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Pesquisar e estudar a dança nos mostra que essa arte se reinventa a todo instante: a dança moderna, por exemplo, parou de apresentar as fadas e bailarinas etéreas do balé romântico, trazendo mudanças com os pés descalços, movimentos do tronco e no chão em tempos de pós-guerra. Nesse sentido, pensar nas danças que se reinventaram ao longo do tempo nos faz refletir sobre o momento atual e sobre as danças que estão por vir, considerando o momento pandêmico atual, visto que os encontros presenciais não são possíveis por enquanto.

Os professores não podem oferecer suas aulas presenciais nesse momento e precisam se reinventar num contexto digital. As pesquisas precisaram mudar porque as escolas fecharam. As escolas privadas conseguiram reabrir seguindo as medidas de segurança, mas no estado do Rio Grande do Norte, as escolas públicas estarão fechadas até 2021.

Em meio a essa situação, profissionais de diversas áreas precisaram trabalhar de casa, no chamado home office, como alternativa de continuar suas atividades, incluindo os professores, que começaram a gravar vídeos em casa, a enviar trabalhos por redes sociais, aplicativos e programas promovidos pelas escolas. Por meses, a escola lócus desta pesquisa adotou as atividades não presenciais como solução para que os alunos não fossem prejudicados.

Entende-se como atividades não presenciais aquelas que mantêm o contato entre alunos e professores e podem ser impressas para os alunos que conseguem buscar nas escolas ou podem ser enviadas por redes sociais a que a maioria dos pais e alunos tenha acesso. A produção de vídeos, material impresso de estudo dirigido, entre outras maneiras, são estratégias que mantêm, de certa forma, uma rotina de estudos para que os alunos não percam o contato com a escola.

Em alguns estados, as atividades remotas e não presenciais foram consideradas como carga horária do ano letivo, com autorização do Ministério da Educação (MEC). Nesse processo, pensar numa forma de adaptar esta pesquisa ou pensar em como proceder com as aulas de dança nesse momento foi uma questão essencial para sua continuidade. Para responder a essa problemática, é necessário também refletir sobre o papel ou perfil do professor de dança. A esse respeito, Marques (2010) afirma que esse professor:

[...] deveria ser o leitor mais especializado da dança/mundo: além de saber e querer ler a dança/arte [...] o professor tem como função pedagógica ensinar, abrir, construir, desconstruir, relacionar as leituras decorrentes dos diferentes papéis da dança às leituras que se desdobram e se multiplicam nos corpos de seus alunos (MARQUES, 2010, p. 47).

Dessa maneira, considerando entre as funções do professor a de “relacionar as leituras decorrentes dos diferentes papéis da dança” (MARQUES, 2010, p. 47) no contexto vivido por esse profissional e seus alunos, o docente é chamado a refletir sobre quais possibilidades poderão existir ou não nesse contexto tão desafiador de isolamento e/ou distanciamento social. Então, percebe-se que, na realidade atual, o professor de dança tem em suas mãos um grande desafio que o leva a refletir, concordando ou não, sobre como dar aulas de dança remotamente ou por meio de atividades dirigidas. Vale salientar que o professor de dança ensina uma aula que seria considerada praticamente impossível de ocorrer sem a presença física do aluno.

Sob essa ótica, Marques (2010) explica que:

Nossos corpos - transitórios, maleáveis, fluidos - são zonas de encontro sem começo nem fim com as quais os diferentes papéis sociais, na dança em interfaces com o mundo, são reconfigurados, ressignificados. São nossos corpos que permitem e conduzem esse fluxo entre os papeis e as funções sociais, pois são permeáveis às experiências cotidianas (MARQUES, 2010, p. 49).

Nesse sentido, como ressignificar esse corpo sem encontrar o outro? Se os corpos auxiliam o fluxo social com as experiências cotidianas, como continuar essas ações no isolamento social que começa, aos poucos, a ser aberto? Certamente não se trata de uma situação com solução linear ou simplificada.

É notório que as atividades não presenciais, modelo adotado como opção na escola onde desenvolvemos o ensino da dança no Ensino Fundamental I – Anos Iniciais, anula o contato corporal do professor com o aluno. Desse modo, as emoções não ficam tão perceptíveis e o contato visual não acontece. Nesse sentido, Karenine Porpino (2006), Doutora em Educação e professora de dança, explica que:

Ao afirmarmos que dança é educação, percebemos que não há como isolar as várias situações nas quais esse educar se manifesta, pois o fenômeno educação, assim como o dançar, é polissêmico e suas diversas formas de manifestação inevitavelmente suscitam interrogações diversas e transitáveis entre diversos contextos (PORPINO, 2006, p. 125).

