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CAPÍTULO 2 – HUMANIZAÇÃO E REDE CEGONHA: OBJETIVOS DO MILÊNIO DAS NAÇÕES UNIDAS E A INFLEXÃO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE PARA AS MULHERES NOS

2. As políticas do Estado brasileiro para a saúde das mulheres nos anos

2.2. Programa Rede Cegonha

A campanha eleitoral de 2010 foi particularmente marcante pelo debate em torno da questão do aborto e dos direitos reprodutivos das mulheres. A polêmica tem início em 1º de setembro, quando Marina Silva afirma que os seus concorrentes mudaram sua posição política sobre aborto e casamento homossexual. Ganha grande visibilidade a partir de 22 de setembro, com o debate organizado pela CNBB. A perda de votos, sobretudo de evangélicas, por conta de uma postura favorável do PT à descriminalização do aborto. Como forma de evitar a perda dos votos de setores religiosos, Dilma Rousseff realiza durante a campanha uma reunião com representantes de diferentes religiões cristãs como forma de reiterar sua postura contrária à ampliação dos casos de aborto previstos em lei. A ofensiva se mantém durante o segundo turno, com as lideranças de igrejas cristãs exigindo votos em favor da vida e contrários ao aborto. Em dois momentos mais extremos, Dilma Rousseff assina carta

em que se compromete com a defesa da vida e a esposa de José Serra, Mônica Serra, posa abraçada a uma Nossa Senhora Aparecida (LUNA, 2014).

Depois de eleita, a principal política de atenção à saúde das mulheres é a Rede Cegonha. Ela foi instituída em fevereiro de 2011 por meio do Decreto 1.459 do Ministério da Saúde. Ela é caracterizada como

“uma rede de cuidados que visa assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e ao desenvolvimento saudáveis” (BRASIL, 2011).

Expressamente, entre as considerações para o desenho do Programa Rede Cegonha, ressaltam- se os programas de defesa da vida e outras políticas já implementadas pelo MS e duas questões mais práticas: “os indicadores de mortalidade materna e infantil no Brasil ainda são elevados” e “o compromisso internacional assumido pelo Brasil de cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, em especial as metas quatro e cinco”. Como forma de resolver essas questões, o MS propõe o Programa. Assim, apesar de haver os compromissos firmados durante a campanha no que tange à proteção da vida, a justificativa oficial para o desenho do Programa é a dificuldade em reduzir a mortalidade materna e atingir os ODMs. Uma justificativa com base em compromissos internacionais para fugir ao aberto comprometimento religioso das ações do governo recém- empossado.

A Rede Cegonha possui três objetivos: “fomentar a implementação de um novo modelo de atenção à saúde da mulher e da criança”; “organizar a Rede de Atenção à Saúde Materna e Infantil”; e “reduzir a mortalidade materna e infantil” (BRASIL, 2011). Destacamos o uso do termo “saúde materna”, que é reiteradamente utilizado durante esta portaria e outros documentos de implementação da Rede Cegonha. Assim como o PMI da década de 1970, a Rede Cegonha repete a especialização do cuidado em uma fase da vida de algumas mulheres.

Tendo em vista a descentralização implicada nas políticas de saúde, a Rede Cegonha possui cinco fases operacionais: adesão e diagnóstico – com apresentação do programa a estados e municípios, bem como a montagem de um cronograma de implementação; desenho regional da Rede Cegonha – desenho de mapas e fluxos da atenção à saúde materna e infantil na Região de Saúde, momento em que há a previsão de participação da sociedade civil; contratualização dos pontos de atenção – desenho da Rede Cegonha no âmbito municipal, com a elaboração de Plano de Ação Municipal e constituição do Fórum Municipal da Rede Cegonha; qualificação dos componentes – verificação da atuação de cada um dos componentes da rede por meio do acompanhamento das metas

definidas nos planos de ação estaduais e municipais; e certificação dos municípios e da rede de cuidado.

