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Para além do mosquito A atenção à microcefalia: políticas desenhadas para lidar com o

F I GURA 5: E STRUTURA D A E STRATÉGIA DE RESPOSTA

5. Controle e monitoramento

2.3. Para além do mosquito A atenção à microcefalia: políticas desenhadas para lidar com o

impacto da epidemia nas famílias.

Dado o surto inesperado da epidemia de Zika e a descoberta da relação entre a infecção por Zika e a microcefalia e a falta de políticas públicas voltadas para o atendimento da população deficiente no Brasil, não havia políticas específicas construídas para lidar com o problema. Entre as políticas desenhadas para atender as famílias de crianças com microcefalia, destacam-se a Instrução

Operacional Conjunta no. 1 MS/MDS133, a Estratégia de Ação Rápida para o Fortalecimento

da Atenção à Saúde e da Proteção Social de Crianças com Microcefalia (EAR)134 e as Diretrizes

de estimulação precoce.

O plano de ação apresentado na Instrução Interministerial não traz muitas novidades na medida em que a maior parte do documento trata de repetir as medidas necessárias para o controle do vetor, dentro da concepção do eixo de ação chamado “Prevenção”. Entre as diferenças desse documento ressaltamos a abordagem para além da área de saúde, integrando a atenção da assistência social ao trabalho em relação à epidemia. Nesse sentindo, apesar de haver a repetição da necessidade de informar a população sobre os meios de combate ao mosquito, das medidas de controle do acúmulo de água, o documento ressalta novas necessidades de atenção das/os gestoras/es de políticas públicas. Destacamos uma medida do Eixo Prevenção, com foco nas medidas da assistência social:

“c) Realização de ações socioassistenciais por meio dos Serviços da Proteção Social Básica e Especial: (...)

3. Priorizar a discussão sobre Direitos das Pessoas com Deficiência nas atividades dos serviços socioassistenciais, para evitar estigmatizações e preconceitos” (Instrução Operacional Conjunta no. 1 MS/MDS, 2016).

Como veremos na próxima seção, uma das dificuldades relatadas pelas mulheres que são mães de bebês com microcefalia é o enfrentamento do preconceito e da discriminação tanto em serviços

133 A Instrução foi publicada em fevereiro de 2016. Ela “estabeleceu procedimentos e rotinas conjuntas de atenção às famílias no âmbito do SUS e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no enfrentamento ao mosquito Aedes aegypti e na atenção às famílias com casos de crianças microcefálicas” (Brasil, BO 48, 6, 2017: 6)

públicos quanto no cotidiano. Essa medida ressalta a importância da sensibilidade dos profissionais aos estigmas e aos preconceitos, o que em si não resolve as situações relatadas pelas mulheres e pelas famílias de bebes com microcefalia, mas permite denúncias e punições a profissionais que ajam no sentido contrário da normativa.

O segundo eixo de atuação da assistência social está vinculado à atenção das famílias de bebês com microcefalia: Eixo Acolhida, Cuidados e Proteção Social. Entre as ações mais relevantes desse eixo, destacamos: 1. A percepção das determinantes socioeconômicas no processo de adoecimento pelo vírus Zika: “essas doenças têm atingido as parcelas mais pobres da população brasileira, que conformam, portanto, o público efetivo ou potencial do Bolsa Família” (Instrução Operacional Conjunta no. 1 MS/MDS, 2016); 2. Criação de uma série de laços entre a gestante, a criança e o Estado de forma a garantir o tratamento continuado da criança. Entre os procedimentos listados na Instrução que são de responsabilidade da assistência social, ressaltamos três:

“d) Inserir ou atualizar as informações da pessoa e de sua família no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – Cadastro Único e inserir no Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF ao realizar o atendimento da gestante no CRAS; (...)

e) Realizar atendimento individualizado, por parte da equipe do PAIF, para escuta qualificada das necessidades da gestante e da família e sua inclusão prioritária no Acompanhamento Familiar; (...) m) Identificar as barreiras e construir alternativas para superar as situações que dificultam o acesso e o acompanhamento no processo de estimulação precoce e outros cuidados de saúde dessas crianças” (Instrução Operacional Conjunta no. 1 MS/MDS, 2016).

No que tange à Estratégia de Ação Rápida para o Fortalecimento da Atenção à Saúde e da Proteção Social de Crianças com Microcefalia (EAR), ela vigeu entre 15 de março e 31 de outubro de 2016135 e envolveu o SUS e o SUAS, mais uma vez uma articulação entre o Ministério da Saúde e o da Assistência Social e Combate à Fome.

