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Motivações que levaram as organizações a adotarem os princípios da convivência

CAPÍTULO 4 O CONCEITO DE CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO NA

4.3 Motivações que levaram as organizações a adotarem os princípios da convivência

O que motivou as instituições da sociedade civil a adotarem outro princípio em suas práticas organizacionais? O que as levou a ir se diferenciando das práticas governamentais? Podemos argumentar que foi a reflexão crítica gerada pela sensação de incômodo e de estagnação decorrente do trabalho realizado que reproduzia, cumpria e repetia o mesmo ciclo presente nas organizações governamentais - seca versus carro pipa versus conflitos com políticos e autoridades versus êxodo rural - sem que as mesmas mudassem ou acarretassem alterações significativas, na vida das pessoas, na vida das próprias organizações e de suas equipes técnicas.

Isso levou as instituições ao questionamento tanto de suas práticas quanto das suas políticas, uma vez que, trabalhando na mesma perspectiva de combate à seca, reproduziam, em uma escala menor, as mesmas práticas governamentais. Passaram, assim, a refletir e observar o clima, a olhar a experiência e a forma das famílias e das comunidades de lidarem com a situação de seca, fatores esses nunca, antes, considerados como relevantes, significativos ou mesmos estruturantes, para os seus projetos, programas e políticas.

Na realidade, acredito que tem toda uma trajetória vinculada, sobretudo à experiência que a Igreja apoiou. De certa forma, a Igreja foi chamando para que essas comunidades buscassem soluções e formas de enfrentar a seca. Essa trajetória tem uma história marcada por essas experiências apoiadas pela Igreja e, por um lado, as organizações da sociedade do nordeste do semiárido começaram um

processo de articulação e de construção de uma leitura mais crítica sobre a política, até então, implantada pelo governo, em relação à forma como enfrentava a seca – que era muito voltada para a coisa da emergência. Por outro lado, buscando elaborar a sua própria proposta e leitura sobre aquela realidade. (Marilene Nascimento Melo, ASP-TA, Paraíba).

Toda a história do semiárido brasileiro que nós sempre ouvíamos falar era de que era seco. Baseado nesse conceito, as organizações, principalmente as organizações não governamentais e, na década de 80 do século passado, a Igreja foi bastante importante (...). Essas organizações e comunidades eclesiásticas de base começaram a refletir sobre o nosso semiárido brasileiro. Essa reflexão parte, inclusive, para olhar as experiências dos agricultores, as experiências das famílias. Nós percebemos que as famílias sempre desenvolviam experiências e organizações, formas de organizações para a convivência com o SAB. O que acontecia é que os programas das políticas públicas eram sempre desenvolvidos sem considerar essas iniciativas dos agricultores. (José Camelo da Rocha, ASP-TA, Paraíba).

(...) começa a perceber que os exemplos das pessoas mais pobres que vivem na região fornecem elementos preciosos para se perceber que, em vez de lutar contra, de combater, você vai ter que, realmente, buscar formas de conviver. A seca de 1993, eu convivi de perto com muita gente que sofreu os horrores dessa seca, e via, nesses sofrimentos, quantas lições dessas pessoas que buscavam “tirar leite das pedras” para poder sobreviver com seus filhos, para evitar migrar para centros urbanos. As pessoas relacionando a busca e a posterior preservação das fontes d’água que possam matar a sede das pessoas, a busca de alternativas alimentares, ou melhor a busca de ter segurança alimentar. Eu me lembro que nessa época não tinha nem esse termo segurança alimentar. Ele ainda não tinha sido cunhado. Não sei quem foi que cunhou o termo, mas eu ouvia dessas famílias com quem eu encontrava sempre um outro conceito que era a preocupação de perguntar: “fulano o legume que você produziu dá para ‘encostar’ no próximo ano?” Alguém dizia assim: “eu tenho milho, eu tenho feijão que dá para dois anos”. Significava que ele estava prevenido, preparado para enfrentar uma situação adversa de seca ou até de enchente que prejudicasse as suas colheitas. São pequenas coisas que revelavam nessa ideia de que a produção dá para encostar no ano seguinte. Ter milho, feijão, arroz ou farinha guardado mostrava que as pessoas tinham, têm essa capacidade de se prevenir. (Pedro Jorge Bezerra Ferreira Lima, ESPLAR, Ceará).

