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CAPÍTULO 4 O CONCEITO DE CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO NA

4.2 Os Primórdios do conceito de convivência

A análise dos dados nos permitiu inferir que, apesar de não haver um marco histórico definidor, uma data precisa, alguns fatos cotidianos da vida do povo do SAB e da vida institucional das organizações que integram este estudo são um marco recente da história do conceito. Podemos, assim, afirmar que a ideia de convivência não aparece pronta e, muito menos, que hoje já se encontra maturada. Ao contrário: O que podemos dizer é que ela se expressa como uma correia de transmissão, na qual os elementos conceituais que a compõem

vão se refinando “passo a passo” e em momentos históricos e políticos distintos.

O termo convivência foi utilizado, pela primeira vez, pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa e Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural – Embrater, no ano de 1982, com a apresentação do documento intitulado “Convivência do Homem com a Seca”. A proposta contida no documento, apesar do seu caráter tímido, sugere uma orientação governamental inovadora que propõe a implantação de sistemas de ‘exploração’, de forma a assegurar a convivência do ambiente com a seca.

Harald, um dos colaboradores, coloca que foi exatamente nessa época que as instituições, sobretudo a Igreja Católica, através de suas pastorais e dioceses e as organizações não governamentais, passaram a observar e refletir sobre as ideias que estavam circulando. A ideia-força que inicia a discussão sobre a convivência, como foi dito, foi a da convivência com a seca, veiculada pela Embrapa em 1982. No entanto, uma reflexão crítica foi elaborada em torno dela, em função do impacto, das repercussões e dos significados sociais que a seca representa, como veremos a seguir.

Começamos a pensar sobre o que estava circulando na época. Era a ideia de conviver com a seca. Era o início. Mas essa palavra não é oportuna, porque expressa exatamente isso que é conviver com alguma coisa ruim. Se você está na lama, você tem que conviver com a lama. Não é isso. É criar condições para você não viver mais na lama. Não é desejável conviver com uma coisa ruim, que não presta. Porque seca, no sentido que usamos, significa morte, fome, migração, catástrofe, simplesmente. Se você muda a frase e em vez de conviver com a seca, você diz conviver com o semiárido, então você diz que reconhece as condições climáticas como são, de fato, e procura meios de viver em harmonia com essas condições climáticas. Constrói o seu projeto de vida e de produção em cima dessas condições. O outro termo pressupõe uma coisa passiva, você aceita uma coisa ruim e procura se adaptar. (Harald Schistek, IRPAA, Bahia)

Se essas duas instituições governamentais iniciaram a utilização da ideia de convivência, dentro de uma perspectiva parcial e fragmentada, relacionando-a, exclusivamente, ao fenômeno da seca, então a transição para o conceito de convivência com o semiárido, elaborado pelos movimentos sociais e por parte da Igreja Católica, vai se delineando, aos poucos. Ele ganha contornos mais precisos, a partir dos anos 90 do século passado, precisamente, logo após a seca de 1993, como relata Malvezzi.

Não tem uma data exata, precisa. Mas começamos a discutir isso de forma diferente, a partir da década de 90, do século passado. Eu penso que essa questão do semiárido trouxe uma luz nova, porque havia uma confusão, pelo menos do ponto de vista popular, muito generalizada. O Nordeste era considerado uma só realidade climática. Mesmo com aquela divisão conhecida de litoral, agreste e sertão. (...) Esse foi o passo fundamental e, efetivamente, a própria Embrapa tinha pesquisado isso, a

grande divulgação da questão do semiárido veio através da sociedade civil e dos movimentos populares. (Roberto Malvezzi, CPT Nacional, Bahia).

(...) Sair de uma visão de combate à seca, de uma visão de que o semiárido precisa ser transformado, muito artificialmente, através de obras, para uma outra visão, eu creio que deve ter sido uma coisa que levou anos. Até que se chega um momento que, quem se dedica a trabalhar esse tema, seja estudando, seja pesquisando, seja quem tem uma vivência diária ou freqüente com o sertão semiárido, começa a perceber que os exemplos das pessoas mais pobres, que vivem na região, fornecem elementos preciosos para se perceber que, em vez de lutar contra, de combater, você vai ter que, realmente, buscar formas de conviver. (Pedro Jorge Bezerra Ferreira Lima, ESPLAR, Ceará).

Se pudermos, então, delimitar um marco histórico de transição para a sociedade civil pensar a implementação de uma cultura de convivência com o semiárido, esse é, sem dúvida, o ano de 1993. Terceiro ano de uma seca iniciada em 1990, a grave situação exigiu, por parte da sociedade civil, uma atitude enfática materializada com a realização de um ato público na cidade de Recife e a ocupação da sede da Sudene - como meio utilizado para tirar o Governo Federal, à época Itamar Franco, do seu estado inercial. Essas manifestações geraram não só o Programa de Ação Governamental, mas também propiciaram uma mudança qualitativa no posicionamento político da sociedade civil, pois com o processo de ocupação da sede da Sudene nasceu o Fórum Seca que congregou aproximadamente trezentas organizações com representantes dos sindicatos dos trabalhadores rurais, Igrejas e organizações não governamentais e promoveu um intenso debate sobre os problemas do semiárido, questionando as políticas que vinham sendo implementadas até então – políticas emergenciais expressa nas frentes de trabalho.

Foi o Fórum Seca um dos primeiros fóruns que tratou da dimensão do semiárido aqui no Nordeste. Inclusive, ele gerou outras articulações como a Articulação do Semiárido Paraibano, o Fórum do Rio Grande do Norte, que hoje não tem mais. Hoje, é a ASA do Rio Grande do Norte, o próprio Fórum pela Vida no Semiárido no Ceará e do Piauí também vem um pouco dessa trajetória. (...) O Fórum Seca teve um papel muito interessante na construção de políticas para o semiárido porque conseguiu articular um conjunto de pensadores, de sindicalistas, de pessoas ligadas à Igreja Católica, para produzir documentos. Por exemplo, o material da campanha do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de 1994, sobre o semiárido, foi construído no espaço do Fórum Seca. (José Aldo dos Santos, SABIÁ, Pernambuco).

