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Há pouco tempo, comecei a coletar água da chuva para molhar as plantas, até que um dia me dei conta que estava aproveitando a água para outros afazes domésticos. Não quero dizer que não considero importante fazê-lo, mas o fato fazia com que eu rememorasse minha experiência juvenil de “pegar água”.

Recordo-me que meus pais decidiram mudar de residência para um bairro mais próxi- mo à "pista" da Avenida Joaquim da Costa Lima, em Belford Roxo, além da novidade da casa nova, tinha o fato de estar mais próximo da padaria, do mercado e da escola. A casa era no morro e meus pais conversando entre si resolveram consultar as filhas e o filho para saber qual seria a nossa preferência, se moraríamos na casa de “baixo” ou na do “morro”. ”. Naque- le momento, tudo parecia indiferente, até porque o que eu queria era não mudar. Mas, um dia, chegou o caminhão de mudança, mais a carroça de apoio no frete e fomos levados (eu e mi- nhas três irmãs) à nova moradia. A casa estava em construção, não havia reboco na maior parte, meu pai fazia seu esforço, na maior parte das horas que não estava no trabalho, estava no trabalho da casa, levantando tijolo, abrindo porta, fechando outra, abrindo janelas e criando outras. Apesar de ter deixado os poucos amigos, a nova moradia não parecia tão ruim quanto as reclamações que gradativamente se decompunham a cada nova amizade que fazia no mor- ro. Foi no morro que vivi um pouco mais de vinte anos. Mas havia duas situações que me incomodavam pensar: uma era o fato de o banheiro de casa ser em cima da laje Nossa casa apesar de ser no morro era do lado de baixo da rua e, para que houvesse caimento dos resí- duos do bainheiro, era necessário que o cômodo estivesse um pouco mais a altura do nível da

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rua. Assim, os detritos poderiam encontrar com a rede de esgoto improvisada pela vizinhança. O outro fato era que não havia água na rede que ligava à estação de tratamento de água, por um simples motivo: a água não subia em morro. Assim, descíamos o morro, por um caminho entre terrenos baldios até chegar a Fonte da Rosa, uma nascente que resistia às ocupações de casas. Era lá que abastecíamos os baldes e enchíamos nossos reservatórios, quase como um ritual. Cada família descia o morro para pegar sua água, havia revezamento lá em casa, mas a tarefa de encher os galões foi se tornando minha por força do costume e de tarefas atribuídas, ainda que houvesse pouco revezamento da tarefa. Muita coisa acontecia na Fonte (Figura 6), ouvia os casos de traições amorosas, presenciava brigas, brigava também, tomava banho e acompanhava os colegas nas caças às rãs e aos muçuns. Ainda que houvesse pouco reveza- mento, subia o morro com dois “baldes” de latas de 20 litros com a água. Havia dias de calor em que a fila de pessoas para pegar água era grande, mas ao sol ficavam apensas as latas, os baldes, as panelas, para demarcar a vez de enchê-los na fonte. Nesses dias, na subida do mor- ro, a água fresca que derramava no corpo quente e suado, às vezes não refrescava o desânimo e o esforço de levantar o peso da água sobre a cabeça ou erguer sobre os ombros a balança improvisada com duas “latas de vinte”. Quanto mais rápido fosse, mais rápido terminaria o trabalhos, assim, eu pensava.

Figura 6- Fonte da Rosa, antes da construção do chafariz.

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Extraído do boletim on-line Notícias de Belford Roxo: http://noticiasdebelfordroxo.blogspot.com.br/. Acessado em 29 / jun. 2016.

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Em dias de chuva, ainda era mais difícil, fosse para descer o morro ou para subir pela trilha enlameada e escorregadia. Mais difícil era para aquelas pessoas que moravam no lugar mais alto do morro. Houve vezes que, bem próximo de casa, escorregava com a própria água que escorria sobre os pés, fato que incidia a retornar de volta à fonte para fazer mais uma “vi-

agem d‟água”. Lembro que o último “balde d‟água” do dia era para meu uso, embora pese a

memória, levava a água ao fogo, com lenha, no fundo do quintal para a delícia de um banho quente.

Lembrar essas experiências me fez reler o que havia escrito Maria Carolina de Jesus, há um pouco mais de meia década, em que dizia: –"por falar em água, o que eu não quero é pegar água, o que eu não gosto é de ir buscar água. Quando as mulheres aglomeram na tornei- ra, enquanto esperam a sua vez de encher a lata vai falando de tudo e de todos” (2007, p.51). Ela expressava e imprimia em um diário, entre outros pedaços de papéis, as reflexões sobre os acontecimentos de seus dias, os anseios, os medos e os desgostos, revelando que os sujeitos das classes populares têm muitos jeitos de narrar a vida e, que mesmo a contragosto, existem.

Essa história também me leva a outra lembrança da minha experiência de pegar água, mas agora, solidária à luta pela moradia com os sujeitos da Ocupação Chiquinha Gonzaga, nas proximidades da Central do Brasil.