Os parâmetros de qualidade do atendimento da Rede Cegonha baseiam-se nas normas técnicas da OMS, publicadas em 1985. Tais normas estão divididas em quatro categorias de acordo com sua utilidade para o momento do parto, com base em “evidências científicas”. Dessa forma, há desde “práticas demonstradamente úteis e que devem ser estimuladas”104 a “práticas frequentemente utilizadas de modo inadequado” (BRASIL, s/d: 24). Nesta última categoria encontram-se o parto operatório; o uso de peridurais, de máscaras e aventais e os exames vaginais repetidos no momento do parto.

Os centros de parto normal (CPN) e as casas de gestante, bebê e puérpera (CGBP), são parte importante do programa. Os primeiros são responsáveis pelo atendimento das mulheres com gravidez considerada de baixo risco ou normal, em que se dispensa a atuação de médicas obstetras e ressaltam- se os valores vinculados à humanização do parto, como a presença de acompanhantes e a liberdade da escolha da posição para parir. Os CPNs foram criados em 1999 e desde então têm sido fortemente defendidos por grupos de mulheres que defendem a humanização do parto e igualmente combatidos por associações médicas que tentam desqualificá-los como locais seguros de atendimento às gestantes pela ausência de médicos e de recursos técnicos para evoluções problemáticas dos partos. As CGBs são voltadas ao atendimento de mulheres com gravidez de alto risco para a mulher ou para a criança, que demandam atenção diária e cuidados médicos ostensivos. Elas preveem a necessidade de alojamento dessas mulheres por mais tempo, contando com quartos e espaços de convivência.

A elaboração do manual de implementação da Rede Cegonha contou com a parceria da ReHuNa (BRASIL, s/d: 4). Dentro dos preceitos da PNH, o Manual do Rede Cegonha apresenta a previsão de reformas dos espaços de preparação para o parto, parto e pós-parto – a atenção à ambiência é um ponto de destaque que é inovador da Rede Cegonha; o destaque para a necessidade de privacidade em todos os momentos próximos ao parto e a previsão de kits a serem distribuídos para as parteiras.

Particularmente em relação à ambiência, o Programa Rede Cegonha oferece financiamento específico para estados e municípios com a finalidade de adequação dos espaços de maternidades,

104 São exemplos de práticas a serem estimuladas: a privacidade da mulher no momento do parto, Respeito à escolha da mãe sobre o local do parto, Liberdade de posição e movimento durante o trabalho de parto, Contato cutâneo direto precoce entre mãe e filho e apoio ao início da amamentação na primeira hora após o parto, segundo as diretrizes da OMS sobre Aleitamento Materno (BRASIL, s/d: 25).

construção de CPNs e CBGPs. A ambiência é entendida como intervenções no espaço físico voltada para a humanização dos atendimentos:

“Refere-se ao espaço físico, profissional e de relações interpessoais que deve estar relacionado a um projeto de saúde voltado para a atenção acolhedora, resolutiva e humana (Brasil, 2008). Ou seja, a intervenção nos espaços físicos (reformas, ampliações, construções) de acordo com essa diretriz vai além de uma organização físico-funcional, interferindo e contribuindo ou não para a qualificação dos processos de trabalho, a depender do modo como são conduzidos os processos de mudança. Dessa forma, orienta-se a discussão compartilhada dos projetos arquitetônicos como estratégia para melhorar as condições e processos de trabalho no sentido das boas práticas e humanização de partos e nascimento” (BRASIL, 2012: 20).

Entre as mudanças sugeridas pelo Rede Cegonha está a dotação de privacidade para as mulheres durante o trabalho de parto. A ambiência sugerida para as casas de parto normal está descrita de maneira detalhada, com cada um dos espaços necessários, contemplando os tamanhos previstos pela norma RDC 36/2013 do MS.

Quadro 2 - Exemplo de ambiência de Centros de Parto Normal: quarto PPP e deambulação

Fonte: BRASIL. Orientações de elaboração de propostas para o Rede Cegonha, 2012: 16.

A ambiência sugerida contempla a privacidade das mulheres e acompanhantes durante o parto e aleitamento:

“Transformar os tradicionais pré-partos coletivos em espaços individualizados de préparto/parto e pós-parto (PPP) com acesso a banheiro, onde a mulher desenvolva todo o processo de trabalho de parto e parto, podendo ser transferida após o pós-parto imediato para o alojamento conjunto, quando em função da demanda não for possível que todo o período do pós-parto aconteça neste mesmo espaço sempre com a presença do acompanhante de livre escolha” 105

“Estimular o aleitamento materno ainda no ambiente do parto, criando espaços que proporcione[m] o conforto e a privacidade para essa situação” (Idem).