Considerando que a dança na educação se manifesta em várias situações, é preciso entender a visão do professor sobre esse momento e compreender suas

“interrogações diversas e transitáveis”, como Porpino (2006) aborda, e talvez considerar esse contexto atual como uma oportunidade de pensar, por um lado, a dança como polissêmica, em suas diversas possibilidades, e por outro lado, na dura realidade já enfrentada nos diversos contextos educacionais, sobretudo na escola pública brasileira, pela falta de espaço, tempo, materiais adequados e tantos outros desafios. A diferença é que, com a pandemia, há fatores sociais que no ensino presencial já vinham sendo negligenciados e disfarçados, isto é, a falta de estrutura adequada do ponto de vista da inclusão digital para a maioria de crianças e jovens que frequenta as escolas públicas brasileiras.

Nesse mesmo contexto de desigualdade social, estão os professores que, além de lidarem com o desafio de terem de adaptar suas aulas para o formato remoto, estão submetidos a consequências emocionais frente aos desafios postos, tanto pela pandemia em relação à sua saúde quanto pela pouca habilidade de lidar com os recursos tecnológicos ou do preparo de atividades como contato único com os alunos.

Apesar do receio inicial em começar as atividades remotas há alguns meses, pois se esperava que essas atividades abrangessem uma larga quantidade de alunos, não se tinha certeza do que iria ocorrer, considerando que muitos desses alunos não têm acesso à internet ou sequer aparelhos digitais. Foi preciso encarar as atividades remotas como uma nova possibilidade de criação, de forma independente, autônoma, em que o aluno realiza a atividade respondendo perguntas ou seguindo as instruções para uma atividade prática, que pode ser gravada e enviada de volta como meio avaliativo.

Nesse contexto, a insegurança e a ansiedade se revelaram nos últimos meses para fazer esse momento acontecer. Apesar de alguns colegas de trabalho terem em suas falas o sentimento de obrigatoriedade em realizar essas atividades numa maior constância e precisarem se reinventar em função das novas formas digitais de ministrar aula, há também o ponto de vista de tentar equilibrar a desigualdade social e uma tentativa de democratização do ensino e da aprendizagem para que sejam proporcionados aos alunos os mesmos direitos e acesso à educação de qualidade, inclusive nessa situação pandêmica.

A preocupação em manter as atividades artísticas acontecendo e o interesse dos alunos foram fatores levados em conta, por mais que as atividades não fossem obrigatórias, como uma das formas para que os alunos não deixassem de ter as aulas de dança e perdessem a conexão com o professor. Nesse sentido, alguns professores dessa escola se tornaram adeptos de lives pelo aplicativo Instagram.

É necessário compreender que essas tecnologias podem ser uma solução para a construção do conhecimento, considerando novos processos metodológicos por meio do mundo digital, como as atividades que estão sendo propostas remotamente. Assim, a prática da dança se reinventa com essas novas percepções de si e na interação com os alunos e talvez seja um percurso longo para descobrir a melhor maneira de atravessar as lentes do celular ou do computador.

Talvez pensando no poder de transformação da arte seja possível encontrar uma resposta para esse atravessamento. É inegável a sensação de vazio e de angústia que esse momento pode causar por não sabermos ao certo o que fazer ou esperar desse momento e do ato de ensinar. Por isso, é necessário pensar nos caminhos possíveis, mesmo nesse momento de isolamento social, seja mantendo as aulas de danças por meios digitais entre professores e alunos, seja por atividades não presenciais.

No momento atual, essa nova adaptação se dá para além do espaço escolar, ou seja, na casa do professor e dos alunos que se encontram por meio de telas em busca de manterem os processos de ensino e aprendizagem ativos, em meio a uma pandemia que assola a população mundial. Os desafios são muitos. Vivê-los parece ser o único caminho. Parar no tempo e no espaço parece não ser possível, inclusive frente às cobranças, muitas vezes presentes, por parte da sociedade e dos governos para que os professores se mantenham ativos.

Talvez essa realidade virtual atual, para além da pandemia, deixe marcas difíceis e algumas reflexões acerca de um ensino que possa transitar para além do espaço físico-presencial, ampliando canais de fruição, apreciação e formação em dança. Espera-se que o corpo, a dança e o movimento reencontrem brevemente seu porto seguro, do ambiente físico, mas não se prive de possíveis voos em outros espaços-tempos que, por ora, possam parecer difíceis de alcançar, mas ao mesmo tempo, poderão servir de impulsos geradores para novas conquistas sociais, artísticas e metodológicas da dança. Nesse cenário, apesar de o percurso ter afetado o rumo da pesquisa em relação a se ter mais experiências na escola, o foco se manteve do ponto de vista conceitual e a partir das experiências vivenciadas antes da pandemia.

