• Nenhum resultado encontrado

Mobilização de discursos transnacionais e políticas públicas

F I GURA 5: E STRUTURA D A E STRATÉGIA DE RESPOSTA

1. Mobilização de discursos transnacionais e políticas públicas

Sustentamos que todos os atores políticos envolvidos no processo de elaboração de uma política pública mobilizam discursos e ferramentas transnacionais para melhorar suas chances de sucesso na implementação das ações que acreditam mais efetivas e eficazes para os fins que defendem. Por um lado, os discursos e consensos construídos nas conferências das Nações Unidas, expressos nos documentos de que o Brasil é signatário e usados pelos movimentos sociais como pautas de cobrança do Estado, são facilmente percebidos dentro dessa lógica de múltiplos interesses com raízes locais e internacionais. Por outro lado, a atuação de grupos transnacionais como financiadores ou como executores de ações em nível local também demonstra os diferentes atores transnacionais envolvidos na consolidação de laços e de redes transnacionais.

No primeiro caso que analisamos, a mobilização de um discurso de planejamento familiar em contraponto a ações de controle de natalidade permitiu a criação de um novo paradigma de políticas de saúde para as mulheres: a atenção integral à saúde da mulher no lugar do paradigma materno- infantil. Como vimos, havia pressão por parte de diferentes atores pela adoção de políticas com desenhos muito diferentes entre si: havia quem defendesse o controle restrito da natalidade, com a facilitação da prática de esterilizações por fundações privadas, financiadas por fundos internacionais (como mostram os depoimentos dos presidentes do CPAIMC e da BEMFAM e das intervenções de alguns senadores); assim como havia gestoras desenhando políticas voltadas para a consolidação de um modelo de saúde integral, voltado para a criação de uma cultura de planejamento reprodutivo, que deu origem ao PAISM. Ao mesmo tempo, os debates locais e internacionais sobre a prática de esterilizações compulsórias em países subdesenvolvidos como política populacional imposta pelos países desenvolvidos do bloco capitalista e os riscos do uso de contraceptivos hormonais de longa duração, como o Norplant e o Depo-Provera, promoveram bandeiras unificadas entre os movimentos de mulheres negras e favoreceram a organização dessas mulheres em torno dos direitos de parir e não parir e da defesa dos princípios da integralidade de saúde previstos no PAISM.

No segundo caso, há dois movimentos transnacionais a serem considerados. Há o debate em torno da redução da mortalidade materna que tem destaque na Cúpula do Milênio, tendo-se tornado uma das metas dentro dos ODMs para 2015. Esse debate, assim como as políticas populacionais e de

planejamento reprodutivo, é destacado, em que pesem as críticas ao seu desenho e escolha de indicadores, por se tratar de acordos assinados por Estados nacionais, comprometidos, ao menos em tese, em favorecer o desenvolvimento não apenas de seus nacionais, mas de todas as pessoas do mundo. Paralelamente, desenvolve-se o movimento em favor da humanização do parto e nascimento de que o Brasil e a ReHuNa apresentam liderança no desenvolvimento de discursos e iniciativas. Assim, para o desenho do programa Rede Cegonha a articulação transnacional interestatal em torno das causas da mortalidade materna combina-se com as acusações do alto número de cesáreas, da intervenção médica exagerada nos corpos das parturientes e da necessidade de promoção de medidas capazes de transformar a forma de parir e de nascer no Brasil e no mundo. Assim, Estado e diferentes movimentos de mulheres articulam-se em favor de uma agenda de humanização e redução da mortalidade materna que foi, ao menos entre 2010 e 2011, amplamente afetada pela campanha eleitoral de 2010 e o debate em torno do aborto e dos direitos das mulheres.

No terceiro caso, a epidemia constrói-se inicialmente como um problema localizado no sertão nordestino que ganha contornos mais graves conforme aumentam o número de casos de bebes com microcefalia e o número de pessoas contaminadas pelo vírus Zika. Essa difusão de casos, combinada com a proximidade de um megaevento esportivo – as Olimpíadas de 2016 – e a mobilização iniciada pela OMS depois de ter sido avisada pelo Brasil da disseminação rápida da contaminação, torna a epidemia uma preocupação internacional. A mobilização de atores se dá em nível estatal, interestatal, entre agências das Nações Unidas e em organizações da sociedade civil – dentro e fora do Brasil. Com ações voltadas especificamente para o Brasil e disseminadas ao redor das Américas, por meio de cartazes em aeroportos, por exemplo. Os esforços de pesquisa reúnem pesquisadoras e integrantes da indústria farmacêutica, além de aproximar pesquisa e esforços estatais – como vimos no caso da Renezika no Brasil.

A multiplicidade de atores reclamando a validade transnacional de suas pautas para a elaboração de políticas públicas demonstra que menos importante que os consensos internacionais a que se submetem os Estados nacionais são os atores políticos que são reconhecidos como os mobilizadores desses consensos em nível local. Assim, a ideia de controle de natalidade e da necessidade de esterilização foi, por alguns anos, a política aceita, dada a falta de questionamento de quem estava operando uma política populacional no país na década de 1980. Tal perspectiva foi alterada ao longo dos anos devido à retomada da agenda de planejamento reprodutivo pelo MS por meio do PAISM. O debate sobre redução da mortalidade materna mudou de uma abordagem de saúde integral, com ênfase na mortalidade de mulheres negras presente no Pacto pela Redução da

Mortalidade Materna (2004), para uma abordagem de humanização do parto e nascimento, baseado em larga medida no paradigma de saúde materno-infantil e com invisibilização das mulheres como parturientes, com destaque para a cegonha. No caso da epidemia do vírus Zika, ainda prevalece a ênfase no combate ao mosquito, isso em larga medida pelas condições de desmobilização da CGSM, ainda focada no paradigma de saúde materno-infantil, com pouca atenção para os efeitos da epidemia nos direitos reprodutivos das mulheres.

Observando comparativamente os três casos, o que nos parece é que as pressões geradas internacionalmente ou com base em discursos transnacionais têm mais capacidade de produzir políticas de saúde para as mulheres que não atendem às expectativas locais. Por exemplo, a continuidade do debate sobre o planejamento reprodutivo nas conferências das Nações Unidas leva ao estabelecimento da noção de direitos reprodutivos. Para as ativistas entrevistadas por nós ao longo da pesquisa, a noção de direitos reprodutivos reduz a capacidade de mobilização política e restringe a percepção das políticas de saúde para o período reprodutivo das mulheres, perdendo-se de vista as intercorrências de saúde que fujam a esse assunto. O afastamento da RFS do discurso de integralidade aliado com o seu isolamento em Santa Catarina tem reduzido sua interlocução com os grupos que são parte – ao menos formalmente – da RFS. A adoção da ideia de direitos reprodutivos funciona então como um elemento de desmobilização em torno das pautas de saúde integral para as mulheres. O mesmo acontece com o uso do discurso dos ODMs como justificativa formal para a alteração de atenção à saúde das mulheres em 2011. Ao relatar a incapacidade de atender à meta, o governo altera a principal política de saúde, a PNAISM para o Rede Cegonha. Em larga medida, a demanda internacional era apenas uma forma de justificar a responsividade do governo eleito às polêmicas em torno do aborto durante as eleições. Em relação ao vírus Zika, algumas autoridades defenderam que mulheres em áreas de risco não tivessem filhos durante o período da epidemia, o que remete a uma política eugenista e de controle dos corpos das mulheres que sofrem com o racismo ambiental. Em comum nas preocupações nacionais e transnacionais é o assunto do combate ao vetor.

Documentos relacionados