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2.2 ARTICULAÇÕES DAS INSTÂNCIAS DA ECONOMIA MORAL

2.2.1 Moral e ética



Etimologicamente, moral vem do latim mos, moris (maneira de se comportar regulada pelo uso) –costume - e de moralis, morale (relativo aos costumes). Ética vem do grego ethos (costume). A moral e a ética são distintas, sendo a moral prática e imediata, visto que corresponde a um conjunto de normas que regem a vida do indivíduo e da sociedade, apontando o que é bom e o que é mal, influenciando os juízos de valores e as opiniões. Em contrapartida, a ética é uma parte integrante da filosofia. Ela faz uma reflexão filosófica de caráter universalista sobre a moral, a fim de analisar as noções, os princípios, as causas, bem como as consequências das ações dos indivíduos para a sociedade.

Segundo Aristóteles (1992), o homem é um animal por natureza social e político. Logo, podemos afirmar que a moral tem um papel social. E, sendo a moral o

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Considerando-se que tudo na sociedade é representação e prática, Chartier (1990; 1991) busca mostrar como as práticas destas representações estão presentes nas apropriações feitas por todos os grupos, seja por aceitação ou por imposição

conjunto de regras que determinam como deve ser o comportamento dos indivíduos em grupo, depreende-se que se trata de um comportamento que é adquirido nas interações sociais35.

Ao longo da história das sociedades humanas, filósofos foram responsáveis por diversas concepções de moral, como veremos a seguir. A noção de "moral" difere, dependendo de contextos social, cultural e histórico. Esse dado nos leva a entender que existem implicações para os estudos de economia moral (SAYER, 2004, p. 2).

Além disso, a existência de diferentes noções é estabelecida no tempo histórico (ex. Idade Média e Idade Moderna) e no espaço (ex. contextos rural e da cidade), ou seja, as noções podem variar e depender do ponto de vista em diferentes momentos históricos, defendido por diferentes disciplinas ou até mesmo dentro de uma mesma sociedade,

No período clássico da filosofia grega, os sofistas acreditavam que os princípios morais não resultavam de convenções humanas. Por sua vez, Platão e Sócrates combatem o relativismo moral dos sofistas. Sócrates discorda dos sofistas e tenta encontrar aqueles princípios na natureza, conforme diálogos de Platão que descrevem as discussões socráticas a respeito das virtudes e da natureza do bem. Para ele, os conceitos morais se estabeleciam racionalmente mediante definições rigorosas que depois seriam assumidas como valores morais de validade universal.

Para Platão, os conceitos ético-políticos são como Ideias - Justiça, Bondade, Bem, Beleza, etc.-, sendo eles eternos e intrínsecos à alma dos homens. Segundo o filósofo, a felicidade consiste no equilíbrio entre a justiça e suas virtudes, tendo a razão como guia.

Aristóteles dá continuidade ao pensamento de Platão e aprofunda a discussão a respeito das questões éticas. Entretanto, no seu ponto de vista, o homem busca a felicidade, que consiste na vida teórica e contemplativa cuja plena realização coincide com o desenvolvimento da racionalidade. O que há de comum



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no pensamento dos filósofos gregos36 é a concepção de que a virtude resulta do trabalho reflexivo, da sabedoria, do controle racional dos desejos e paixões.

Durante a Idade Média, as noções éticas estavam diretamente ligadas aos valores religiosos, devido à visão teocêntrica predominante naquele período. Assim, o bem e o mal se vinculavam à fé e à esperança de vida após a morte. Na perspectiva religiosa, o homem moral se identifica com o homem temente a Deus, o homem de fé, já que os valores são considerados transcendentes, pois são doações divinas.

A questão se inverteu na Idade Moderna com o Iluminismo, no século XVIII, quando moralidade e religiosidade não são mais inseparáveis, sendo possível um homem ateu ser moral, afinal, o fundamento dos valores não está em Deus, mas no próprio homem, já que nesse período a capacidade humana de conhecer e agir vem da razão. O Iluminismo fornece três justificativas para a norma moral: ela se funda na lei natural (teses jusnaturalistas, fundamenta-se a partir do que é natural ao homem), no interesse (teses empiristas, nas quais a ação humana busca o prazer e evita a dor) e na própria razão (Kant).

Kant entende que o agir moralmente se funda na razão e a vontade humana é moral quando regida por imperativos categóricos, que são incondicionados, voltados para a realização da ação tendo em vista o dever. Para Kant, a lei moral que a razão descobre é universal, pois se trata de descoberta do homem enquanto ser racional, e é necessária para a preservação da dignidade dos homens.

Assim, a visão de Kant se contrapõe às concepções das filosofias grega, cristã, e das que norteiam a ação moral a partir de condicionantes como a felicidade ou o interesse.

No século XIX, houve a preocupação em compreender a vidas dos homens em suas relações sociais, motivado pela luta travada entre capitalistas e proletariados. Para Marx, o modelo de produção da vida material se reflete na



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Oshomensgregos,porseremmembrosdeumacomunidade,nãosãocompreendidosindividualmente,mas coletivamentecomocidadãos.

consciência humana, moral. Estas mudam de acordo com as transformações dos meios de produção.

Ainda no século XIX, Nietzsche analisou a moral sob uma perspectiva histórica, e criticou o modelo de Sócrates por levar a reflexão moral em direção ao controle racional das paixões, pois é assim que surge a desconfiança do homem em relação aos seus próprios instintos. O mesmo afirma serem a moral e a vida incompatíveis, uma vez que o homem dominado pela moral se enfraquece, adoece e se culpa.

