• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II – O Movimento nas ruas

1. Origens e composição social do MPL

As origens do MPL-SP remetem à interatividade nas redes do Centro de Mídia Independente (CMI) entre a Revolta do Buzu, ocorrida em Salvador em agosto de 2003 e a Revolta das Catracas, deflagrada 2.600 quilômetros ao sul, entre 2004 e 2005 em Florianópolis (Pomar, 2013 p. 11). Nacionalmente, o projeto do MPL ganha corpo próprio no “primeiro encontro realizado em Florianópolis, no mês de junho de 2004. O evento não se propõe a fundar

um movimento, mas institui uma “campanha nacional pelo Passe Livre”. 38 Nele “estavam

presentes basicamente três correntes de pensamento e da organização juvenil de esquerda na época: jovens ligados ao trotskismo, dissidentes das organizações tradicionais da esquerda e seus métodos e associados a jovens independentes, sobretudo na Campanha pelo Passe Livre de Florianópolis; ativistas articulados em torno dos movimentos que a partir dos anos 1990 ficaram conhecidos como movimentos antiglobalização, e organizados pelo Centro de Mídia Independente (CMI-Brasil)” (2013, p. 12).

O recorte geográfico do grupo revela que as dinâmicas locais se sobrepõem às nacionais. País semicontinental marcado por enormes longitudes entre suas metrópoles, a particularidade política do Brasil é sua descentralização geográfica, que em 2013 atuou como barreira à integração política dos movimentos por direito à cidade. Pomar afirma que desde seus dois encontros nacionais, em junho de 2005 na Unicamp e em 2007, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ligada ao MST) no interior de São Paulo, o movimento na prática deixou de existir nacionalmente.39 Segundo autor “o MPL avançou pouco em termos de estruturação

e não se consolidou como uma organização perene com fóruns regulares, embora se mantenha como uma rede de articulação nacional que troca experiências e alimenta uma proposta avançada” (p. 13).

A inserção do MPL entre estudantes40 foi facilitada pela expansão da internet e do

acesso ao ensino superior. As políticas neodesenvolvimentistas que expandiram o mercado universitário levaram a um salto no total de graduandos de 2.694.245 (32,6% no ensino público), para 6.739.689 (26,3% nas escolas do Estado) (Ridenti, 2013). Observa-se que novas

38 A articulação nacional do MPL foi fortalecida pelo surgimento da internet que, ao acelerar a comunicação, diminuiu as distâncias, permitindo a interação virtual entre os ativistas de São Paulo e aqueles identificados na rede de articulação mencionada por Pomar. Os protestos em Goiás em junho de 2013, assim como a publicação pelo TarifaZero Goiânia do texto "Goiânia: suspenso o aumento da tarifa", no site Passa Palavra dia 11 de julho de 2013, revela conexões próximas entre grupos locais e o MPL-SP.

39 A relação cotidiana de militância dos ativistas do MPL-SP, quase todos inseridos no espaço universitário e nos movimentos de direito à cidade de São Paulo, se deu centralmente na interação e troca de experiências com as correntes majoritárias da esquerda nacional, formada por socialistas e petistas. Para outra autora, todavia, “mais frutífero que buscar relações entre o MPL e os partidos políticos é buscar elos entre as formas de luta antiglobalização do início dos anos de 2000 e manifestações nas ruas em 2013” (Gohn, 2013, p. 43).

40 Segundo manchete do jornal Folha de S. Paulo, “Ex-alunos do colégio Equipe formam a linha de frente do Movimento Passe Livre em São Paulo”. Além da escola construtivista de classe média, o colégio Santa Cruz, escola privada de classe média alta gerida por padres canadense liberais, aparece em destaque na matéria. (Bergamim, 2013)

formas de ativismo político entre a juventude, como as ocupações de escolas em 2015 e 2016 (Campos, Medeiros e Ribeiro, 2016) foram disseminadas pelo MPL-SP41. Segundo estudo

clássico de Foracchi (1977), há diferenças entre as categorias jovens e estudantes: “jovem” constitui um recorte geracional policlassista, que se insere de diferentes formas no mercado de trabalho, enquanto “estudante” tem origem na classe média. O estudante que não trabalha pode postergar sua inserção no mercado de trabalho, prolongando sua permanência na escola ou acedendo à universidade. “Ao ser compreendida em conexão com o projeto de carreira e com as oportunidades de profissionalização que a classe média acalenta, a ação do estudante evidencia sua conotação pequeno-burguesa.” (Foracchi (1977, p 13).