105 Disponível em: http://www.informacaoemsaude.rj.gov.br/docman/atencao-a-saude/8002-ambiencia-cpn/file.html. Acesso em 29/5/2017.

A privacidade, tão forte no desenho da ambiência das CPN é inovadora no SUS e está amplamente baseada na presença de uma acompanhante no momento do parto. Considerando que as políticas públicas devem contemplar a multiplicidade de arranjos sociais possíveis, vale perguntar: e no caso das mulheres que não contam com acompanhantes, em que medida a privacidade prevista na ambiência como uma vantagem termina por prever atenção à saúde para mulheres cujas famílias sigam um determinado padrão? E nos casos de mulheres sem parceiros e sem estrutura familiar? Como se daria a assistência ao parto em espaços isolados dentro dos CPN? A pressuposição de que há apenas um modelo de família e que todas as mulheres possuem uma rede de suporte no momento do parto apresenta um viés na mulher que está sendo imaginada para a política.

A divulgação dos serviços do Rede Cegonha foi feita majoritariamente com o objetivo de informar secretarias de saúde de estados e municípios, tendo em vista que o Programa tem como objetivo financiar iniciativas locais de implementação do Rede Cegonha. Como material de divulgação da Rede Cegonha para as usuárias, o MS produziu um cordel, de que é possível ver algumas imagens no Quadro 3 abaixo.

Quadro 3 – Imagens do cordel do Programa Rede Cegonha

Fonte: Ministério da Saúde. Disponível em: https://pt.slideshare.net/MinSaude/redecegonha-cordel Acesso em 29/5/2017.

Nas imagens, é interessante notar alguns elementos. Apesar de haver em diferentes documentos do Rede Cegonha a necessidade de que a mulher esteja livre para decidir a forma como deve ser o parto, a mulher gestante só é retratada de pé no momento que chega à unidade de saúde. O parto é retratado com ela deitada, em uma sala de cirurgia, com homens com luvas que lhe oferecem atenção. Não há mulheres oferecendo apoio técnico à gestante: a única médica que aparece no cordel

é a pediatra, que atende à criança. O espaço das mulheres está reservado a ser a gestante, mãe/esposa, pediatra e acompanhante.

O texto apresenta alguns personagens importantes para que a gestante tenha acesso ao pré- natal, como os agentes comunitários de saúde (ACS) e as unidades básicas de saúde. Sobre as informações trazidas pelo cordel, fala-se sobre humanização no atendimento: “Acolhimento e respeito/Não é só no pré-natal/ No parto e no puerpério / Também é essencial/ Para a mulher e seu bebê / Nesse período especial”; “A mulher que está grávida/ Deve ser logo atendida/ E não ficar pra lá e pra cá/ Com um bebê na barriga”; “A mulher tem seus direitos/ A criança também tem/ Atenção humanizada/ Pra mãe e pro neném / Negar esse princípio? / Nem vem que não tem!”. O cordel trata do empoderamento da gestante: “A palavra protagonismo/ O que ela quer dizer? / Que o ator principal/ Dessa história é você/ Quem participa das decisões/ E constrói as ações/ O protagonismo da mulher/ Deve ser desenvolvido/ Não podemos esquecer/ Que ela vai ter um filho/ Um cuidado especial deve estar garantido”. Entre os problemas do texto e da estrutura do cordel, destacamos que apesar de reportar-se a uma família heteronormativa, a responsabilidade masculina com o cuidado da criança ou o seu envolvimento durante a gestação não é pontuada. Com relação à gravidez, supõe- se que todas as mulheres comemorarão a gravidez: “Se suspeitar de gravidez/Faça logo o teste rápido/ Tire a dúvida de uma vez/ Com resultado positivo/ Comemore a gravidez// Depois de comemorar/ Não se esqueça de marcar / A consulta pré-natal”.

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