“Dada a necessidade de esclarecer os casos suspeitos de microcefalia por meio de laudo médico e garantir o acesso assistencial a exames, consultas e tratamentos especializados, bem como o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento na Atenção Básica à Saúde, foi publicada a Portaria Interministerial no 405, de 15 de março de 2016, instituindo a Estratégia de Ação Rápida para o Fortalecimento da Atenção à Saúde e da Proteção Social de Crianças com Microcefalia (EAR), destinando recursos financeiros federais adicionais aos já disponíveis nos tetos financeiros de estados e municípios de média e alta complexidade no formato de incentivo. O público-alvo inicial da EAR foram 4.976 crianças em todo o território nacional. Esse número, e a sua distribuição entre as UFs, foi definido considerando-se o somatório de casos de microcefalia e/ou alterações do sistema nervoso central “em investigação” e casos “confirmados”, de 2015 a 2016, constantes do Informe Epidemiológico no. 16”(Brasil, BO 48, 6, 2017: 18, grifos nossos).

O principal objetivo da EAR era reduzir o tempo entre a notificação e a confirmação dos casos, assim como produzir um modelo de laudo médico que facilitasse a demanda pelo Benefício de Prestação Continuada a que as crianças têm direito. Para tanto, a EAR interconecta os serviços de assistência e saúde, sugerindo a profissionais de uma e outra área a explicarem os programas disponíveis para as famílias de bebês com microcefalia nos serviços de assistência social e saúde. O incentivo aos estados em produzirem os dados e ações previstas pela Portaria Interministerial é a liberação de fundos orçamentários para a implementação das ações previstas a atender as famílias de bebês com microcefalia. A análise de implementação da EAR ressalta a capacidade de produzir confirmação ou descarte de casos de bebês com microcefalia. No entanto, importante considerar que tal afirmativa é questionada pelas mulheres mães de bebês com microcefalia na medida em que muitas nunca receberam de volta os laudos de avaliação das condições neurológicas de suas crianças e ainda têm dificuldade de acessar as políticas de apoio ao desenvolvimento das bebês razão da falta de acesso ao diagnóstico.

Como é possível perceber nas ações e nos procedimentos citados, não há efetivamente a criação de novas políticas. Dentro da Instrução Operacional, há sobretudo alertas à percepção das gestoras/es públicas/os da situação peculiar e emergencial em que se encontram as famílias e os bebes contaminados pelo vírus Zika. Na Portaria Interministerial, o destaque é dado ao processo de celeridade na emissão de laudos para bebês com microcefalia e a adoção de medidas de saúde voltadas para esse público. A falta de políticas específicas – sobretudo de dotação orçamentária e da criação de capacidade maior de atendimento à nova demanda por cuidados de crianças com deficiência – tem implicado a oferta de serviços e políticas prioritariamente às famílias de bebês com microcefalia, como podemos observar na Figura 17:

Figura 17 – Políticas para famílias de bebês com ou com a síndrome congênita do vírus Zika136

Fonte: Sítio do Ministério da Saúde. Disponível em: http://combateaedes.saude.gov.br/pt/ Acesso em 20/3/2017.

A priorização é apontada como problemática por ativistas das pessoas com deficiência, na medida em que cria conflito entre quem precisa de atendimento. De acordo com Pollyana Dias (entrevista de 16/11/16), crianças deficientes com tratamento em curso deixam de ser atendidas pela Associação de Apoio a Criança Deficiente (AACD) porque havia a necessidade de atendimento multidisciplinar para crianças com microcefalia137. Durante as falas das mulheres mães de bebês com

microcefalia há uma preocupação constante com a possibilidade de perda do tratamento na medida em que as equipes multidisciplinares podem alegar falta de desenvolvimento da criança, uma vez que não há ou não podem ser estabelecidos critérios objetivos para mensurar o desenvolvimento, para darem alta a suas filhas e oferecerem o tratamento a outras crianças.

As crianças portadoras da Síndrome Congênita do vírus Zika trazem uma nova complexidade para as políticas de atendimento a pessoas com deficiência na medida em que as decisões políticas estão vinculadas à visibilidade nacional e internacional do surto. Por um lado, dada a visibilidade da doença e a sua extensão, expõem a falta de oferta suficiente de atendimento multidisciplinar a pessoas deficientes assim como a existência de falhas no processo de concessão de benefícios, como veremos na próxima seção. Por outro, dada a demanda por soluções emergenciais para essas pessoas vitimadas pela falta de cuidado do poder público com a saúde das mulheres, essas crianças terminam por ameaçar o acesso de outras pessoas deficientes ao tratamento, na medida em que a aparente falta de

136 A prioridade no Programa Minha casa, minha vida foi anunciada por Michel Temer após ter sofrido críticas de Dilma Rousseff quanto aos cortes orçamentários previstos em programas sociais. (http://odia.ig.com.br/brasil/2016-07- 14/temer-determina-prioridade-de-casos-de-microcefalia-no-minha-casa-minha-vida.html, acesso em 9/4/2017). 137 Entre as campanhas de atendimento a bebês com microcefalia a da Secretaria de Saúde de Pernambuco foi bastante criticada. A chamada da campanha é “Para a microcefalia, oferecemos macroamor”. A pergunta que se coloca então é “o que se oferece para as outras formas de deficiência?”.

urgência de outros casos e a invisibilidade que causa o descaso para com essas pessoas permite que elas sejam consideradas não prioritárias no atendimento de saúde.