O MPL seria, assim, uma organização híbrida, produto da mistura entre o movimento estudantil clássico e o movimento social por direito à cidade. Pomar (2013), porém, diferencia o MPL do movimento estudantil tradicional, historicamente dirigido pela corrente socialista, criticando seus métodos. “Na reta final de mobilizações [2005 em Florianópolis] organizações tradicionais do movimento estudantil, que dirigem suas entidades de representação, tomaram a dianteira de um processo político que elas não iniciaram e não entenderam em sua essência.” (p. 9) Segundo Pomar, “não foram poucas as críticas ao MPL, quando este pautou o passe livre - entendido aqui como passe livre para estudantes - como sua bandeira principal, sendo questionado, sobretudo pelas entidades estudantis, por avançar demais no debate, que deveria ser a garantia da meia passagem.” (p. 18) A política do MPL mais tarde avança em direção à universalização do Passe Livre. Em artigo publicado após os protestos de 2013, o MPL afirma: A luta de reapropriação do espaço urbano produzido pelos trabalhadores supera, na prática, a bandeira do MPL em seus primeiros anos, que era o passe livre estudantil. Quanto as tarifas aumentaram, evidenciam-se contradições que afetam a todos, não somente os estudantes, e então deixa de fazer sentido ter em vista apenas um recorte da população. A luta por transporte tem a dimensão da cidade e não desta ou daquela categoria. (MPL, 2013 p. 15-6)

41 Movimento esse que variou em termos de abrangência e temporalidade nos estados. Após as ocupações de escolas no Estado de São Paulo, os secundaristas de Goiás foram os primeiros a replicar localmente o movimento, iniciando as ocupações ainda em dezembro de 2015. Em janeiro de 2016, o movimento atingiu 27 escolas ocupadas (Campos, Medeiros e Ribeiro, 2016, p.313).

No campo da esquerda, a concepção programática do MPL se aproximava mais do PT de São Paulo que das organizações socialistas. Isto porque o programa defendido pelo PSOL, PSTU e PCB se centrava menos no congelamento dos preços e mais na estatização do sistema de ônibus. Esta diferença programática, focada em reverter as privatizações nos transportes iniciada nos anos 90, tornava mais abstrato o envolvimento dos socialistas no movimento pela redução da passagem. Já o programa neodesenvolvimentista aproximava o MPL da bancada do PT, uma vez que o governo federal não era antipático a políticas de controle de preços.

No entanto, em 2013 o PT revelou dificuldades para dialogar com o MPL. Logo no início dos protestos, dia 12, após uma mesa redonda que incluiu a prefeitura, o Ministério Público e MPL, em que a "promotoria propôs como solução ao conflito que prefeitura e governo revogassem por 45 dias o aumento das passagens para que se fizesse negociações e estudos técnicos enquanto o movimento suspenderia as manifestações” (Ortellado et al, 2013, p.80), a prefeitura rejeitou a proposta do MP, apesar de o MPL ter sido favorável.42 Mais tarde,

quando o movimento já começava a sair do controle da esquerda, uma segunda rodada de diálogo ocorreu durante o Conselho da Cidade, onde a maioria dos conselheiros se pronunciam em favor de um recuo do prefeito, que novamente se recusou a ceder. Segundo Ortellado et al (2013), naquele momento, Dilma também se posicionava pela flexibilização na política do PT municipal.43 (p. 210)

Argumentando contra a redução da tarifa durante o início dos protestos, o então prefeito Fernando Haddad (2017) afirmava que a redução da tarifa era inviável, pois acarretaria desequilíbrio fiscal. Coube a dois economistas, Samuel Pessoa, professor da Fundação Getúlio Vargas, e seu secretário de Finanças, Marcos Cruz (que segundo o ex-prefeito, “o empresário Jorge Gerdau havia lhe apresentado e que deixara a consultoria McKinsey para organizar as contas da prefeitura”) elaborar a proposta para a tarifa. A prefeitura “estava preparando um estudo em que mostrava como a municipalização da Cide, o imposto federal sobre a gasolina, poderia ser utilizada para ampliar o subsídio ao transporte público”. (Haddad, 2017) Segundo Ortellado et al (2013), a proposta incluía exigir, em troca do congelamento da tarifa que ocorreu

42 Em artigo publicado no site Passa Palavra, assinado coletivamente pelo MPL dia 11 de junho, o grupo afirmava no título "Movimento Passe Livre protocola pedido de reunião” (MPL, 2013)

