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1.3. Desafios da pós-modernidade e a possiblidade de reconstrução de valores e de ideais emancipatórios no campo curricular.

1.3.1. Mudanças transicionais e a predominância do conhecimento emancipação na pós­modernidade

Partindo da consideração de que nos encontramos num tempo de transição

paradigmática com várias dimensões que evoluem em ritmos desiguais, Boaventura Sousa

Santos, distingue duas dimensões: a epistemológica e a societal. A primeira ocorre entre o

paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma emergente, que designa por paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente, a segunda, que considera

menos visível, "ocorre do paradigma dominante ­ sociedade patriarcal; produção capitalista; consumismo individualista e mercadorizado; identidades fortaleza; democracia autoritária; desenvolvimento global desigual e excludente ­ para um paradigma, ou conjunto de paradigmas, de que por enquanto não conhecemos senão as «vibrations ascendantes", nos termos mencionados por Fourier (Santos, 2000: 16).

Esta postura epistemológica anunciadora de um quadro de incerteza, decorre da afirmação do paradigma emergente que, como sublinha Boaventura Sousa Santos, já em meados dos anos oitenta se assumia como alternativa, em face da profunda e irreversível crise que o paradigma dominante atravessava (Santos, 1995: 23). Em consequência da interacção de uma pluralidade de condições sociais e teóricas, esta orientação traz consigo

o perfil do paradigma emergente54, pondo em evidência a ideia de que só a partir da

modernidade é possível transcender a própria modernidade. Por isso, é necessário iniciar o processo pelas representações que esta deixou mais inacabadas e abertas, isto é, o princípio

da comunidade, no domínio da regulação, que considera ter sido o mais negligenciado nos

últimos duzentos anos, acabando por ser quase totalmente absorvido pelos princípios do

Estado e do mercado, e a racionalidade estético-expressiva, no domínio da emancipação

(Santos, 2000: 71).

Esta posição transicional foi formulada por Boaventura Sousa Santos nos seguintes termos: "enfrentamos problemas modernos para os quais não há soluções modernas" e, nesse sentido, em lugar de nos situarmos numa posição definida como pós-modernidade

54 Que integra uma dupla proveniência paradigmática, o paradigma científico que designa por "paradigma de um conhecimento prudente" e o

reconfortante, devemos posicionarmo-nos numa pós-modernidade inquietante ou de oposição, no âmbito da qual, "a disjunção entre a modernidade dos problemas e a pós-

modernidade das possíveis soluções deve ser assumida plenamente e deve ser transformada num ponto de partida para enfrentar os desafios da construção de uma teoria crítica pós- moderna" (Santos, 1999: 204). Neste sentido, esta nova realidade paradigmática pode configurar-se no âmbito dos seguintes termos:

"Afirmar que a modernidade se esgotou significa, antes de mais, que se cumpriu em excessos e défices irreparáveis. (...) é deles que temos de partir para imaginar o futuro e criar as necessidades radicais cuja satisfação o tornarão diferente e melhor que o presente. A relação entre o moderno e o pós- moderno é, pois, uma relação contraditória. Não é de ruptura total como querem alguns, nem de linear continuidade como querem outros. É uma situação de transição em que há momentos de ruptura e momentos de continuidade", numa combinação específica que pode variar de período para período e de país para país (Santos, 1994: 92).

Com efeito, tendo presente que vivemos num tempo que pode ser considerado, simultaneamente, de repetição e de conflito, devemos contestar a "teoria do fim da história", enquanto configuradora do "máximo de consciência possível de uma burguesia internacional que vê finalmente o tempo transformado numa repetição automática e infinita do seu domínio" e que conduziu ao "slogan da celebração do presente", cara às "versões capitulacionistas do pensamento pós-moderno" (Santos, 1996b: 15). Por outro lado, é também de ultrapassar uma "teoria da história" baseada na dicotomia entre um "passado reaccionário" e um "futuro progressista" - uma visão comum à "burguesia" e à "classe operária" -, que apenas contribuiu para trivializar e banalizar os conflitos e o sofrimento humano, traduzindo-se na morte do espanto e da indignação55. Pelo que, uma forma de sair deste círculo vicioso e transformá-lo num círculo virtuoso, de acordo com Boaventura Santos, poderá ser a construção de

"uma outra teoria da história que devolva ao passado a sua capacidade de revelação, um passado que se reanime na nossa direcção pela imagem desestabilizadora que nos fornece do conflito e do sofrimento humano. Será através dessas imagens desestabilizadoras que será possível recuperar a nossa capacidade de espanto e de indignação e de, através dela, recuperar o nosso inconformismo e a nossa rebeldia" (Santos, 1996b: 17).

