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Capítulo I Antecedentes

2. Mudanças no mundo do trabalho e na estrutura de classes

O aumento na massa salarial dos trabalhadores na base da pirâmide (produto das altas no salário mínimo e nos pisos salariais das categorias sindicalmente organizadas, assim como das transferências de renda promovidas por políticas públicas) ocorreu, segundo Marcio Pochman (2012, 2013) em paralelo a uma segunda tendência: a queda na criação de empregos de especialização mais alta com rendimentos intermediários. Na década de 2000, empregos “com rendimento acima de três salários mínimos mensais, (…) [tiveram] 400 mil trabalhos por ano a menos” (Pochman, 2012 p. 19). Esta perspectiva é reforçada por Cavalcante e Arias (2019). Segundo dados coletados pelos autores, a variação anual de rendimentos em ocupações manuais e entre empregadores rurais foi mais elevada que os empregos de classe média. “De 2002 a 2013, o índice anual foi de 1,06% para administradores e gerentes, 1,36% para profissionais, 1,87% para trabalhadores não-manuais de rotina, 4,13% para trabalhadores manuais não-qualificados, 5,41% para empregados rurais e 6,61% para empregadores rurais” ( p. 19).

Na sua maioria, os postos de trabalho gerados durante os governos do PT concentram- se no setor de serviços21, tradicionalmente reconhecido pela natureza precária dos empregos,

localizados na base da pirâmide social. Segundo Pochman, “95% das vagas abertas [nos anos 2000] tinham remuneração mensal de até 1.5 salário mínimo, o que significou o saldo líquido de 2 milhões de ocupações abertas ao ano, em média, para o segmento de trabalhadores de salário de base.” (2012, p. 19-20). Segundo Cavalcante e Arias (2019) isso não significou que durante o período petista não tenha ocorrido expansão em empregos de alta especialização “especialmente até 2009, houve significativa elevação de empregos em ocupações típicas de classe média, como na indústria de transformação e construção civil [...] elas acompanham a expansão de empregos no setor público, em particular na educação, devido à expansão do ensino superior” (p.19). Esta expansão, porém, foi incapaz de reverter os efeitos da tendência de longo prazo da diminuição do parque industrial no mercado de trabalho.

Durante os governos petistas, segundo Galvão (2014), identifica-se um processo contraditório, com a “contratação de prestadores de serviços na condição de empresas constituídas por uma única pessoa, a chamada “pessoas jurídica” - modalidade de contratação que pode constituir uma forma de ocultar a relação de emprego, fraudando o pagamento de direitos trabalhistas e encargos sociais.” (p. 7) Entre os empregos de classe média e média alta

21 Entre as ocupações que mais se expandiram, encontram-se trabalhadores do comércio, assim como escriturários e trabalhadores de atendimento ao público (Pochmann, 2012, p. 33-34).

(arquiteto, jornalista, engenheiro, advogado, etc.) plenamente inseridos nos ciclos de acumulação capitalista, houve precarização do trabalho pela via da flexibilização da legislação trabalhista.

O setor de serviços é bastante heterogêneo e inclui atividades com relações inteiramente diferentes de produção, realização, apropriação, e distribuição de mais-valia. Além de se estender a atividades capitalistas e não capitalistas, serviços incluem duas esferas próprias, a circulação e a produção de mercadorias. Consequentemente, a divisão entre setor de serviços e indústria não deve ser confundida com a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo.22

A divisão entre serviços capitalistas e não capitalistas é de relevância particular no Brasil pelo peso do trabalho de prestação de serviços para as famílias, que muitas vezes ocorre por fora do ciclo de acumulação de capital. Em números totais, esta categoria de trabalhadores somava 23,6 milhões de pessoas, com destaque para a região sudeste (11,5 milhões de ocupados). Segundo Pochmann (2012), “Apesar de responder por mais de 30% do total de ocupações, percebe-se também que a remuneração auferida tende a ser relativamente baixa, significando pouco mais de um quinto do total do rendimento dos trabalhadores brasileiros ocupados no ano de 2007… isto ocorre, em grande medida, porque a sistemática de contratação laboral pelas unidades familiares ocorre de maneira muito diferenciada daquela verificada tanto no setor empresarial privado como no setor público.” (p. 49 - 50 e 54-55)

No entanto, o aumento do salário mínimo e, particularmente, da proteção laboral estendia a empregados domésticos durante os governos petistas levou ao encarecimento dos serviços prestados às famílias. Esse fator, juntamente com o achatamento da classe média, teria sido um dos motivadores de parte dos protestos em 2013. Segundo o ex-prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad (2017), "Se os rendimentos dessas camadas médias não perderam poder de compra medido em bens materiais, perderam em termos de serviços”. Isso teria importância central para a classe média, pois "serviços domésticos em quantidade eram a grande compensação pela falta de serviços públicos de qualidade.” (2018a) Ainda conforme o autor:

22 Segundo Tregenna (2007), "aquilo que unifica o setor de serviços é de menor relevância, de uma perspectiva marxiana, que as diferenças entre os diversos tipos de atividades de serviço.” (p. 7) A argumentação é compartilhada por Ernest Mandel, segundo quem “a questão sobre a ampla categoria da chamada indústria dos serviços, podemos dizer que, como regra geral, todas as formas de trabalho assalariado que se exteriorizam em si e consequentemente adicionam valor ao produto (materiais) são criadores de mais-valia e consequentemente produtivos para o capitalismo como um todo”. (Mandel, 1992)

Marx, em seus estudos tardios contrários à tese da pauperização da classe trabalhadora, concluiu que, no capitalismo tardio, a dinâmica das classes tende à volatilidade. Por isto, argumentou que o estudo das posições relativas de classe seria de extrema importância para compreender a política nacional.

Um estudo de Mark Morgan sobre o Brasil confirmou as reflexões de Marx. Ele argumenta, essencialmente, que os ricos ficaram mais ricos, os pobres menos pobres, e a classe média perdeu sua posição relativa em relação à classe alta e baixa. Essa perda de posição relativa está por trás da revolta da classe média contra o PT e as instituições do Estado (Haddad, 2018a).

Essa perda de ocupação, renda e capacidade de consumir serviços provocou descontentamentos, como fica evidenciado nas resistências apresentadas pelos consumidores dos estratos A e B à elevação social dos pobres. Segundo Cavalcante e Arias (2019) estatísticas levantadas em 2012 pelo Instituto Data Popular “mostravam que 55,3% dos consumidores do topo da pirâmide achavam que os produtos deveriam ter versões para rico e para pobre, 48,4% afirmavam que a qualidade dos serviços piorou, 49,7% preferem ambientes frequentados por pessoas do mesmo nível social, 16,5% acreditam que pessoas mal vestidas deveriam ser barradas em certos lugares e 26% dizem que o metrô traria “gente indesejada” para a região onde mora.” (p. 20-21). Essa insatisfação se refletiu nos protestos de junho, como veremos a seguir.