Outro dado importante, resgatado por Harald, foi em relação ao contato que algumas organizações passaram a ter com o movimento da “agricultura alternativa27”. De acordo com o entrevistado, o contato com essas novas práticas e novas ideias contribuiu muito, tanto para se pensar novas formas da produção agrícola quanto para passar a considerar o clima como um fator importante e determinante na relação com as práticas produtivas e com os ecossistemas. Apresentando-lhes teorias e princípios sistêmicos regidos por leis naturais e cíclicas,

a proposta começa a ser pensada entre os anos 80 e 90 do século passado. Nós estávamos trabalhando na Diocese de Juazeiro e começou o fim da ditadura militar. O movimento da agricultura alternativa passa a ter visibilidade. Procurando plantar

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Agricultura Alternativa é um termo que reúne e é utilizado pelas correntes de agricultura que se diferenciam da agricultura convencional, do padrão predominante de agricultura, também conhecido como revolução verde. As primeiras correntes alternativas ao modelo industrial ou convencional de agricultura surgiram a partir de 1920. Entre elas, estão: a agricultura orgânica, agricultura biológica, agricultura natural, agricultura biodinâmica e outras que foram surgindo posteriormente. Porém, só em 1970, essas correntes passam a se reunir e se identificar sob a denominação de agricultura alternativa.

sem adubo químico, sem veneno. Nós tivemos muitos congressos naqueles anos (....). Então nós vimos que era possível ter sucesso na agricultura, na pecuária sem os insumos químicos. Na mesma época que eu descobri isso, percebi que todo mundo falava de agricultura de chuva, onde havia bastante umidade, o clima temperado mais regular. (...) além de termos os conceitos de uma agricultura moderna em termos de saúde e orgânica, nós tínhamos que saber mais alguma coisa em relação ao clima. Os desafios do clima. Nós começamos a consultar livros, estudar, ver a proposta de outros países, especialmente a África, mas também a Índia. Se aprofundar em questões do clima e do ecossistema e analisar como poderia ser uma produção equilibrada mesmo em anos de pouca chuva. Então, nós começamos a nos chocar com a expressão tem seca no nordeste. (Harald Schistek, IRPAA, Bahia). E vai ser a partir desse novo princípio orientador e de um posicionamento crítico em relação à seca e na forma de interpretá-la que a sociedade civil desconstrói a política de combate à seca no seu fundamento teórico. Isso porque a existência de períodos irregulares de chuva no tempo e no espaço faz parte da lógica do sistema climático do semiárido. É uma condição, um dado inelutável contra o qual pouco se pode fazer, mas, a favor do qual muito se pode fazer.

Nós percebemos que o problema não estava na seca, na falta de água. Estava na falta de infraestrutura para armazenamento e captação dessa água que tem no semiárido e que seria suficiente para abastecer toda a comunidade se nós tivéssemos condições de armazenar toda a água que cai. (José Camelo da Rocha, ASP-TA, Paraíba). Nesse sentido, a noção de convivência com o semiárido só aparece mesmo na medida em que se reconhece essa dimensão, essa transcendência, quase; é quase uma transcendência da questão ambiental. Começa por comparação (...) começou discutindo a ideia que durante anos dominou a mentalidade da sociedade brasileira e de todos os nordestinos, que era o projeto de combate à seca. Depois de muitos séculos você descobre que você não pode combater a seca, porque a seca é um fenômeno natural, não é uma coisa aleatória. Faz parte do ecossistema, do ambiente do semiárido. Então, o que nós temos que aprender é como lidar com esse fenômeno. Como nos preparar? Como conviver com esse fenômeno? De que maneira? Do mesmo jeito que o pessoal do Alasca convive com o inverno rigorosíssimo. É necessário aprender a conviver com as condições ambientais que são dadas. Um dos aspectos dessa condição ambiental do semiárido é que, periodicamente, você tem seca. (Sílvio Santana, Fundação ESQUEL, Brasília).

4.4 Impactos, consequências e desdobramentos do entendimento da ideia de semiárido nas organizações e políticas públicas

Analisando os impactos, as conseqüências e os desdobramentos do entendimento da ideia de semiárido, tanto na prática institucional das organizações entrevistadas como nas políticas e na sociedade, de modo geral, que vive no SAB, identificamos os seguintes aspectos descritos e considerados fundamentais, pelos/as colaboradores/as, na trajetória do conceito e, consequentemente, na orientação e nas práticas que essa nova perspectiva apresenta e representa. São eles: a) um novo entendimento e concepção; b) uma nova possibilidade de percepção, reflexão e ação; c) uma compreensão mais adequada; e d) um diagnóstico mais

apropriado que possibilita desfazer os mitos existentes sobre a realidade da região.

