• Nenhum resultado encontrado

2 Vieux Os no ciclo haitiano

2.2. Um narrador adolescente

Os momentos infantis de Vieux Os terminam com duas obras recheadas de erotismo:

Le Goût des jeunes filles (2017) e La Chair du maître (2002), ambas dedicadas à fase

adolescente e jovem deste narrador.

A narração deste primeiro livro, Le Goût des jeunes filles (2017), é alternada entre quatro narradores-personagens: Vieux Os-Adulto, Vieux Os-Adolescente, Dany Laferrière- Personagem e Marie-Michèle31. O romance começa com o Vieux Os-Adulto relatando seu cotidiano, sua ligação com a tia Raymonde, e sua vivência na cidade de Miami. Em uma cena na banheira, ele é interrompido pelo telefonema de Miki, uma mulher que despertou fortes paixões na juventude. Ela pede que ele compre a revista Vogue do mês, a que estaria estampada com a foto de Pasqualine32, nos anos 60.

Após o telefonema de Miki, Vieux Os-Adulto compra a revista e se depara com uma entrevista de Marie-Michèle, uma antiga conhecida que fazia parte do grupo de amigas de Miki. A matéria de moda indicava que a haitiana entrevistada havia publicado recentemente um diário de sua juventude, ambientado em Porto Príncipe. Logo, Vieux Os-adulto decide comprar o livro dela.

O escritor haitiano (Vieux Os-Adulto) abandona a narração, criando um narrador- personagem homônimo do autor Dany Laferrière. Ou seja, Dany Laferrière-Personagem interfere em vários momentos da narrativa, dirigindo e roteirizando um filme, o qual possuirá a narração de Vieux Os-Adolescente. Desta maneira, o Vieux Os da puberdade contará como foi sua convivência com Miki e suas quatro amigas, durante um fim de semana turbulento. Simultaneamente, trechos do diário de Marie-Michèle se alternam com o filme de Dany Laferrière-Personagem, narrado pelo jovem Vieux Os.

31

Adotamos estas nomenclaturas como auxílio para a exposição a respeito dos narradores apenas na obra Le

Goût des jeunes filles (2017).

32

Uma jovem estilosa que fazia parte de um grupo de garotas populares, as quais moravam próximo da casa do narrador-personagem.

Vieux Os-Adolescente apresenta um perfil casto às mulheres de sua casa, a mãe e as tias, embora se meta em confusões com seu amigo Gégé, um jovem problemático que possui o hábito de pregar peças nas pessoas e costuma frequentar os lugares mais perigosos de Porto Príncipe. A história contada pelo narrador-personagem adolescente é uma destas confusões que os dois garotos promovem.

Em um bairro perigoso da capital haitiana, Vieux Os-Adolescente espera por Gegé, especificamente no Macaya Bar, lugar frequentado por prostitutas e militares pertencentes ao exército ditatorial. Um destes militares estranha a presença de Vieux Os-Adolescente e decide implicar com ele. Após saber do ocorrido, Gegé pede que o amigo espere do lado de fora do bar, enquanto ele vai até lá. Gritarias e barulhos de tiros são ouvidos pelo garoto amedrontado, enquanto o rapaz encrenqueiro retorna ao encontro dele, anunciando fuga do local. Durante a correria, Gegé lhe mostra o motivo da confusão; ele estava com as mãos ensanguentadas segurando os testículos do militar que ameaçou o amigo. Em seguida, Vieux Os-Adolescente, em desespero, pede refúgio a Miki. Deste modo, o jovem adentra a vida do grupo de amigas de Miki, bem como a própria vida da garota, uma vez que ela acaba sendo a primeira relação sexual dele.

Esta obra possui fortes críticas ao contexto haitiano: às classes sociais, aos aspectos históricos e, sobretudo, à cultura pop, consumida pelas personagens. Porém a mulher haitiana é foco de Vieux Os, seja ela de classe baixa, média ou alta. Podemos destacar um evento importante para a compreensão do erotismo e da imagem da mulher haitiana: o episódio em que as amigas de Miki e ela decidem sair no carro de Papa, um homem casado que possui relações extraconjugais com a maior parte das jovens deste grupo. Durante o passeio, as garotas escutam uma música no aparelho de som do carro. O ritmo desempenha grande influência em Marie-Erna. A música faz com que a menina entre em uma espécie de transe:

O solo de guitarra as prendem pelo ventre. Marie-Erna se inclina para frente, a cabeça apoiada contra o banco de Papa, como se ela acabasse de receber um violento soco no estômago. Enfraquecida. Os olhos embaçados. A música a trabalha no ventre. Um corpo a corpo sem piedade. A voz rouca do cantor é como um gancho. Corpo em transe. Rítmo Ibos. Érzulie Dahomey. Os Ioas de Guiné. Na Buick 57. Marie-Erna cai, esgotada. Pescoço quebrado. Espuma no canto dos lábios. A Buick vira na esquina da Cabana Crioula. As meninas riem se salpicando perfume e pó 33 (LAFERRIÈRE, 2017, p. 75, Tradução nossa).

33

“Le solo de guitarre les prend au ventre. Marie-Erna se penche en avant, la tête appuyée contre le siège de Papa comme si elle venait de recevoir un violent coup de poing à l‟estomac. Pantelante. Les yeux hagards. La musique la travaille au ventre. Un corps à corps sans pitié. La voix érraillée du chanteur la revèle d‟un uppercut. Cops en transe. Rythmes Ibos. Erzulie Dahomey. Les Ioas de Guinée. Dans la Buick 57. Marie-Erna tombe,

O possível transe que acontece com Marie-Erna, evocando a figura da deusa Érzulie, permite-nos compreender seu poder de sedução, como algo proveniente do sobrenatural. Deste modo, a figura da deusa garantirá o tema erótico na obra, potencializando o teor sensual das personagens femininas presentes no carro. Marie-Erna experimenta os efeitos de uma deusa que além de ciumenta é detentora de grande luxúria, como é comprovado por Vieux Os em sua visita ao mundo dos deuses do panteão vodu, na obra Pays sans chapeau.

Em La Chair du maître34 (2002), um livro de crônicas, Vieux Os continua sua exposição sobre como era sua adolescência no Haiti. O narrador-personagem, adulto, rememora vagamente sua adolescência e conta como foi que descobriu sua paixão pelo sexo oposto. Com descrições suscintas sobre os corpos das mulheres, o adolescente conta sobre as suas experiências e seus diverções, em uma época difícil como a da ditadura haitiana:

Esse sentimento dominou minha adolescência (e a dos meus amigos). O perigo estava por toda parte na cidade. Os tubarões passavam tanquilamente no lago ou circulavam pela cidade [...] Um mundo de trevas. Apesar de tudo, eu era como um peixe na água. Sabia como evitar os tubarões 35 (LAFERRIÈRE, 2002, p.15, Tradução nossa).

Além dessa crônica, o livro não possui histórias narradas por Vieux Os. Acontece que essa obra se limita a desenvolver narrações ambientadas no Haiti e que detém uma grande diversidade de temáticas, bem como de narradores. Encontramos pronunciamentos tanto sobre as relações sexuais e raciais, quanto a respeito dos mitos e do contexto político do Haiti, nas narrações de outras personagens.