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“Eulália distribui seus livros a Lia e ao Leo. Lia não leo. Leo não Lia. Ficaram todos ao léu.” (Sem título – Moduan Matus, 2016)

A partir da experiência dos grupos mais próximos que participo da produção do livro, como Gambiarra Profana, Folha Cultural Pataxó e Revista Uni-vos, acredito que posso tecer algumas considerações que ajudam na compreensão de que algumas práticas culturais se arti- culam a partir da literatura para potencializar uma dinâmica de inter-relações pessoais. Enten- do que essas práticas, não se encerram nos livros, mas são ampliadas para outras dinâmicas que colaboram para que outros sujeitos, não apenas se apropriem da escrita, mas expropriem a palavra como um ato político, a partir de perspectivas múltiplas com a experiência coletiva que historiciza nas tramas cotidianas um saber acumulado. Para continuar, convém reforçar o

34 Faço aqui uma alusão a uma passagem do livro A Caverna, de José Saramago, em que seus personagens Cipri-

ano Algor e o subchefe do “departamento de compras do Centro”, discutem o valor de uso e de troca. Conceitos, usados por Marx, que definem o valor da mercadoria.

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que estou entendendo por expropriar a palavra. Entendo que a aquisição da língua tem a ver também com esse uso, mas não necessariamente, articula-se tal apropriação a sua dimensão política, ou seja, a apropriação somente não dá consciência de seu uso. Pensar esta dimensão política, me leva à ideia de que a expropriação da palavra, tem a ver com o ato consciente do processo da tomada do discurso, da enunciação e das expectativas em relação com outros su- jeitos de interação. Nesse sentido, ela não nasce da efemeridade de uma noite para o dia, mas nasce das noites que sucedem dias de frios, de calor, de flores e de brisa. A expropriação da palavra é uma das lutas pela narrativa da experiência histórica, do reconhecimento de si com o mundo e de sua mudança real. É, a partir da e na experiência coletiva, na interação com o grupo/coletivo que se estabelece uma mudança de qualidade de cada caminho dos sujeitos. Assim, a expropriação torna-se tomar para si a palavra roubada com a consciência do seu uso e valor para falar do lugar de si e não se apropriar do discursos-modelo vigente.

Nesse contexto, o livro e outros instrumentos de portar a palavra escrita aparecem co- mo resultados materiais de um momento do fazer criativo do trabalho em grupo/coletivo e/ou da autoria de uma única pessoa, mas é a participação dos diversos sujeitos no interior do gru- po/coletivo que potencializa a ação para criação de acontecimentos e colabora para as intera- ções das experiências comuns a qualquer pessoa.

É nos acontecimentos que os sujeitos mudam o foco do seu olhar, a partir das suas ex- periências em relações com as experiências de outros sujeitos. Nessa interação, a comunica- ção ganha marca de uma escrita, e por elas, os/as poetas vão soltando palavras aos ventos e se reinventando nos acontecimentos que promovem para circular a palavra. Desse modo, é pos- sível pensar que existe uma escrita própria da Baixada Fluminense (assim como em qualquer outro lugar) que não se escreve só no papel e que se define a partir do uso do seu território. Nesse sentido, penso que a escrita não somente é um tipo de acontecimento que estimula a criatividade imaginativa de narrativas dos sujeitos, mas também, de contranarrativa, porque os sujeitos não apenas narram suas histórias, fictícias ou experiências, ao invés disso, tais his- tórias estimulam a pensar que a luta na construção da consciência de si e da produção da au- tonomia é um exercício cotidiano na busca criativa de uma consciência social.

Dentro dessa compreensão, os acontecimentos provocados pelos sujeitos, definem os espaços nas relações que estabelecem entre si, promovendo na comunicação existente da vida comunitária novas significações na interação com os modos de sentir e dizer das classes popu- lares. Visto que, quando os sujeitos se assumem no espaço como legítimos, outras imagens se formam em torno desses espaços, se re-apropriando e fazendo novas revisões de suas práticas culturais passando a se constituir como nova (Said, 2011). Assim alguns acontecimentos que

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envolvem a palavra escrita na oralidade empoderada politicamente são criados pelos sujeitos que se apropriaram da escrita ou expropriaram a palavra para fazer do efêmero uma luta per- manente do direito e do prazer de dizer suas próprias narrativas postas a lutar e ocupar algum lugar contra as práticas invisíveis que silenciam e forçam o esquecimento de experiências históricas.