A Ocupação era organizada por sem-tetos, pessoas que não tinham residência ou que viviam em condições precárias tendo em vista a carência financeira, que decidiram fazer valer o direito à moradia previsto no art. 6 da Constituição Federal de 1988. . Ocuparam o prédio abandonado há vinte anos pelo INCRA29, o local possuía treze andares onde passaram a morar 78 famílias. Entre as discussões nas reuniões de organização do movimento da ocupação esta- vam os temas ligados à luta contra o machismo, o direito à moradia, à construção de um espa- ço para as crianças, etc.. Eram questões que, através de assembleias, reuniões, atividades, etc. encaminhavam-se em planos de ação em comum para resolver problemas que havia no pré- dio, como a organização da “cozinha coletiva” onde era feito uma escala entre as famílias que cozinharia naquele dia, para outros tipos de organização e demanda, de modo que todos/as pudessem fazer/aprender outras atividades. Havia a “comissão de limpeza”, a “comissão de obras”, a “comissão de água”, entre outras. Cada comissão era formada em assembleia e as pessoas se indicavam para integrar-se às comissões de trabalho. Em uma das assembleias, foi decido um mutirão para limpeza da cisterna e abastecimento com água potável, como não

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havia bomba de água para abastecer a cisterna, ficou resolvido que todos/as ajudariam como pudesse no abastecimento. E, lá estava eu com os meus baldes d‟água junto com morado- res/as, militantes e outros apoiadores, levando água até o 13º andar. Desse fato, não me recor- do da sensação do peso da água, embora houvesse.

Diante disso, me motivo compreender que a intensidade da experiência do fazer cole- tivo provocada na ação, reconstrói imaginário, ressignificando a experiência vivida de cada sujeito. E, acentuando a ideia que é no coletivo que se diminui a intensidade do medo (Freire, 1986) frente à lógica da reprodução capitalista, é no coletivo que se reinventa o entusiasmo em que os sujeitos estabelecem interações no poder da ação consciente. A intensidade das interações de experiências muda o peso das águas, assim como, faz rebrotá-las da terra. No rebrotar me reencontro com Manuel Inácio do Nascimento, poeta cordelista e cearense. Meu contato com ele se dá em Belford Roxo, em meado da década de 1990, quando tive notícias de suas produções (como Guerra dos Bárbaros, Crime do Colarinho Verde, Canudos e Antô-

nio Conselheiro), através do contato de André Luís Gomes.

Digo reencontro, porque a primeira vez que o vi, eu estava trabalhando na cerca do quintal na frente de casa, quando caminhando pela rua, um sujeito barbudo, de sandália e so- taque nordestino, ele para e pede informação. Eu e meu pai paramos para atendê-lo. Ao que direciona a palavra: – Boa tarde, o senhor podem me dar uma informação? Sabe onde é que

mora o senhor Fabiano, sobrinho de André? No mesmo instante olho para meu pai e ele fita

um sorriso no canto da boca. Rio com um respiro do trabalho sufocado soltando a enxada no chão e digo: – Senhor Fabiano, não conheço, não. Mas Fabiano sou eu! E logo retrucando ele disse: – Pois pronto, eu sou Inácio, então Achei! Naquela tarde, ele havia dito que procu- rara toda manhã, mesmo sem o endereço e que havia decidido tentar a sorte. A única informa- ção era o bairro e a cidade. Disse que já havia perguntado em todo o bairro e que uma pessoa havia informado que tinha um poeta no morro, por isso subiu a rua. Esse foi o nosso primeiro encontro. Depois deste dia outros vieram, tantas leituras e trocas de versos.

Em 2015, quando caminhei em terras cearenses, estabeleci contato com Inácio e apre- sentei brevemente algumas questões da pesquisa; como pensar os saberes populares, como movimento permanente de (re)significação das práticas sociais. Traçamos as possibilidades das nossas conversas sobre o tema, mas o tempo, a distância e as situações de ordem econô- mica não foram justas para estabelecermos o diálogo que havíamos pensado. Entretanto, al- guns acontecimentos fizeram com que nos víssemos há pouco em Niterói. De tal modo que fora possível construir um entendimento de que as relações pessoais estão sempre se ressigni-

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ficando na busca de comunicações, de novas aprendizagens e das pedagogias solidárias do fazer humano nas condições mais adversas.

Nesse plano, embora o diálogo não tenha ocupado um lugar como havia pensando com Inácio, faço algumas referências de ações suas e do coletivo com quem participa, para promo- verem juntos práticas culturais para pensar-fazer a vida comunitária frente às desigualdades sociais e econômica, a luta contra as restrições e privações do direito à sementes originárias, à terra e o direito às águas.

As atividades realizadas pelo coletivo que participa, fomentam o debate, ações recrea- tivas e culturais e, atividade de troca de sementes crioulas, como atividades de “pedaladas”, oficinas de manutenção de bicicletas, saraus, entre outras. Essas atividades se realizam no Assentamento Rural Manduladino Barra do Leme, em Pentecoste (Ceará), conquistado em 1996.