Então, uma vez que esta pesquisa desenvolve o termo dança-jogo como possibilidade no ensino da dança, a pergunta que surge é: como esses jogos podem virar dança?

3 QUANDO O JOGO VIRA DANÇA

Durante o curso de graduação de Licenciatura em Dança, em 2015, estudamos os jogos de Viola Spolin e o jogo do monstro na disciplina de Jogo e Cena cursada como disciplina optativa em parceria com o curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ministrada pelo professor de Teatro Robson Haderchpek. Esses jogos se assemelhavam muito com o que é estudado como conteúdo da dança, em exercícios como os de preparação corporal ou de improvisação. Desse modo, os jogos poderiam ser utilizados como meio para ensinar a dança na escola e auxiliar pedagogicamente o professor.

Nesse sentido, Spolin (2008, p. 20) sugere que “por meio do jogo e de soluções de problemas, técnicas teatrais, disciplinas e convenções são absorvidas organicamente, naturalmente e sem esforço pelos alunos”. Então, aqueles alunos que se desconcentram com facilidade começam a entender mais as regras e os combinados ao participar de alguns dos jogos e se concentram mais por meio das relações corporais experimentadas durante o jogo. Ademais, aqueles que tinham alguma resistência em relação a se movimentar ou a se expressar durante uma dinâmica em frente a outros alunos não pensavam mais nisso ao jogar.

Assim, o aluno começa a ser protagonista do seu aprendizado, refletindo criticamente ao discutir com os outros alunos sobre soluções para os problemas do jogo durante o próprio jogo. Nesse processo, é preciso dialogar com os alunos para explicar que o jogo ainda não é dança.

A professora doutora Lara Machado (2017) traz em seu livro, Danças no jogo da construção poética, uma experiência similar ao que sentimos quando nos deparamos no ensino público pela primeira vez. Foi uma realidade que persistiu seja em qual fosse a escola onde estivéssemos. Ela explica que ao chegar no Externato, em 1997, encontrou

[...] crianças e adolescentes extremamente arredios, agitados e ansiosos.

Com dificuldade para se concentrar, também se observava neles certa indisciplina e até ausência de noção de limites. A confiança que tinham em si e nos outros também era uma lacuna visivelmente posta, o que implicava um distanciamento significativo de todos que se propunham a uma aproximação.

Num paulatino processo de adaptação, enfrentamos juntos essas e outras adversidades, a partir de estímulo a atividades artísticas e corporais (MACHADO, 2017, p. 33).

Esse relato remete à experiência com ex-alunos e novos, ano após ano. Se essa seria a realidade comum a ser encontrada, está posto o desafio a ser vencido:

motivar esses alunos a participar das aulas e transformar as características de arredios, agitados e ansiosos com o estímulo de atividades artísticas e corporais, como a autora explicou. Para isso, é necessário preparar um ambiente para estimular a criação e pensar em cada momento de aula, visto que há vários tipos de jogos que podem ser utilizados em sala de aula, como os jogos teatrais, de improvisação em dança e outros. Nesse caso, a proposta desta pesquisa é fazer com que esses jogos vão além do que já são e se transformem na dança-jogo.

Para entender mais esse conceito, trazemos como exemplo um jogo de bola chamado “queimada” (Figura 25), jogo esportivo usado como brincadeira infantil, mais conhecido entre crianças e adolescentes de algumas partes do mundo, inclusive do Brasil. É também conhecido como mata-mata, cemitério, caçador.

Figura 25 – Jogo de queimada

Fonte: Disponível em: https://escolaeducacao.com.br/queimada-jogo/. Acesso em: 23 nov.

2020.

As regras básicas desse jogo são as seguintes:

1. Os jogadores se dividem em dois times e se posicionam num campo dividido por uma linha central, como numa quadra esportiva.

2. Essa linha não pode ser ultrapassada por nenhum dos times, caso aconteça, o jogador que passou da linha irá para o time oposto e ficará no espaço separado para os “queimados”.

3. O jogo começa quando um dos jogadores lança a bola em direção aos jogadores do time oposto para “queimá-los”. Os adversários devem se desviar do arremesso, tentar pegar a bola e fazer o mesmo movimento com o time adversário.