Nesse sentido, os sujeitos das classes populares, através de suas práticas culturais esta- belecem relações pedagógicas que amplificam as possibilidades de circulação da poesia, do texto literário, do livro e outras publicações, bem como potencializam uma escrita a partir da autônima de práticas da oralidade. Quem ensina é aquele/a que aprende-ensinando aprenden- do nas experiências que se entrecruzam e representificam em contexto de interações da vida comum e das relações diversas produzidas nos encontros e desencontros criados. Tais (des)encontros me parecem expressar territórios comuns que propiciam os usos de aprendiza- gens, para promover um movimento prático de significações de conhecimento que possibilita mudanças reais. Os encontros se delineiam motivados, sobretudo, pelas relações afetivas, das ações convulsivas e dos volitivos desejos de dizer, mas também, pelas busca de afinidades e pelas articulações de aprendizagens.

As produções individuais podem, muitas vezes, surgir pelas motivações provocadas no interior de espaços escolares, onde se experimentam as interações e possibilidades do uso da palavra. A escola, assim, também promove, entre outras coisas, a experiência dos encontros afetivos que se aglomeram e estabelecem interações que se estendem ao longo da vida. Desse modo, os acontecimentos e espaços criados para essa circulação da palavra, trazem marcas de processos educativos anteriores.

Nas práticas coletivas, em outros espaços, as experiências vividas não se perdem, mas interagem com outras, possibilitando que acontecimentos tornem-se excepcionais na triviali- dade dos dias. A excepcionalidade torna-se experimentada tanto no giz que escreve os poemas nas portas das lojas no calçadão de Nova Iguaçu, como nas intervenções poéticas em algum lugar público de Belford Roxo, entre outros, ou ainda, nas produções impressas que circulam. Nesse experienciar, há mudança na rotina dos passos de quem é provocado/a a olhar. Nesses espaços de troca afetiva não existe lugar para um valor monetarizado, talvez seja na generosi- dade da partilha do saber é, talvez, o que faz converter o tipo de valor que define o livro como mercadoria de troca, em um valor de uso que impulsiona a vida criativa dos sujeitos a estímu- los dos prazeres, da satisfação pessoal, do reconhecimento de si com outros/as. Nessa conver- são, o livro alternativo, independente ou artesanal como concebo ser produzidos em contex-

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tos populares, assume uma dimensão político-pedagógica preponderante na função de uso, tornando latente a presença de experiências anteriores.

No conjunto das práticas culturais onde circula a poesia, os livros revelam, muito antes de sua finalização enquanto bem material, outras redes de interações de pessoas que estão direta ou indiretamente ligadas à produção dessas práticas, por exemplo, os/as leitores/as “re- visores/as”, os/as digitadores/as, os/as professores/as e estudantes (em processo de confecção coletiva), as pessoas que trabalham em mecanografia (lojas de xérox), colaboradores/as com algum tipo de custo (comerciantes, familiares, militantes, etc.). De tal modo, que os/as auto- res/as passam a se constituir em práticas que dinamizam processos de aprendizagens a partir da experiência vivida e das inter-relações ressignificadas no contexto social.

Tanto no movimento da produção da criação literária, quanto no domínio da técnica que faz canalizar o que se produz, a ação individual e/ou atuação coletiva parte dos caminhos que seus contextos proporcionam. Assim, vão se constituindo saraus, intervenções de coletivo de poetas, atividades de debate/conversa, “cafés” e “feiras” literárias organizadas nas escolas, oficinas de produção de texto, de periódicos ou livros, evento de lançamento de livros, etc.. Atividades que vão compondo as práticas culturais e que expressam a necessidade do encon- tro entre os sujeitos para impor o continnum de uma oralidade, que faz uso dos espaços como instrumento de troca de experiência, de afeto e de interação de saberes.