Além das políticas citadas anteriormente, destacamos algumas ações voltadas para lidar com os efeitos da infecção pelo vírus Zika: centros de referência e propostas para mulheres grávidas. Os centros de atendimento multidisciplinar são espaços em que as crianças recebem cuidados de equipes de fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogas e psicólogas de forma a cumprir as diretrizes de estimulação precoce sugeridas pelo MS no manual citado. Em sua maioria, localizam- se em cidades maiores dos estados brasileiros, normalmente em capitais, o que representa uma dificuldade para as mulheres que vivem nas pequenas cidades do interior para acessá-los. Como veremos na próxima seção, chegar aos centros após conseguir uma vaga também é um desafio.

Quanto às mulheres grávidas, não foram postas em prática ações relacionadas com a distribuição de repelentes e mosquiteiros. O governo federal, que desde 2016 tem tomado medidas para reduzir o gasto social, destinou R$ 119 milhões para distribuir 3,5 milhões de testes serológicos para a infecção por Zika138. A falta de recursos está tornando difícil mesmo para os centros dedicados

a lidar com gravidezes de alto risco para usar o teste para os casos suspeitos. Adriana Scawuzzi, coordenadora do Centro de Atenção às Mulheres do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP)139, afirmou, em seu pronunciamento durante a Audiência Pública de 10/2/2017, na sede do Ministério Público de Pernambuco, que o hospital de que é coordenadora assumiu o seguinte protocolo para o uso do teste serológico: dado que a quantidade disponibilizada é insuficiente, o teste é usado apenas após o parto de um bebê nascido com microcefalia e sua mãe. Em outras palavras, em vez de ter um papel como diagnóstico para uma gravidez que necessita de monitoramento mais constante e atendimento prioritário, o teste serológico vem sendo utilizado para os interesses da investigação etiológica e produção de achados sobre a relação do vírus com o desenvolvimento de sua Síndrome Congênita, o que tem pouca valia para as gestantes que, por exemplo, poderiam alegar a necessidade de realizar um aborto, demandar direitos e mesmo preparar- se para a chegada de uma criança que demanda cuidados intensivos e de longo prazo.

138 Disponível em: http://combateaedes.saude.gov.br/pt/noticias/856-ministerio-da-saude-vai-distribuir-teste-rapido-de- zika Acesso em 20/3/2017.

139 O IMIP “é uma entidade filantrópica, que atua nas áreas de assistência médico-social, ensino, pesquisa e extensão comunitária. Voltado para o atendimento da população carente pernambucana, o Complexo Hospitalar do IMIP é reconhecido como uma das estruturas hospitalares mais importantes do País, sendo centro de referência assistencial em

diversas especialidades médicas” (Sítio institicional. Disponível em:

Tendo em vista que os testes não são disponibilizados para todas as pessoas, amplia-se a dificuldade do planejamento reprodutivo. Desde junho de 2016 é conhecida a transmissão sexual do vírus. Mas como saber se o parceiro está contaminado sem a realização do teste serológico em homens? O MS determina que gestantes e crianças têm atendimento preferencial no uso desses testes. Como então fornecer meios de pessoas que querem ter filhas/os agora possam saber se é ou não o momento ideial?

Apenas em 9 de dezembro de 2016 foi concluído o pregão para a compra de repelentes a ser distribuído para as gestantes beneficiárias do Bolsa Família. Além da demora no procedimento de compra, afinal em novembro de 2016 a OMS declarou o fim da ESPII e o que se tem acompanhado é a redução no número de pessoas infectadas pelo vírus Zika mais recentemente, a escolha do método de pregão para a compra de repelentes denota a desconsideração da especificidade dos repelentes necessários para afastar o Aedes Aegypti, uma vez que esta modalidade de compra beneficia o preço em relação à qualidade dos produtos adquiridos.

Quase dois anos após o início do surto, algumas políticas foram anunciadas, mas muito pouco foi feito para transformá-los em direitos para as mulheres e crianças. De mais evidente nesse processo de atribuição preferencial de atendimento às famílias de bebês com microcefalia é o apelo midiático da epidemia, juntamente com a mobilização internacional em torno dela, o que pode gerar efeitos negativos em futuro próximo, dado que a tendência é de que com a redução do número de casos e a familiarização com a doença, a comoção social em torno deste vírus deixe de existir140. Assim, juntamente com as outras portadoras de deficiências as crianças portadoras da Síndrome Congênita do vírus Zika lutarão também contra a invisibilidade.

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