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CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DOCUMENTAL

4.2 Concepções sobre surdez e políticas educacionais

4.2.5 O surdo como sujeito vulnerável às barreiras sociais

4.2.5.2 O Plano Nacional de Educação 2011 2020

No ano de 2009, o Conselho Nacional de Educação (CNE), em cumprimento de suas atribuições, estabeleceu como uma das suas prioridades o estudo e a construção de subsídios para a elaboração e o acompanhamento da implantação do Plano Nacional de Educação (PNE) para vigorar na década seguinte. Nesse sentido, encaminhou ao Congresso Nacional e ao Ministério da Educação, através da Portaria CNE/CP nº 10/2009, um documento que serviria como estimulador das discussões pela melhoria da qualidade da educação brasileira a serem promovidas por órgãos públicos e da sociedade civil por todo o país.122

Após conferências municipais, regionais e estaduais com a participação de profissionais da educação, estudantes, familiares, gestores, pesquisadores, agentes públicos e entidades de classe, realizou-se em Brasília, de 28/03 a 01/04/2010, a Conferência Nacional de Educação (CONAE), reunindo representantes de setores vinculados a essa área para discutir e advogar pontos de vista a respeito dos rumos da educação brasileira, da creche à pós-graduação.

Entre os delegados à Conferência, encontravam-se enviados das comunidades surdas das diferentes regiões do país, devidamente eleitos pelos seus pares para defender, principalmente, as escolas para surdos com instrução em LIBRAS e ensino de língua portuguesa como segunda língua.

Ao final dos cinco dias de debate, estudos e deliberações, foi gerado um documento contendo 677 emendas ao texto-base, aprovadas na plenária final, sistematizando as contribuições nacionais reconhecidas como válidas pela maioria dos participantes. Nesse documento, apesar de toda a argumentação apresentada, as demandas dos surdos levadas à CONAE pelos seus delegados não chegaram a ser contempladas.123

122 Intitulado Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação,

Diretrizes e Estratégias de Ação, esse documento encontra-se disponível em:

http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/conae/documento_referencia.pdf. 123

O chamado Documento Final da CONAE encontra-se disponível em:

Assim sendo, quando em dezembro daquele ano o governo federal, pelas mãos do Presidente da República e do Ministro da Educação, enviou ao Congresso para discussão e aprovação o Projeto de Lei (PL nº 8.035/2010)124 para a criação do Plano Nacional da Educação 2011-2020, grande foi a insatisfação da comunidade surda brasileira: contendo 10 diretrizes objetivas e 20 metas, seguidas das estratégias para sua concretização, esse projeto, na sua composição textual, continuava a localizar as pessoas surdas entre os estudantes com deficiência, propondo sua total inclusão nas escolas regulares. Nesse sentido, prescreve a Meta de nº 4:

Universalizar, para a população de quatro a 17 anos, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino.

Entre as estratégias previstas para se atingir a Meta 4 (expansão na implantação de Salas de Recursos, ampliação da oferta de AEE, fomento da formação continuada de professores para trabalhar nesse setor e outras), embora estivesse indicada, para os alunos surdos, a oferta de “educação bilíngue”, não havia menção, em lugar algum, à manutenção ou criação de escolas ou mesmo de classes tendo a LIBRAS como língua de instrução, fazendo uso de uma pedagogia visual, e ensinando o Português escrito, favorecedor ao acesso ao contexto geral brasileiro, como segunda língua.

Assim, educação bilíngue mostrava-se entendida, na redação das estratégias, não como a modalidade de ensino reivindicada pela comunidade a quem ela viria a atender, mas apenas como garantia à entrada e convivência das duas línguas no espaço escolar, através da atuação do intérprete, sendo que a aquisição e o desenvolvimento da LIBRAS, assim como a aprendizagem de Português escrito, permaneceriam como conteúdos da complementação pedagógica ao ensino regular, realizada em regime de contraturno, nas Salas de Recursos, sob a responsabilidade dos profissionais de AEE.

Frente a esse quadro e com o objetivo de tentar revertê-lo, uma vertente do Movimento Surdo, então já iniciada em diversos estados como resistência à política da inclusão, passou a crescer e ganhar âmbito nacional, através de conexões feitas, em

124

Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490116

grande parte e crescentemente, pelas redes sociais: o chamado Movimento em Defesa da Escola Bilíngue para Surdos.