Entendo o livro independente como um momento da sucessão de ideias onde se en- tremeiam experiências e trocas de saberes. Tais trocas conferem a ele relevância significativa em sua contextualização implicada na circulação de ideias, no reconhecimento de saberes e no

apoderamento da palavra pelos sujeitos, sobretudo, na experiência de publicação coletiva.

É durante o processo de produção que verifico fortemente essa troca de experiência e saberes para visualizar tal processo de maneira mais didática, divido tal processo em três mo- mentos. O primeiro, diz do momento em que se articulam as experiências e ideias para a con- fecção do livro (ou qualquer outra publicação) dentro de uma dinâmica pedagógica provocada ou em que as relações afetivas construídas possibilitam outros encontros pessoais; um segun- do momento refere-se à reprodução objetiva, entre a montagem ou a confecção, propriamente dita, à organização do momento em que se realizará a apresentação do livro como resultado do trabalho coletivo (o evento do lançamento, por exemplo); e por último, um momento mais subjetivo, que diz respeito à produção de significados nas redes de interações de cada um/uma que compõe sua participação no trabalho coletivo do livro. Assim, o livro se soma a outros sujeitos na experiência comum. Haja vista que, estes livros trazem os pontos de vistas, não apenas de quem os gestou, mas de outas pessoas no contexto em que vivem. O livro ganha,

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então, outro sentido, passando a circular, não como mais um, mas como o livro (substantivo determinado) que tem a ver com as contexturas em que se insere como reconhecimento dos sujeitos e seus conhecimentos.

Alguns momentos da confecção/fabricação, apropriação e expropriação da técnica do fazer o livro, podem ser conferidos através de imagens (Figura 8), como fotos e vídeos, nas redes sociais, como expressão de uma comunicação e divulgação de processos de aprendiza- gens entre sujeitos e grupos. É importante ressaltar que no espaço de produção independente da Gambiarra Profana e da Folha Cultural Pataxó, a técnica da montagem não é segredo de fábrica, ela é compartilhada para que outras experiências possam surgir e, dessa forma au- mentar a rede de expropriação da palavra. Não é apenas técnica, é ensino-aprendizagem onde se estabelecem frente de luta contra o modo de produção capitalista e seu valor de troca.

Figura 8 – Momentos da produção do livro

______________________________________________________________________________________ Fonte: Acervo próprio

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O reconhecimento do fazer-se com outros sujeitos no reconhecimento de sua história e de suas narrativas como processo de construção de conhecimentos colaborativos a outras ex- periências futuras, é uma prerrogativa da percepção de que o/a educador(a)/poeta popular tem de pensar a sua própria prática para além do aperfeiçoamento estético. Pensar a prática, tem a ver com uma conexão com outros sujeitos de uma classe, como narrativa de uma experiência histórica e como partilha do saber construído nas inter-relações e nas interações vividas.

Pensar o livro como Borges (2011) propõe e a partir das reflexões que aqui chegam, significa pensá-lo como instrumento de ressignificação da experiência histórica, pois, permite gerar sentido como projeção do fazer criativo articulado a uma nova expectativa. Há nesse processo um vínculo com o aprender, uma troca entre culturas e expressões. Palavra que sente podem criar desde que seja compreensível, interpretável, refutável, entendível para criar signi- ficado com o que é real e sentido, e, isto cabe à poesia, é claro que não somente, todavia ela tem uma marca, que é ressignificada no sentido que cada um projeta sobre o mundo que vê o

que sente e que está associada também a apropriação da escrita.

Aqui, a poesia é pensada como uma dimensão possível da expropriação da palavra para projetar uma ideia de que, existem sujeitos da sociedade que tem algo a dizer e dizem.

Tomar a palavra é também criar outro discurso que pressuponha a organização do saber, da

sistematização da experiência para dizer da beleza que é sentida pela vida, ou para romper com a feiura das lógicas dominantes de poder que destituem o humano do seu ser.