A crítica à moral tradicional por Nietzsche visa a indicar a “transvaloração” dos valores. Ele critica a falsa moral, “decadente”, “de rebanho”, “de escravos”, cujos valores seriam a bondade, a humildade, a piedade e o amor ao próximo. Contrapõe a ela a moral “de senhores”, uma moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus instintos fundamentais. Parece-nos que essa moral se assemelha à que é associada à economia na perspectiva da moralidade econômica.

Em abordagens antropológicas, por exemplo, moral refere-se a trocas nas quais os objetivos não são o lucro econômico, mas "manter o status social e prestígio, ou seja, a acumulação de capital simbólico e social, a coesão social de um grupo, ou a estabilidade em longo prazo de um sistema econômico" (NARE, 2013, p. 603).

Nesse sentido, podemos ver que o lucro é posto de lado e há uma clara prevalência de noções morais nas relações sociais e econômicas, reforçando a ideia de Smith (1984) de moralidade nas relações sociais, políticas e econômicas.

Para Smith (1984), o comportamento moral do homem é essencial para a harmonia social e esse comportamento está profundamente ligado à moral ou à ética e se relaciona com muitos sentimentos ou emoções morais37, tais como o auto-

interesse38, inerentes à natureza humana. O autor acrescenta que a ética traz à vida

comunitária dos homens benefícios práticos e espirituais, constituindo-se em um

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ParaSmith(1984),emoçãoéconsideradadeumaformacognitivaquenãoseopõeàrazão. 38

importante instrumento para a existência da sociedade e à compreensão dos processos econômicos.

Como resultado, distanciar a ética da economia e, consequentemente, dos valores, como honestidade e generosidade, contribui para influenciar o comportamento das pessoas e, consequentemente, da economia, se considerarmos uma perspectiva que abarca a Teoria dos Sentimentos Morais39 (SMITH, 1984;

SAYER, 2004).

Em um processo dialético, tomamos a definição de Sayer (2004) que considera moral e ética como normas e valores em relação ao comportamento que afeta os outros, o que implica "certas concepções do bem"; e utiliza os termos moral e moralidade indistintamente e de forma ampla para incluir as preocupações de ambas, ética e moralidade.

O autor destaca a importância da moralidade, quando afirma que "como seres sociais, dificilmente podemos participar de qualquer interação social ou relações sem tomar decisões morais, embora a maior parte do tempo estas são feitas 'no automático' por ter disposições éticas" (ibid, p. 3). Isso mostra a importância e prevalência da moralidade em nossas relações sociais e sua influência em nossas atitudes e comportamento na sociedade.

Além disso, o referido autor argumenta que "hábitos éticos e convenções, construção discursiva e interesses de pesquisa e poder40" (ibid) são bases para o comportamento humano e acrescenta que "a dimensão moral é generalizada, na verdade, o poder, muitas vezes, depende de atores que têm compromissos morais"41 (ibid). Essas citações nos dão uma visão da relação dialética entre a ética,

 39 Portanto,Sen(1982)enfatizaanecessidadedeinvestigarmaiscuidadosamenteopapeldamoralidadeno comportamentohumano. 40 Poderé“acapacidadetransformadoradaaçãohumana,acapacidadepara‘intervirnumasériedeeventos tantoquantoparaalteraroseucurso’”(FAIRCLOUGH,2003,p.41).SegundoWodak(2001,p.11),“poderse referearelaçõesdediferençaeparticularmenteaosefeitosdadiferençanasestruturassociais”. 41 Bourdieu(2003)utilizouanoçãodehabitusformadapelosistemadedistinçõesprovocadopelasposições individuais tomadas no espaço social, de acordo com seus capitais econômico e cultural e nas diferentes práticas de consumo. Por isso, sendo um conceito multidimensional, devemos considerar a moral e a ética comopartedohabitus,bemcomosuanaturezaincorporada(SAYER,A.2005,p.51).

discurso e poder e corrobora a influência da moral e comprometimento das pessoas com ela (moralidade); e para o estabelecimento do poder.

Em uma perspectiva de ampliação do escopo de tais alegações para o campo institucional, a exemplo das instituições financeiras, Sayer complementa destacando que "as instituições também são baseadas em normas que podem ter - ou ser reivindicados ter - um caráter moral". Esse trecho, além de expandir o foco para as instituições, reitera a função de normas e moral em suas relações econômicas.

O caráter moral acima se refere ao conjunto de normas econômicas,

responsabilidades éticas e obrigações assumidas pelas instituições para demonstrar o compromisso nas relações econômicas em relação à sociedade. Sayer (2004) critica a visão da moralidade como um conjunto de normas e regras, apoiadas por sanções, indicando que esta é uma "concepção alienada da dimensão moral da vida social" (op. Cit), porque este autor desconsidera a força interna do comportamento moral.

Na verdade, percebemos que não há uma definição de moral predominante, pois diferentes grupos sociais desenvolvem diferentes moralidades e lutam por elas, a fim de defender seus interesses em uma variedade enorme de ações humanas como relações cotidianas, na política e na economia, por exemplo.

A seguir, apresentaremos uma síntese das noções de economia, capitalismo e mercado, com a intenção de esclarecer seus conceitos para tornar a compreensão do nosso trabalho mais fácil.