Neste quadro, uma forma de explorar as possibilidades emancipatórias da transição paradigmática, resistindo à absorção pela regulação, é a valorização da subjectividade

emergente que, por um lado, tem de se conhecer a si mesma e ao mundo através do

conhecimento-emancipação, recorrendo a uma retórica dialógica e a uma lógica emancipatória e, pelo outro, "tem de ser capaz de conceber e desejar alternativas sociais assentes na transformação das relações de poder em relações de autoridade partilhada e na

55 Talvez nunca como hoje estas afirmações correspondem a uma realidade, de facto marcada pela guerra, em que o valor da vida humana

transformação das ordens jurídicas despóticas em ordens jurídicas democráticas". Deste modo, como sustenta Boaventura Sousa Santos, e como já atrás salientámos, "há que inventar uma subjectividade constituída pelo topos de um conhecimento prudente para uma vida decente" (Santos, 2000: 319), a partir de uma teoria crítica pós-moderna que possa ultrapassar as fraquezas da teoria crítica moderna, ao não reconhecer que a razão que critica não pode ser a mesma que pensa, constrói e legitima aquilo que é criticável. Tendo presente que não há conhecimento em geral ou ignorância em geral, "o que ignoramos é sempre a ignorância de uma certa forma de conhecimento e, vice-versa, o que conhecemos é sempre o conhecimento em relação a uma certa forma de ignorância" (Santos, 2000: 28- 29).

Neste sentido, e de acordo ainda com Boaventura Sousa Santos, a teoria crítica pós- moderna desvia-se da teoria crítica moderna, pelo menos em três aspectos fundamentais: o primeiro, considera que deixou de ser possível desenvolver as possibilidades emancipatórias dentro do paradigma dominante. Por tal motivo, o pensamento crítico, se quer ser eficaz, terá que assumir uma posição paradigmática56, partindo "de uma crítica

radical do paradigma dominante, tanto dos seus modelos regulatórios como dos seus modelos emancipatórios, para, com base nela e com recurso à imaginação utópica, desenhar os primeiros traços de horizontes emancipatórios novos em que eventualmente se anuncia o paradigma emergente" (Santos, 2000: 16). Um segundo desvio diz respeito ao estatuto e objectivos da crítica, aceitando a "desfamiliarização" como um momento de suspensão necessário para criar uma nova familiaridade, tendo como objectivo último transformar a teoria crítica e o conhecimento num senso comum emancipatorio57 O terceiro

desvio em relação à teoria crítica moderna prende-se com a auto-reflexividade, de acordo com a qual se considera que na crítica existe sempre algo de auto-crítica, tendo presente que uma cultura que tem uma concepção estreita de si própria tende a ter uma concepção ainda mais estreita das outras culturas. Tal postura conduz à procura das tradições e alternativas que foram expulsa dos cânones da modernidade ocidental58 que pressupõe, de acordo com Santos, "escavar no colonialismo e no neocolonialismo", uma dupla

escavação arqueológica " que se propõe "descobrir os escombros das relações dominantes

Contrariamente ao pensamento crítico anterior, que considera ser subparadigmático

Contrariamente à teoria crítica moderna, cujo objectivo era a desfamiliarização e residindo aí a sua característica vanguardista.

Considerando que a teoria crítica da modernidade não se questiona no acto de questionar, nem aplica a si própria o grau de exigência com que critica. Nessa medida, Boaventura Sousa Santos sustenta que a modernidade é simultaneamente mais e menos do que aquilo que convencionalmente se diz dela. Menos porque só abarca a modernidade ocidental, não podendo ser considerada um paradigma universal, e mais, porque, a constituição do cânone da modernidade ocidental conduziu a "um processo de marginalização, supressão e subversão de epistemologias, tradições culturais e opções sociais e políticas alternativas em relação às que foram nele incluídas" (Santos, 2000: 17-18).

entre a cultura ocidental e outras culturas outras possíveis relações mais recíprocas e igualitárias".

