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Paradoxos do movimento pela humanização do parto e nascimento: feministas ou consumidoras?

CAPÍTULO 2 – HUMANIZAÇÃO E REDE CEGONHA: OBJETIVOS DO MILÊNIO DAS NAÇÕES UNIDAS E A INFLEXÃO DAS POLÍTICAS DE SAÚDE PARA AS MULHERES NOS

1. Mortalidade materna em perspectiva internacional: os Objetivos do Milênio

1.1. Paradoxos do movimento pela humanização do parto e nascimento: feministas ou consumidoras?

“Muitas apoiadoras das parteiras inicialmente ficaram hesitantes em descrever a luta delas como uma por direitos reprodutivos em razão da associação com os esforços feministas em relação ao aborto e contracepção”(CRAVEN, 2010: 2).

“Ao receber o apoio de uma doula, a lembrança será positiva, mesmo que a grávida não tenha conseguido o parto dos seus sonhos” (Fadynha, 2005:97).

A defesa de autonomia decisória e do protagonismo das mulheres durante o parto remete-nos muito facilmente à ideia de que as defensoras do parto humanizado são feministas ou que assim se reconheçam. No entanto, apesar da origem do movimento estar vinculada a lutas feministas dos anos 1960 e 1970 (TORNQUIST, 2004; CRAVEN, 2010), atualmente existe uma resistência por parte das ativistas deste movimento em se identificarem como feministas. Essa relação de afastamento do feminismo é percebida tanto internacionalmente como no Brasil, como mostram os excertos de Craven e de Carneiro:

As organizadoras do movimento de parteiras – incluindo aquelas que se identificam como pró-escolha ou pró-vida – adotaram a linguagem de ‘direitos’ e ‘escolha’ para descrever a importância de expandir as opções de cuidado materno para as mulheres. (...) Na última década, organizadoras também começaram a elencar o acesso a parteiras como uma questão de ‘direito de consumidora’ – direito de escolher das mulheres que foi restringido por políticas públicas mal informadas sobre parteiras e parto em casa” (CRAVEN, 2010: 2, tradução livre99).

“Um conjunto de mulheres, usuárias do sistema de saúde privado brasileiro, não necessariamente adeptas das reivindicações feministas. Sendo, em alguns casos, até mesmo um pouco resistentes a esse movimento, passaram a se organizar como consumidoras dos serviços médicos e hospitalares, em torno da crítica da prática obstétrica. Elas procuravam indagar a razão de determinados procedimentos, em nome do desejo de parirem de acordo com suas crenças, estilo de vida, ética e autodeterminação” (CARNEIRO, 2015: 38).

Carneiro defende que o processo de distanciamento dos feminismos, no caso brasileiro, refere- se a uma reação de mulheres filhas de feministas e que agora, dadas as conquistas realizadas por

99 Midwifery organizers— including those who identify as pro- choice and pro- life—have adopted the language of “rights” and “choice” to describe the importance of expanding women’s maternity care options. (…) Over the past decade, organizers have also begun to cast access to midwifery as a “consumer rights” issue— one in which a woman’s “right to choose” has been restricted by ill- informed public policies concerning midwives and homebirth. (CRAVEN, 2010: 2).

gerações anteriores, questionam a necessidade do feminismo como um movimento político. Ao mesmo tempo, a lógica que guia a formação dessas ativistas é a participação conjuntural no movimento pelo humanização do parto, em geral, vinculada com o período de gestação ou a participação de longo prazo como profissionais que prestam serviços a mulheres gestantes.

A lógica do consumo não só se coloca para as gestantes, mas também para as profissionais envolvidas com o parto. O trabalho das parteiras torna-se commodity de qualidade, que passa a receber o apoio de legisladores capazes de aprovar leis regulamentando o exercício da função de parteira. Sendo esse produto mais facilmente aceito pelos legisladores do que a ideia de que as mulheres podem dispensar os cuidados médicos no momento do parto.

Assim, a busca do movimento de humanização do parto e nascimento é um movimento em busca de direitos, mas uma busca de direitos de indivíduos civis na sociedade de consumo e não de indivíduos políticos. A defesa de direitos do consumidor tem maior capacidade de ressonância entre mulheres que podem pagar para serem consumidoras, enquanto exclui mulheres que não podem pagar e tem suas escolhas reprodutivas reduzidas a poucas opções. Assim, não se constrói um movimento por direitos reprodutivos que englobe um grupo heterogêneo de mulheres:

“Apesar de que o ‘poder do consumidor’ ressoa com mulheres de classe média ou ricas que querem dar à luz em casa, é menos aplicável para famílias de baixa renda buscando cuidado de parteiras. Pessoas que em geral têm menos ‘escolhas’ na sua saúde reprodutiva” (CRAVEN, 2010: 2, tradução livre100).

O foco nos direitos de consumidora restringe o debate do campo da humanização do parto e nascimento, assim como nos anos 1970 e 1980 a bandeira do aborto dominou os debates em torno dos direitos reprodutivos. Craven ressalta o papel das mulheres não-brancas, articuladas em torno do conceito de justiça reprodutiva para fazer os debates sobre direitos reprodutivos avançarem no momento em que a única bandeira mobilizadora era a descriminalização e a legalização do aborto. A autora ressalta a necessidade de que o movimento por parteiras e pela humanização do parto seja capaz de romper com as barreiras de classe que se colocam na atualidade, por meio da defesa não de direitos de consumidora, mas como direitos amplos de saúde reprodutiva.

Sobre as dificuldades do acesso ao parto humanizado no Brasil e o perfil de classe vinculado ao acesso a esse tipo parto e discussão, destacamos as análises de Fadynha e de Carneiro:

“Tenho o desejo de que chegue o momento em que todas as mulheres de todas as classes sociais, possam ter uma doula na hora do parto” (Fadynha, 2005:100).

100 “Yet while ‘consumer power’ often resonates with middle- class and affl uent homebirthers, it has been less applicable to the low- income families seeking midwifery care, who frequently have far fewer “choices” in their reproductive healthcare” (CRAVEN, 2010: 2).

“Não se pode negar que a vontade de um parto natural também existe entre as atendidas pelo SUS, mas aparentemente é bem mais presente entre as mulheres atendidas na rede privada de saúde. Esse dado, então, poderia indicar um importante recorte de classe no universo do parto humanizado no Brasil contemporâneo” (CARNEIRO, 2015:68-9).

Os excertos demonstram que há claro um viés de classe no acesso ao parto humanizado. Em larga medida, são as mulheres atendidas por planos de saúde privados as que problematizam o tipo de parto que desejam ter. Em seu manual para doulas, Fadynha as instrui a sugerir ao casal que se encontre previamente com o neonatologista para conhece-lo. Mas, caso o parto aconteça na rede pública de saúde, as mulheres não sabem ao certo em que local parirão, muito menos a equipe que estará presente no momento do nascimento da criança. O viés de classe está não só no debate em torno dos métodos de parto disponível, mas também na construção das sugestões do movimento, que aparentemente foge à lógica do atendimento oferecida nas maternidades e hospitais da rede pública de saúde.

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