4. Vence o time que “queimar” o maior número de jogadores ou todos os jogadores do time adversário.

Quando esses movimentos/ações, que se repetem, cumprem sua função como jogo chegando ao seu objetivo final, é o momento que o jogo termina e abre espaço para o surgimento de uma dança-jogo, visto que esse movimento de sair de um lugar para outro, de mirar em alguém para lançar a bola, por exemplo, por ser algo repetitivo, pode ser aproveitado para a dança que está por vir. Como visto anteriormente, o jogo não precisa ter a interferência de ninguém de fora, mas dos próprios participantes que entendem as regras e as fazem acontecer. No entanto, a dança-jogo, apesar de ter essa similaridade em seu acontecimento, precisa de um pelo espaço aconteça também com base no que eram as ações do jogo prévio. Apesar desse comando, os participantes têm a liberdade, nesse momento, de brincar com essas regras, com o espaço e os demais jogadores por meio da improvisação desses movimentos. Esse momento então passa a ser uma cena e todos ficam livres para criar novos movimentos. O propositor ou os jogadores podem colocar música, fazer sons ou dançar-jogar no silêncio. Vale salientar que o estado corporal de cada jogador irá mudar a partir desse comando externo e cada vivência dessa prática será única.

Sobre essa mudança do estado do corpo, Alves (2019) usa o termo consciência cênico-vivencial

[...] no contexto do ensino da dança, considerando o pressuposto de que quando há percepção, envolvimento efetivo com aquilo que vai ser aprendido- no caso a dança e todos os elementos estéticos e existenciais que a envolve em cada aula- ocorre a consciência cênico-vivencial, pois o corpo se envolveu na dança e deixou-se envolver por ela. Trata-se de uma consciência construída no/pelo envolvimento do corpo com o texto a ser dançado; com o espaço a ser criado-recriado, com o tempo a ser construído-reconstruído, com a intencionalidade que vem do corpo, que cria percepção, que cria consciência e se expressa cenicamente, distanciando-se assim de um

cenário que muitas vezes inclui a dança de maneira repetitiva, imitativa e sujeita prioritariamente a convenções artísticas historicamente perpassadas (ALVES, 2010, p. 219).

A dança-jogo pode abordar o termo da consciência cênico-vivencial por abranger em seu sentido a ideia de uma consciência construída considerando questões de texto, espaço, tempo e intencionalidade que vêm do corpo e que se expressam em sua singularidade, diferentemente de padrões já realizados em outros lugares da dança.

A dança-jogo não tem um tempo de duração e lembra, de certa forma, as “Jam Sessions: momento cênico em movimento”, ação de extensão permanente na UFRN, dirigida pela Profa. Dra. Patrícia Leal, chegando a durar alguns minutos ou horas, até que o propositor encerre ou os próprios jogadores parem naturalmente, por isso que algumas jam sessions têm um tempo de duração diferente de outras. No caso de uma aula de dança, que geralmente tem um tempo limitado, é interessante que o propositor observe o horário disponível.

A queimada, como jogo, foi um dos experimentos praticados nesta pesquisa por um grupo de colegas de mestrado e docentes durante uma aula de mestrado, como sugestão de jogo dos próprios participantes. Essa experiência será compartilhada e mais detalhada a seguir.

Uma reflexão que surgiu durante esta pesquisa foi sobre “como os movimentos que estavam sendo feitos ou estavam prestes a se fazer pelos jogadores viram dança?”. A resposta de como isso acontece ou acontecerá não está com a pesquisadora. Tudo depende dos jogadores e de como cada um entende a dança de acordo com suas experiências prévias. A dança-jogo irá alterar a cada momento, pois depende de cada um, mesmo que o jogo seja o mesmo.

A possibilidade de levar uma dança que possa ser divertida e alegre para os alunos é um dos objetivos, pois é de senso comum que todos que dançam precisam decorar passos difíceis, ser muito flexíveis e não podem errar de forma alguma. De fato, muitos trabalham a dança dessa maneira, mas, para uma educadora, que trabalha com crianças na faixa etária até 10 anos, o parâmetro deve ser a alegria em sala de aula, considerando o contexto dos alunos que nem sempre são alegres, pois trazem histórias muito fortes para o contexto escolar.

Era essa diversão que sentiam as bailarinas do Grupo de Dança Popular e isso influenciou na escolha da docência. A essência da formação em dança começou

muito antes da graduação, de forma imperceptível. A profundidade da dança-jogo só veio com os relatos escritos para o próprio Grupo de Dança Popular, pois têm relação com o objetivo traçado para os alunos: alegria e positividade em experimentar a dança.