São estes fragmentos epistemológicos, culturais, sociais e políticos - como também, acrescentamos nós, educativos - que podem contribuir para a reinvenção da emancipação

social (Santos, 2000: 17-18). Deste modo, embora à superfície apareça como um período

de crise, a nível mais profundo o paradigma da modernidade, rico e complexo, tão susceptível de variações profundas como de desenvolvimentos contraditórios, vive um período de transição paradigmática (Santos, 2000: 47). No quadro da modernidade ocidental, a trajectória de conhecimento é, simultaneamente, uma sequência lógica e uma

sequência temporal e o movimento da ignorância para o saber é, simultaneamente, um

movimento do passado para o futuro, buscando um equilíbrio entre o conhecimento-como-

regulação e o conhecimento-como-emancipação. No entanto, este equilíbrio foi-se

perdendo à medida que a ciência moderna foi ganhando terreno sobre as formas alternativas locais, convertendo-se em força produtiva do capitalismo industrial. Prevaleceu, assim, o conhecimento-como-regulação, definido por uma trajectória entre o ponto de ignorância designado por caos e um ponto de conhecimento, designado por

ordem. Em contrapartida, o conhecimento-como emancipação, definido por uma trajectória

entre um ponto de ignorância chamado colonialismo e um ponto de conhecimento chamado solidariedade, foi submetido pela anterior que ganhou total primazia, passando a

ordem a ser uma forma hegemónica de conhecimento e o caos uma forma hegemónica de

ignorância. Esta realidade conduziu à recodifícação do paradigma emancipatório da modernidade que transformou o que era considerado saber em ignorância (a solidariedade em caos) e o que era considerado ignorância em saber (o colonialismo em ordem). De acordo com Santos, considerando a sequência lógica e temporal da modernidade, o passado passou a ser considerado como caos (a solidariedade) e o futuro como ordem (o colonialismo), justificando-se o "sofrimento humano" em nome da ordem e do colonialismo contra o caos e a solidariedade (Santos, 1996b: 24-25)59.

Neste contexto, uma forma de reanimar o passado numa direcção emancipatória é reconstruir o conflito entre o conhecimento - como - regulação e o conhecimento - como

- emancipação, desequilibrando a assimetria para o lado deste último, nos termos que

procurámos sistematizar no quadro II, o que, no entanto, só poderá acontecer num contexto de proliferação de comunidades interpretativas que, embora guiadas pelo conhecimento

O qual continua a ter destinatários específicos, as classes consideradas perigosas, como sejam trabalhadores, mulheres, minorias étnicas e sexuais (Santos, 1996b: 25).

teórico local desenvolvem uma estratégia que, não sendo cognitiva mas, sim, política, conduz a que possam ser caracterizadas como "neo­comunidades", isto é, "territorialidades locais­globais e temporalidades imediatas­diferidas que englobam o conhecimento e a vida, a interacção e o trabalho, o consenso e o conflito, a intersubjectividade e a dominação, e cujo desabrochar emancipatório consiste numa interminável trajectória do colonialismo para a solidariedade própria do conhecimento­emancipação" (Santos, 2000: 90).

Quadro I I ­ D o conhecimento­regulação ao conhecimento­emancipação' Paradigmas Formas de­

coiihïxi'iifent'o • Trajectórias de conhecimento

■■■■:::::::;,,,,, SU

Ignorância cj) Saber Modernidade Regulação

0

Emancipação Caos r \ Ordem (solidariedade) (colonialismo)

O o

Colonialismo cf> Solidariedade (ordem) (caos)

Mercado A\ Estado Q Comunidade

0 0 o

Racionalidade Racionalidade Racionalidade

cognitivo­ O Moral­nrática O , •

instrumental Moral­pratica w estét.co­expressiva

Pós­ modernidade Regulação

O

Emancipação Caos Ç) ordem

O

Solidariedade (auto­organização)

Comunidade ¢ ) Estado A\ Mercado

o o o

Racionalidade Racionalidade Racionalidade estético­ O moral­prática O cognitivo­

expressiva instrumental (nexos local­global

e imediato­ diferido)

1.3.2. Desafios da pós­modernidade e as possibilidades de construção de práticas