O Fórum teve um papel fundamental na construção de propostas políticas para o semiárido por conseguir articular um conjunto de pensadores, de sindicalistas, de representantes ligados às igrejas católicas e pentecostais, que elaboraram o documento referência do Fórum que é o “Programa de Ações Permanentes para o Desenvolvimento do Nordeste Semi-Árido Brasileiro”. O documento tem, como foco, ações no fortalecimento da agricultura familiar, no uso sustentável dos recursos naturais e na democratização das

políticas públicas, que conduzam, de forma efetiva, uma integração de esforços entre as instituições governamentais e as da sociedade civil, para o eficiente aproveitamento do potencial existente na região. Podemos dizer que, até hoje, ele é um documento referência dos movimentos sociais e compreende propostas que implicam adoção de medidas de curto, médio e longo prazos. Elas foram concebidas, de forma interdependentes, para que se garantisse a continuidade de sua proposta e objetivos que são:

a) Melhorar efetivamente o nível de renda das famílias, até patamares que garantam a segurança alimentar (acesso assegurado à quantidade necessária de alimentos que garanta uma dieta adequada a todos os membros da família para uma vida saudável) e acesso a outros bens de serviços;

b) promover o acesso aos serviços básicos, na qualidade e na quantidade compatíveis com a dimensão da população rural do Nordeste/semi-árido; c) fortalecer o processo de organização da população rural, de modo a efetivar

um real exercício de cidadania” (FÓRUM NORDESTE, 1993, p.10).

Entretanto, devemos considerar que, antes da criação do Fórum Nordeste, uma parte considerável das instituições não governamentais que atuavam no SAB, inclusive as entrevistadas, ainda trabalhava na perspectiva do combate à seca. Os trabalhos e ações desenvolvidos eram de caráter pontual, focados mais nos períodos de estiagem, na perspectiva emergencial de garantir a permanência dos/as agricultores/as na terra, seguindo a mesma linha de orientação de ações emergenciais e assistencialistas governamentais de então. Não se trabalhava, ainda, com a visão de convivência e a perspectiva era centrada na ideia de combate à seca.

A Cáritas Regional do Ceará, na década de 80, desenvolvia alguns projetos que, inicialmente, eram vistos como projetos mais na linha emergencial. Eram mais para garantir a permanência do camponês e da camponesa na terra, principalmente, nos períodos de estiagem. Então, eram projetos que, por exemplo, tinha distribuição das sementes, de ferramentas de trabalho. Cada comunidade tinha o seu projeto individualmente e ia trabalhando essa questão do trabalho na terra, das lavouras, das hortas das pequenas iniciativas, cada uma isolada lá no seu município. (...) Na década de 90, especialmente na segunda metade é que foi crescendo, na Cáritas, essa compreensão de trabalhar na linha e na perspectiva da convivência com o SAB. No primeiro congresso da Cáritas Brasileira, que aconteceu no Ceará, foi definido, dentro da Cáritas, a nível nacional e, consequentemente, para nós, também, o Programa de Convivência com o SAB. (Maria Glória Carvalho, Cáritas Brasileira Regional Ceará).

Nós nos centrávamos muito em reivindicações que eu diria que não eram ainda de convivência com o SAB. Eram reivindicações para que fossem criadas melhorias de vida para as pessoas do sertão. Nós nos guiávamos, ainda, pelo conceito de combate à seca. (...) Elas eram centradas em determinadas ocasiões, ocasiões mais cruciais, mais duras, de período de estiagem. Mas já começava aparecer a necessidade de se ter obras mais duradouras, obras mais estruturantes. Não se tinha como se tem hoje, vamos dizer, uma visão de convivência com o SAB. A perspectiva era de combate. (...) Todos esses processos, nós participamos e já se sentia a presença de uma

perspectiva diferente. Não é ainda explicitado o conceito de convivência com o SAB, mas é uma perspectiva diferente de você não ter apenas obras momentâneas de combate à seca, de você não apenas fiscalizar as famosas frentes de trabalho, mas de começar a trabalhar perspectivas novas e, com isso, se comporia uma dimensão estruturante, na região. (Neidison Batista, MOC, Bahia).

A questão da convivência, nós recebemos de outras instituições, do pessoal da área técnica. De algumas ONGs que passaram a entender o SAB da forma que nós estamos entendendo hoje. Agora, o papel da CPT foi o de entender que você tem possibilidade novas e de querer transformar isso em lutas organizadas, e até em políticas públicas.Tem um fato muito concreto que é, por exemplo, quando começou a generalização da cisterna. Isso foi, mais ou menos, na década de 90, no município aqui da Diocese, chamado Campo Alegre de Lourdes. Nós tínhamos um trabalho lá muito grande. Eu me lembro de uma reunião muito grande na capela de lá, numa comunidade chamada Malhada. As pessoas angustiadas, novamente correndo atrás do carro pipa. Aquela história toda de ficar brigando com os políticos. Nós dizíamos: “precisamos mudar o jeito de fazer isso. Em vez de ir correndo atrás do carro pipa, precisamos fazer algo na linha da prevenção, que possa nos antecipar à estiagem”. Foi nessa época que tivemos notícia da cisterna. E nós decidimos ir conhecer. (Roberto Malvezzi, CPT Nacional, Bahia).

4.3 Motivações que levaram as organizações a adotarem os princípios da convivência