Baseado em muitas das reivindicações apresentadas no documento A Educação que Nós Surdos Queremos (FENEIS, 1999) e no texto do Decreto nº 5.625/05, que dispõe sobre processos educacionais específicos para pessoas surdas, esse movimento veio pleitear, em paralelo à existência das escolas inclusivas, a manutenção das instituições exclusivas e a criação de novas escolas e classes para surdos, organizadas num formato em que a LIBRAS seja efetivamente a língua de interlocução entre professores, alunos, gestores e funcionários, e considerando temas que vão além de problemas relativos aos dois idiomas: questões sociais, culturais e formas de ver e compreender o mundo.

Articulando frentes de ação diversificadas – reuniões, publicações em língua de sinais e em língua portuguesa veiculadas pela Internet, palestras e seminários abertos ao público, passeatas, apresentação de cartas de denúncia nos Ministérios Públicos federais, envio de projetos, cartas-protesto e abaixo-assinados aos parlamentares, organização de caravanas a Brasília, presença e fala em audiências públicas nas Assembleias e Câmaras Legislativas, a visibilidade desses ativistas e de suas reivindicações ganhou espaço significativo na arena política onde se travam os debates e disputas a respeito da Educação de Surdos.

O movimento se intensificou ainda mais a partir da ameaça feita, em fevereiro de 2011, pela então Diretora Nacional de Políticas Educacionais, do MEC, de fechamento do Colégio de Aplicação (CAP) do INES, assim como do término do Ensino Básico para cegos no Instituto Benjamim Constant (IBC), instituição igualmente centenária e também no Rio de Janeiro, com o consequente direcionamento de todos os seus alunos para as escolas inclusivas.125

Diante das iniciativas de surdos e ouvintes por todo o Brasil em repúdio a essa intenção, da forte defesa da manutenção das escolas efetuada pelas diretoras dos dois Institutos e da repercussão altamente negativa, nos órgãos da mídia, ao encaminhamento

125 Notícia sobre esse episódio, divulgada pela mídia, pode ser encontrada em:

http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/03/29/deficientes-visuai-auditivos-temem-possibilidade-de-perder- escolas-especiais-924121636.asp, disponibilidade confirmada em 05/05/2014.

dessa medida, o MEC acabou voltando atrás, o Ministro desautorizando o anúncio da determinação que havia sido feito por aquela diretora e garantindo a continuidade dos dois colégios.126

Ao mesmo tempo em que esses fatos ocorriam, a FENEIS, representando todas as associações de surdos brasileiras, centralizava minucioso trabalho coletivo que gerou detalhada e justificada Proposta de Emendas Substitutivas ao PL nº 8.035,127 apresentada em agosto de 2011 às Comissões e demais membros do Congresso Nacional durante o processo de modificações, redação final e votação desse Projeto de Lei.

A pressão exercida pela comunidade surda surtiu efeito: as propostas, com alterações na redação sugeridas pelo Relator, foram aprovadas consensualmente pela Câmara Federal ainda em 2012. No entanto, algumas delas foram novamente modificadas ou retiradas do Projeto quando este passou pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado e foi devolvido à Câmara de Deputados, gerando nova onda de manifestações públicas e de iniciativas de pressão (cartas protesto, abaixo- assinados etc.) por parte dos Movimentos Surdos.

Finalmente, em 03/06/2014, em votação concluída no Plenário, a Câmara aprovou o texto final do PNE, com novas metas para os próximos dez anos, ficando a Meta 4 com a seguinte redação:

Universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados. (grifo nosso)

E entre as estratégias estipuladas para garantir que a meta seja atingida durante a implantação do Plano, reza a de número 7:

126 Informações sobre o fato, igualmente divulgadas pela imprensa, podem ser lidas em:

http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/03/30/mec-nega-fechamento-de-escolas-especiais-para-surdos- cegos-924128550.asp, (ainda disponível em 05/05/2014).

127

Disponível em http://www.librasemcontexto.org/producao/Emendas_substitutivas_versao_31_8.pdf, acessado em 23/08/2013.

Garantir a oferta de educação bilíngue, em Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua, aos (às) alunos(as) surdos e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e

classes bilíngues e em escolas inclusivas, nos termos do art. 22 do

Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, e dos arts. 24 e 30 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como a adoção do Sistema Braille de leitura para cegos e surdocegos. (grifo

nosso)

Com a importante inovação do aumento gradual de recursos públicos a serem aplicados em Educação, chegando a 10% do Produto Interno Bruto (PIB) até seu décimo ano de vigência, o texto foi sancionado pela Presidência da República, sem vetos, e publicado no diário Oficial, em edição extraordinária, em 26 de junho de 2014.