43 Tal narrativa é disputada por Haddad. Segundo o ex-prefeito: “Em termos de conteúdo, as demandas dos

manifestantes eram inteiramente compatíveis com a agenda dos governos federal e municipal. Coloquei o tema da mobilidade no centro de minha campanha. Em termos de forma, porém, havia uma clara tendência anti-estatal nos protestos. A recusa ao diálogo institucional se cristalizou, e não pode ser alterada. As tentativas de estabelecer diálogo vieram diretamente da prefeitura, posto que o movimento nunca solicitou uma audiência.” (Haddad, 2017)

no primeiro semestre em São Paulo, "desoneração de tributos que dava margem para um aumento da tarifa abaixo da inflação.” (p. 44-43). O PT municipal adotava então uma linha de equilíbrio em relação ao expansionismo fiscal intensificado por Dilma Rousseff.44

Durante o início dos protestos, Haddad e Alckimin, então governador do estado, promoviam a cidade de São Paulo para a atração de grandes eventos internacionais em Paris. Ambos adotaram uma linha unificada na reação às manifestações. Porém, o desgaste político causado pela violenta repressão policial, de responsabilidade do governador, acabava comprometendo também a imagem de Haddad, uma vez que “a campanha contra o aumento está muito mais orientada às passagens de ônibus (a cargo do município) do que às de metrô e trem (de responsabilidade do governo do Estado).” (Ortellado et al, 2013. p.51)

A guinada de Haddad a favor da redução da tarifa se inicia com uma nota publicada no Facebook do diretório municipal do PT dia 14.45 Reivindicando a proposta de Samuel Pessoa

e Marcos Cruz pela municipalização da CIDE - mostrando assim compromisso com o tripé macroeconômico - o diretório afirmava também que “a negociação de uma pauta de melhoria do transporte público e de tarifas menos impactantes aos usuários do sistema exige um desarmamento de espíritos e a busca do diálogo” (Ortellado et al, 2013, p. 210). Três dias depois, foi a vez do ex-presidente Lula reforçar o realinhamento do partido, postando no facebook:

Ninguém em sã consciência pode ser contra manifestações da sociedade civil porque a democracia não é um pacto de silêncio, mas sim a sociedade em movimentação em

44 Quando a presidenta Dilma propôs em junho a Haddad controlar os preços, o ex-prefeito discordou. Segundo

Haddad, "não se pensa em controlar a inflação de um país continental pelo represamento de uma tarifa municipal sem atravessar estágios intermediários e sucessivos de uma compreensão equivocada. Não se chega a um erro deste tamanho sem ter feito um percurso todo ele equivocado. Não se produz estabilidade macroeconômica por intervencionismo microeconômico.” (Haddad, 2017)

45 Em texto publicado no mesmo dia em seu blog, José Dirceu, ex-chefe da casa civil do governo Lula (2003-5)

preso por corrupção quatro meses após os protestos de junho, também adotou nova posição. Independente as consequências fiscais da medida, passa a defender que era preciso disposição para diferenciar do PSDB. Segundo o ex-ministro da casa civil “É preciso negociar com o MPL. Quem deve tomar a iniciativa é o prefeito da cidade, Fernando Haddad. Dialogar e envolver toda a cidade e entidades organizadas no debate e na busca de saídas para a situação do transporte e para a questão específica da passagem. E mais do que isso: aproveitar para discutir a gravíssima situação da segurança pública e a atuação inaceitável da polícia militar e do Governo do Estado.” (Dirceu em Ortellado, 2013 p.120)

busca de novas conquistas. (…) Estou seguro, se bem conheço o prefeito Fernando Haddad, que ele é um homem de negociação. Tenho certeza que dentre os manifestantes, a maioria tem disposição de ajudar a construir uma solução para o transporte urbano (Lula em Ortellado et al, 2013 p.161).

A insistência de Haddad em não ceder na política fiscal, segundo entrevista do prefeito à Revista Piauí, mudou apenas quando a legenda mais associada à burguesia interna no governo Dilma, o PMDB de Eduardo Paes, então prefeito do Rio de Janeiro, anunciou a Haddad que iria ceder às demandas dos protestos que também ocorriam em sua cidade, isolando-o politicamente (Haddad, 2017). A linha de não se descolar do PSDB se expressou no anúncio da redução da tarifa ao lado do governador Geraldo Alckimin. Após a indecisão do PT, a extrema-direita saiu abertamente às ruas na manifestação ocorrida no dia seguinte, que já havia sido convocada pelo MPL antes do anúncio da redução. Após os choques violentos na Avenida Paulista, o movimento anunciou sua retirada do processo.