O primeiro mito desconstruído, apontado, foi o mito da seca, com toda a carga simbólica, as conseqüências e as interpretações existentes em torno dela. Uma compreensão adequada do semiárido desfaz o segundo mito, que está relacionado ao primeiro que é o mito da região inviável, em função da seca, de origem exógena (climática), da ausência de água, absolutamente dissociada das relações sociais, culturais e produtivas - e a ideia de natureza associada a ela – uma natureza em estado de anomia, fora de ordem, defeituosa, árida e destituída de predicados.

O conceito de semiárido é um novo entendimento. Uma nova concepção. (...) uma compreensão mais adequada, um diagnóstico mais apropriado que ajuda a desmontar uma série de mitos que se tinha a respeito dessa região. (...) Hoje você tem uma compreensão muito mais clara que essa região não é seca. Ela é uma região que tem boa pluviosidade, que tem chuvas no tempo e no espaço. Então, a questão não é a falta de água, não é falta de chuva. A questão é como você constrói uma tecnologia adequada, uma infraestrutura adequada para assegurar a captação de água no momento em que ela cai, para você ter no momento em que ela não vem. Esse é o primeiro grande passo. Ajuda a derrubar mitos. O segundo que está muito correlacionado com o primeiro é que nós temos dados que nos dizem que essa região é perfeitamente viável. Ela é perfeitamente viável desde que você realmente desenvolva uma cultura e uma infraestrutura de tecnologias adequadas a esse ambiente. Com isso, tem todos os desdobramentos sociais e culturais. É possível viabilizar a vida. É possível viabilizar a dignidade humana, o trabalho, a segurança hídrica e a segurança alimentar. (...) É um conjunto e você está desfazendo o mito da região inviável, tendo uma visão mais adequada de que essa é uma região viável. (Roberto Malvezzi, CPT Nacional, Bahia).

A ideia de semiárido desmistifica o fenômeno da seca que passa a ser compreendido como um fenômeno parcial, localizado que integra um sistema maior, regido por leis ecossistêmicas e que possui regularidade, que é natural a esse ambiente. Ela é ainda mais ampla e vai mais além. Está associada aos aspectos culturais, sociais, políticos e ambientais. E a mudança de perspectiva em relação à seca não se circunscreve aos aspectos teóricos e conceituais. Essa mudança altera a estratégia na qual se introduzem as dimensões da política de convivência com o SAB.

A grande conquista nessa mudança é entender que a seca no semiárido é algo natural de uma região para trabalhar a dimensão das políticas de convivência. (...) Seca, tem um período da seca. O semiárido é uma leitura mais ampla que não está restrita a um momento de estiagem prolongado. Porque seca é estiagem prolongada. Semiárido vai mais além. Eu vou pensando nas estiagens prolongadas, mas penso que no semiárido tem chuva, que no semiárido tem uma qualidade de solo, que no semiárido tem um povo, que no semiárido tem uma cultura. Esse é o grande avanço. É pensar, se eu fosse dizer o polígono da seca, que no semiárido tem cultura, tem vida, tem dimensões sociais, ambientais. Então, é necessário tratar dele não como restrito a um período de políticas pontuais, emergenciais e de políticas não estruturantes. Só fragmentos. Essa é, vamos dizer assim, a grande mudança que não é só conceitual, mas é uma mudança de estratégia de política. (Harald Schistek,

IRPAA, Bahia).

No capítulo II deste estudo, fazemos referência às representações sociais de natureza e às funções que as mesmas desempenham no universo e contexto social onde estão inseridas. Elas traduzem uma interpretação de natureza e do contexto que está associado à cultura e a um sistema ético de regras, condutas e de comportamento dos humanos em relação ao seu ambiente e em relação aos outros humanos. Em suma, um sistema de sociabilidade entre os humanos com os humanos e entre os humanos, as coisas e o mundo.

E é em meio a essa “nova interpretação” sobre a seca, o semiárido e natureza que surge a ideia de convivência com o semiárido e o respectivo sistema de sociabilidade, de regras e de comportamentos relacionados a ela. Dentre as conclusões apontadas relacionadas com esta nova interpretação e sistema de sociabilidade, está a possibilidade e a grande vantagem de reivindicar e estruturar programas políticos e ações adequadas e específicas à realidade; de querer e de poder reivindicar coisas próprias, adequadas e adaptadas ao SAB.

Nós podemos reivindicar. Nós queremos coisas próprias, apropriadas para o semiárido. Isso é uma vantagem” (Harald Schistek, IRPAA, Bahia).