Em uma delas, Inácio e Ivânia Cavalcante promoveram uma viagem de bicicleta de ida e volta, partindo do Ceará até Buenos Aires, Argentina, com o intento de potencializar as tro- cas de sementes crioulas, criar redes de solidariedade entre as diversas comunidades e pessoas que mantém viva as sementes originárias e, confirmando a existência de uma cultura de pre- servação das sementes, ao mesmo tempo em que, discutem a intervenção das empresas do agronegócio no controle das sementes. Essa atividade culmina na construção da microfloresta às margens do pequeno açude no Assentamento.

Com a seca no início da década de 2010, um novo problema surge: O açude seca. As poucas chuvas passam sem que dê conta de abastecer a reserva da comunidade. Acentua-se a isso as cercas que separam os “donos de terra” da região no controle do caminho das águas. Neste cenário de escassez da água, surge outra proposta do coletivo nomeada de “Rebrotando

Olho d‟Água”. Essa atividade consiste na construção de um aquífero artificial no Assentamen-

to, para canalizar a água da chuva. O Projeto (atividade) consiste na perfuração de crateras interligadas entre si e preenchidas com areia que, possibilitará conter as águas da chuva que escoará a partir do ponto de convergência até um reservatório que captará o excedente das águas. Essa atividade está sento realizada. E, sobre este plano que se deu nosso reencontro.

Em uma conversa passageira, ele me dizia que na atividade “Ciclovida”, foi desco- brindo no caminho, que muitas pessoas guardavam sementes crioulas e passavam de geração em geração. Dizia que por onde passava de bicicleta com Ivânia e paravam para conversar, as pessoas contavam história das sementes. A atividade Ciclovida surge como necessidade de mudar a ordem da ideia de “banco de semente” que, em suas palavras, empobrecia as trocas, a diversidade e aprisionavam os plantadores a um tipo de monocultivo. Explicava ele que, a

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ideia era transformar o lugar para trocar semente, para um movimento de troca, da participa- ção e da atividade. Uma vez que, os “Bancos de Sementes”, que conhecia na região, não da- vam conta da movimentação da procura, necessidade e diversidade de semente a serem plan- tadas. Esta foi uma caminhada em que buscavam conhecer mais as experiências e as formas de cultura das sementes, ao invés de se direcionarem para buscar as sementes que eram ofere- cidas.

A semente não tem lugar, ela transita pela natureza. A atividade itinerante de troca de semente, o esforço justo visto a possibilidade e necessidade de cada um em relação com a terra que ocupa, bem como, sua caminhada. Compreendo que nesse processo educativo o que motiva os sujeitos na ação e na percepção, não é só o trânsito das sementes feito pela compre- ensão da rede de saberes, mas também as reaprendizagens que acompanham o intenso fluxo de interações de conhecimentos.

Na atividade Rebrotando Olho d‟Água que proporcionou nosso encontro, Inácio, fala- va do problema da água e o período das secas. Sem água, dizia Inácio, tudo para. O que dá a

liga é a água, lembro-me de ouvir. A água como força de interação com a natureza. Todavia,

o que mais lhe preocupava não era o problema que envolve a água ou as sementes. Com as sementes, existem formas de multiplicá-las através de diversas práticas e com a água existem formas de contê-la para o uso. Dizia que a restrição da semente, a falta de acesso à água, ainda não eram a pior coisa. O que o tirava do eixo era constatar que “o que parece mudar a vida da

gente é quando nossas crianças têm de ir embora”. Tal constatação vinha precedida de um

relato sobre o processo educativo das crianças. Ressaltava o fim das escolas locais e a criação de escolas centrais, onde o Governo reunia todas as crianças. Tal prática cerceia as crianças do convívio das suas experiências, das suas relações, de seus conhecimentos e as colocam em uma escola com outra produção de valores que nada tinham a ver com a vida comunitária em que elas vivem. Assim, “quando elas voltam, não querem mais”. Na sua fala, me pareceu mudar o tom da sua voz. Dizia haver um movimento de mudança geográfica do espaço de escolarização cada vez mais afastado das comunidades, do trabalho coletivo, das vivências ecológicas, do olhar com a terra. “As crianças não querem mais voltar, não querem mais o trabalho com as sementes”. E por isso, era preciso repensar novas práticas com as crianças e a juventude. Repensar as práticas culturais como dimensão que educa a partir no fazer/sentir de cada um/uma.

A compreensão, que Inácio me trazia, era de que as interações que provocam mudan- ças sobre os sujeitos, também se movimentam com a força dos mesmos. Entendo, pois, que não há uma via de mão única nas interações interpessoais, nos modos como vão tecendo suas

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escolhas, visto que, quando os sujeitos se assumem no espaço como legítimo, outras imagens se formam em torno destes espaços, re-apropriando e fazendo revisões de suas práticas cultu- rais passando a se constituir como novas (Said, 2011) ressaltando para a solução de conflitos, nas tramas fronteiriças de novas hibridações realizadas às margens do que fora deliberado. E ainda, entendo que, os entremeados de saberes e experiências entre os sujeitos em diferentes espaços vão criando saídas para a construção de autonomia, vão criando intercâmbios, redes de saberes que possibilitam novas relações de aprendizados, novas formas de se organizar e novas significações de relações afetivas, para produzir um mundo cada vez mais solidário.