afirmar, os diferencia, mas não os inferioriza, nem os impede de serem brasileiros, iguais aos demais em direitos e deveres.

Ainda assim, a terminologia se manteria. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a introdução da educação como dever do Estado e como um direito social universal,75 passou a ser garantido, também, o atendimento educacional

73 A Sociedade Inclusiva, também chamada de Sociedade para Todos, foi uma proposta da ONU, documentada em dezembro de 1990 através da Resolução 45/91. As Nações Unidas pediam que até o ano 2010 passássemos da fase de conscientização das desigualdades para a ação, solicitando ao mundo atenção especial para a inclusão social das pessoas com deficiência dos países em desenvolvimento, afirmando que aproximadamente 80% dos indivíduos que não enxergam, não ouvem ou têm algum tipo de comprometimento intelectual, físico ou motor vivem nestes países.

74 Sobre o conceito de representação mental, ver nota de rodapé nº 25, na página 33 deste trabalho. 75

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma

especializado aos “portadores de deficiência”, preferencialmente na rede regular de ensino,76 direito que viria a ser reforçado pela Lei nº 7.853, de 198977 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990.78

Quanto às questões linguístico-educacionais, apesar da participação ativa de linguistas, antropólogos e educadores de minorias na Comissão Educação, Cultura e Desporto da Constituinte, debatendo a necessidade de se garantir aos surdos e aos indígenas o direito de serem educadas em suas línguas maternas,79 no texto final da Carta Magna apenas as singularidades dos povos indígenas foram contempladas, conforme se lê no artigo 210, §2º:

O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Poucos anos depois, compromissos assumidos pelo Brasil junto aos países participantes das Conferências de Jomtien (1990) e de Salamanca (1994), no sentido da inserção no ensino regular de todos os alunos, sem qualquer possibilidade de discriminação, e da promoção da devida adaptação das escolas para recebê-los, acabaram por exigir o início de uma ruptura com o modelo tradicional de ensino através de uma redefinição conceitual da Educação Especial que, com a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, deixou, oficialmente, de ser um sistema paralelo, inserindo-se no contexto geral da educação.

A partir de então, ao produzir documentos para gerar ações políticas e administrativas, assim como para orientar os sistemas de ensino para funcionarem dentro dos paradigmas da Inclusão, a Secretaria de Educação Especial (SEESP) do

desta Constituição. (Artigo 6°, com redação modificada pelas Emendas Constitucionais nº 26, de 2000 e

nº 64, de 2010).

76 Artigo 208, capítulo III, inciso III. 77 Artigo 2º, parágrafo único, inciso II. 78 Lei 8.069/1990, artigo 54, inciso III.

79 O conceito de língua materna (ou primeira língua, ou ainda L1) refere-se à língua que é adquirida de forma natural, através da interação com o meio envolvente, sem intervenção pedagógica e sem uma reflexão linguística consciente (cf nota nº 6, na página 17 deste trabalho). Para os surdos, a única língua que pode ser adquirida naturalmente é a de sinais.

MEC,80 acompanhando a tendência internacional estabelecida na Declaração de Salamanca, passou a fazer uso de novas expressões, como “portadores de necessidades educativas”, “pessoas com necessidades especiais” e “educandos com necessidades educacionais especiais” (NEE), necessidades essas apresentadas como decorrentes das deficiências visuais, auditivas, físicas, mentais, múltiplas, distúrbios de conduta, superdotação ou altas habilidades ou condições adversas temporárias de certos indivíduos.

Tais denominações, ainda na contramão da autorrepresentação das minorias e de seus esforços pela valorização de suas diferenças, e não de suas “faltas” ou “defeitos”, mais uma vez não agradaram à comunidade surda. A partir de sua ótica, manteve-se a ideia de que seus problemas adviriam unicamente de suas condições de indivíduos desviantes de uma norma historicamente construída, visão que novamente remete a Foucault e a Goffman e à discussão de como se conforma o discurso e se constitui o sujeito. Ou, neste caso, à análise de quem, como e mediante quais relações de poder estabelece as “necessidades especiais”, determina os “portadores de deficiências”, e decide como essas pessoas devem ser atendidas, educadas e “incluídas”.

Chegou-se, assim, aos anos finais do século XX com a produção de textos políticos (leis, decretos, resoluções e outros dispositivos legais) dentro de um ideário educacional que refletia avanços na democratização da sociedade brasileira ao reconhecer e dar visibilidade à diversidade e aos seus direitos, mas que ainda desagradava a grande parte dos cidadãos surdos, cujo entendimento, manifestado pelas suas lideranças, era de que continuavam representados pelas vozes dominantes no discurso oficial como não eficientes e, portanto, sem capacidade para decidir ou, ao menos, opinar sobre como sua educação deveria ser conduzida.

80

Durante o governo José Sarney (1986-1990) foi criada, no Ministério da Educação, a Secretaria de Educação Especial (SESP). No governo Collor, iniciado em 1990, uma reestruturação geral na máquina governamental fez com que a SESP fosse extinta, passando a Educação Especial para a Secretaria Nacional de Educação Básica (SENEB). Após o impeachment do Presidente Collor, em 1992, uma nova reforma no MEC reconduziu a Educação Especial àquele órgão específico, recriado com a sigla SEESP. Essa Secretaria manteve suas funções até 2011, tendo sido extinta por meio do Decreto nº 7.690, de março de 2012, passando seus programas e ações para a Diretoria de Políticas de Educação Especial (DPEE), vinculada à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI).