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3 DESENVOLVIMENTO, MULHERES, TRABALHO E GÊNERO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

3.4 Mulher, divisão sexual do trabalho e o rural brasileiro

A crise global, afeta radicalmente as principais categorias de pensamento e instituições originadas pelo patriarcado – da razão instrumental que separa sujeito-objeto, base do projeto da tecnociência, e que reduz o complexo ao simples e instaura o domínio do homem – entenda-se o varão – sobre o processo da natureza, até a instituição do poder exercido como dominação ou hegemonia do mais forte. (MURARO, BOFF, 2010, p.16).

A primeira transição e talvez a mais profunda, deve-se ao lento, relutante, mas inevitável declínio do patriarcado. A periodicidade associada ao patriarcado é de pelo menos três mil anos (...). O que sabemos é que a civilização ocidental e as suas precursoras, assim como, a grande maioria das outras culturas, basearam-se em sistemas filosóficos, sociais e políticos “em que os homens – pela força, pressão direta, ou através do ritual, da tradição, lei e linguagem, costumes, etiqueta, educação e divisão do trabalho – determinam que papel as mulheres devem ou não desempenhar, e no qual a fêmea esta em toda parte submetida ao macho. (...) Era o único sistema que, até data recente, nunca tinha sido abertamente desafiado em toda história documentada, e cujas doutrinas eram tão universalmente aceitas que pareciam constituir leis da natureza; na verdade eram usualmente apresentadas como tal (...). O movimento feminista é uma das mais fortes correntes culturais do nosso tempo (...). (CAPRA, 2006, p. 27).

Para se compreender a desigualdade de gênero presente no meio rural brasileiro é necessário olhar para trás e se aproximar da condição histórica da mulher na sociedade brasileira no sistema colonial, escravista e patriarcal54. A trajetória e o cotidiano da mulher no Brasil colônia aponta distintas interpretações sobre a submissão, à subordinação ou mesmo a sua resistência e protagonismo. Marina Basso Lacerda (2010) em “Colonização dos Corpos: ensaio sobre o público e o privado. Patriarcalismo, patrimonialismo, personalismo e violência contra as mulheres na formação do Brasil” explica a divergência que existe de abordagem sobre o tema. Autores como Mary Del Priore (2000 e 1993), Fabiano Vilaça (2008), Maria Ângela D´Incao (1997) e Rachel Soihet (1997) destacam-se como os que enfatizam a capacidade de resistência e mudança dessas mulheres evitando com isso a sua condição de vitimas ao preferir enfatizar a sua capacidade de ação e mudança. Já autores como, Gilberto Freyre (1986), Caio Prado Junior (1957) e Darcy Ribeiro (2006) realizaram caminho inverso,

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O patriarcado diz respeito aos sistemas de organização social em que prevalece uma ordem masculina de poder econômico, político, social, cultural e simbólico. Tem origem milenar (MURARO, 2002). Já o patriarcalismo é um conceito cunhado por Weber, que significa um tipo específico de dominação tradicional, legitimada na autoridade pessoal e na tradição, distinta da dominação racional-legal, legitimada pela ordem impessoal em virtude da legalidade formal. O que é importante fixar é que patriarcado é uma noção muito mais ampla, não se resumindo aos sistemas de dominação patriarcal, existente, também, nas sociedades em que prevalece a dominação racional legal (LACERDA, 2010).

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quando trataram ainda que indiretamente a estrutura de dominação patriarcal55 e violenta contra as mulheres.

Ambas as perspectivas de análise dos autores brasileiros – foca na ação do sujeito e na resistência ou foco na estrutura e na opressão – parecem ser importantes (...). Há de se reconhecer, também, que existiram situações em que a mulher foi vítima inteiramente, em violências como o estupro e o açoite. Esse aspecto não pode ser negligenciado pelos estudos que enfocam a capacidade de resistência dos agentes sociais. Se as mulheres resistiram, contra elas existia uma rede de aparelhos repressores, entrelaçados pela colonização, muito mais fortes. (LACERDA, 2010).

Para o pensamento sociológico brasileiro Aguiar (1997, p.165-166), afirma que, a escassez de análises sobre a forma como as Ciências Sociais dão conta da condição de vida das mulheres é substantivamente maior, embora importantes semelhanças — e diferenças — tenham sido traçadas entre os clássicos da disciplina e os do pensamento sociopolítico brasileiro. E que mesmo com a possibilidade de avançar sobre discussões já iniciadas em outros contextos, há pouco progresso sobre a análise. Isso porque conceitos hoje amplamente discutidos e ampliados pela literatura feminista internacional, como o patriarcado,

não são discutidos no contexto da produção acadêmica de autores nacionais, tais como Gilberto Freyre (1973), Oliveira Vianna (1949), Nestor Duarte (1966), Fernando de Azevedo (1949) e Raimundo Faoro (1958), para citar alguns exemplos que deles fizeram vasto uso em suas obras. O efeito proporcionado por esta omissão é o de desconsiderar o contexto histórico em que as demandas feministas ocorrem, enquanto movimento político que combate o autoritarismo em variados campos. (...) A partir dos clássicos do pensamento brasileiro, pesquisas empíricas, têm sido efetuadas guardando os pressupostos do patriarcado. Quando surgem mudanças nas relações de género, essas metodologias também necessitam de uma revisão (AGUIAR, 1997, p. 165-166)

Mas, ainda assim, segundo Aguiar (1997, p. 200) um dos autores que mais se deteve a análise da sociedade patriarcal brasileira foi Gilberto Freyre, que independentemente das relações entre a organização do grupo doméstico e a forma de

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O poder patriarcal é caracterizado por Max Weber (1947, p. 346) como sendo um sistema de normas baseado na tradição, quando as decisões são tomadas de uma determinada forma, porque isto sempre ocorre de um mesmo modo. Outro elemento básico da autoridade patriarcal é a obediência ao senhor, além da que é devotada à tradição. A modalidade, por excelência, da relação de poder inquestionável é a do poder patriarcal, uma vez que, historicamente, não havia possibilidade de que a autoridade paterna fosse questionada por intermédio da Justiça. Todavia, o sistema patriarcal pode constranger o senhor a tratar seus súditos de forma protetora, o que o distingue das relações que ocorrem com a exploração racional da força de trabalho sob o sistema capitalista. As relações de poder na dominação patriarcal fundamentam-se na autoridade pessoal. Weber (1947, p. 396) contrasta esta forma de dominação com a que ocorre nas sociedades capitalistas, quando o processo de racionalização, resultante do desenvolvimento da ciência e da tecnologia dá origem a um sistema de normas abstraías e impessoais, sob as quais os funcionários das burocracias se organizam. Essas normas estabelecem que a pessoa no poder possui autoridade legítima. Para acionar regras, em circunstâncias determinadas (Weber, 1978, p. 1006). Já no sistema patriarcal, a autoridade é garantida pela sujeição pessoal. A forma de dominação é assemelhada por Weber à escravidão. As mulheres aponta Weber (1978, p. 1009), por vezes podem compartilhar com o patriarca deste tipo de autoridade baseada na tradição, quando funcionam como agente econômico, provendo alimentos pelo cultivo da terra e pelo processamento de seus produtos. Neste caso, literalmente, observa: funciona a divisão sexual do trabalho (Weber, 1978, p. 1009). O autor não analisa, porém, como se dão as relações de poder entre homens e mulheres que repartem entre si esta autoridade sobre os demais membros do grupo doméstico (Weber, p. 1007) (AGUIAR, 1997, 173,172).

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dominação estatal, o autor destaca que o patriarcalismo estabeleceu-se no Brasil como estratégia da colonização portuguesa. E que as bases institucionais dessa dominação são o grupo doméstico rural e o regime da escravidão. A estratégia patriarcal consiste em uma política de população de um espaço territorial de grandes dimensões, com carência de povoadores e de mão-de-obra trabalhadora para gerar riquezas. A dominação é exercida com homens utilizando sua sexualidade como recurso para aumentar a população escrava nesse processo de povoamento. A relação entre homens e mulheres ocorre pelo arbítrio masculino no uso do sexo.

Gilberto Freyre denomina esta relação de cálculo politico: a necessidade de povoamento e de braços para a dominação (LACERDA, 2010).

Apesar de a forma da organização da sexualidade ter tido alguma pluralidade, principalmente nas classes baixas, a violência não deixou de ser frequente. Além disso, alguns parâmetros gerais podem ser identificados: o controle sexual das brancas de classe alta no objetivo de concentração da nobreza e da propriedade e o abuso sexual generalizado das escravas e das índias (ainda que a estas últimas muitas vezes tivessem a si atribuído o nobre papel de mãe de família), com doses altas de sadismo (Freyre) – podendo-se dizer que o antagonismo fundamental que informa a tradição conservadora no Brasil é o entre senhor e escrava (LACERDA, 2010, p. 46).

Verena Stolke, em “O enigma das interseções: classe, “raça”, sexo e sexualidade, a formação dos impérios transatlântico do século XVI a XIX” (2006, p. 19), afirma que na sociedade colonial o corpo sexuado tornou-se fundamental na estruturação do tecido sócio-cultural e ético engendrado pela conquista portuguesa e espanhola e pela subsequente colonização do Novo Mundo. No entanto, até recentemente as/os pesquisadoras/es em geral deram pouca atenção ao papel crucial que o controle da sexualidade das mulheres, por parte do Estado, da Igreja e o domínio dos homens, teve na construção da sociedade colonial. Para esta o Brasil foi colonizado de forma muito esparsa até o fim do século XVI56, quando as fazendas de cana-de- açúcar, primeiramente no Nordeste, começaram a absorver um número crescente de escravos africanos.

para logo em seguida, começar a exploração sexual de escravas, que no início era pouco numerosa, por parte dos seus proprietários. A capitania da Bahia, ampla região que circunscreve a Baía de Todos os Santos, dominada pela cidade de Salvador, capital da colônia brasileira de 1549 a 1763, tornou-se a primeira e mais importante região de posse de escravos das Américas. Em meados do século XVI as fazendas de

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Em Formação econômica do Brasil, Celso Furtado (1920-2004), quando se refere a capitalização e nível de renda na colônia açucareira declara: “O aproveitamento do escravo indígena em que se baseavam todos os planos iniciais, resultou inviável na escala requerida pelas empresas agrícolas de grande envergadura que eram o engenho de açúcar’ . A escravidão teria se tornado desde o primeiro momento uma condição de sobrevivência para o colono europeu na nova terra. Como observava um cronista da época “sem escravos os colonos, não podem sustentar a terra”. Isso implicaria que estes se organizassem em comunidades dedicadas á produzir para o autoconsumo, o que só seria possível se a imigração tivesse sido realizada em bases totalmente distintas. Os grupos de colonos que em razão da escassez de capital, ou da escolha de uma base geográfica inadequada encontraram maiores dificuldades para consolidar-se economicamente, empenharam-se de todas as formas na captura dos homens da terra. A captura e o comercio do indígena vieram constituir assim, a primeira econômica estável dos grupos de população não dedicados a indústria açucareira. Observada de uma perspectiva ampla, a colonização do século XVI surge fundamentalmente ligada a atividade açucareira.

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cana em expansão no Recôncavo Baiano se tornaram um importante terminal do tráfico de escravos do Atlântico.

A mudança do trabalho escravo da população originaria para africanos neste período da história colonial brasileira teve razões não apenas econômicas, mas também geopolíticas e culturais. Pois, segundo Stolk (2006) os escravos africanos se firmaram como uma força de trabalho mais produtiva, por estarem disponíveis em abundância e por se sujeitarem a uma disciplina rígida, enquanto a relativamente pequena população originaria fugia muito facilmente pela vastidão da terra. Não só escravos, mas também escravas trabalhavam nos moinhos de cana e nas áreas de plantação, sempre sob vigilância masculina. Prestavam também serviços domésticos na casa-grande, onde se tornavam presas das aventuras sexuais de seus senhores (SCHWARTZ, 1985) e complementa.

O retrato seminal, feito por Gilberto Freyre, da benevolência patriarcal dos senhores em relação a seus escravos, segundo a qual a exploração sexual de escravas por colonos portugueses evidenciava uma surpreendente ausência de preconceito, que distinguia o Brasil da América espanhola colonial, acabou se mostrando uma falácia (FREYRE, 1933; e SCHWARTZ, 1985). No Brasil, de forma semelhante ao que aconteceu na América espanhola, a população em veloz crescimento de mulatos correspondia na sua maioria a filhos de fazendeiros da cana-de-açúcar; estes engravidavam suas escravas domésticas, raramente se mostrando dispostos a legitimá-las pelo casamento. Como apontou Roger Bastide, “raça” implicava “sexo”. Quando a mestiçagem acontece dentro do casamento ela de fato indica ausência de preconceito. Mas do modo como à mestiçagem ocorreu no Brasil, ela transformou toda uma raça em prostitutas (BASTIDE, 1959, p. 10-11).

A formulação de Francisco de Oliveira (2003, p. 461) vai ao cerne da questão: “o escravismo que produz a posse e o devassamento do corpo, a não alteridade; que produz o não outro, larga e longa base de sociabilidade que continuará a reger as relações no Brasil no século XXI” (LACERDA, 2010, p. 68). O patriarcado brasileiro representa, portanto um marco importante sobre as condições históricas impostas a mulher na sociedade colonial e nos dias de hoje nas áreas rurais e urbanas do país. Estas sofreram e sofrem historicamente intensos momentos de subordinação e submissão, frutos de uma construção ideológica relacionada à cultura do patriarcado. A cultura da dominação, do homem sobre a mulher branca da “casa grande” e da mulher negra da “senzala” e também na “casa grande” se é que se pode nos referir deste modo as relações que de desenvolveram no interior das famílias da sociedade colonial brasileira. A estruturação da família no Brasil colonial segundo Lacerda (2010) a confirmação de autores - Caio Prado (1957), Mary Del Priore (2000), Maria Nizza Silva (1998) e Gilberto Freyre (1986), em grande parte ocorreu sobre a escassez de mulheres brancas, únicas capazes de reproduzir os colonizadores puros, ficando sua inserção na colônia diretamente ligada a reprodução.

A ausência das mulheres brancas provocou a mestiçagem que raramente ocorreu por meio do casamento. A mistura se deu principalmente através do concubinato ou mesmo da exploração sexual violenta, que foram generalizadas e havia,

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nisso, um forte componente de discriminação racial. Para Stolke (1999, p. 20), quando a mestiçagem aconteceu dentro do casamento ou de alguma relação que importasse em compromisso ela de fato indicou ausência de preconceito. Mas não foi isso que aconteceu massivamente no Brasil. Darcy Ribeiro (2006, p. 207) sintetiza a problemática: “Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de uns poucos brancos com multidões de mulheres índias e negras”, cruzamento que se deu com doses altas de violência. Era o “estupro como fundamento da ordem”, na expressão de Francisco de Oliveira (2003-II, p. 453).

Para José Murilo de Carvalho (2001, p. 20) apud Lacerda (2010) a miscigenação se deveu à natureza da colonização portuguesa: comercial e masculina. Pois, Portugal, na época da conquista, tinha cerca de um milhão de habitantes, de forma que estes se apresentavam como insuficientes para colonizar o vasto império, sobretudo as partes menos habitadas, como o Brasil. “Não havia mulheres para acompanhar os homens. Miscigenar era uma necessidade individual e política. A miscigenação se deu em parte por aceitação das mulheres indígenas, em parte pelo estupro. No caso das escravas africanas, o estupro era a regra”. Essas características foram, portanto, generalizadas pela colônia, não se reduziram ao Brasil açucareiro, e segundo Darcy Ribeiro (2006, p. 219) trouxeram consequências

a duplicidade do comportamento sexual do português de outrora e do brasileiro de classe dominante de hoje. Um para as relações dentro do mesmo patamar social e outro para com pessoas de classe social inferior. Neste segundo caso, dificilmente se abriu espaço para desenvolver o apego, o caráter lírico, o vínculo romântico, a intimidade – as paixões existiram, mas, de regra não conquistaram o status de relacionamentos oficiais. As relações sexuais se deram pura e simplesmente pelo aspecto carnal, sem dignidade além da dos animais. O padrão do homem de classe dominante foi, e talvez ainda se mulheres de classe inferior – sobretudo das mulatas – de indiferença sentimental e social e de irresponsabilidade para com os filhos de tais intercursos (LACERDA, 2010, p. 41/42).

Aproximar mesmo que de forma reduzida a visão sobre a condição social, cultural, politica e econômica da mulher na sociedade colonial brasileira, implica falar de uma sociedade que promoveu a existência de duas construções sobre a mulher, segundo Neto (1994), a da branca e da negra. A primeira se destinava assumir o papel de esposa, mãe da prole legitima a supervisão da casa e dos trabalhos domésticos, dos escravos, ou até mesmo sendo um ser artificial e mórbido. Já a segunda, a mulher negra cabia à função de servir ao seu senhor, incluindo também os serviços sexuais.

Brandão e Bingemer (1994, p. 96) ao discorrer sobre gênero, recordam o período “do Brasil colonial, que a situação da mulher brasileira era bastante precária [...], dando ao marido não só amplos poderes, mas ainda o cruel direito de castigar fisicamente a mulher” (SANTOS, SILVA, 2010, p.18). Neto (1994) também se refere ao período colonial, escravocrata e patriarcal para expor a autoridade masculina em relação a mulher que segundo este era indiscutível haja vista que iniciava-se com o pai e passava posteriormente para o marido, além de seu papel feminino que era reafirmado pelos

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dogmas da igreja católica. A autora no livro “O autoritarismo da mulher: jogo da dominação macho-fêmea no Brasil” ressalta as características de uma sociedade patriarcal moderna que contribui fortemente para as distinções entre o homem e a mulher no que se refere a tradição cultural, mística e religiosa, responsáveis pelos papeis socialmente construídos (SANTOS, SILVA, 2010, p. 18) para um grupo de mulheres em particular, aqui cabe ressaltar pelo que já foi exposto que esta era a condição principalmente das mulheres brancas que realizavam matrimonio.

Safiotti (2013) em “Mulher na sociedade de classe, mito e realidade” lembra que as mulheres brancas da época escravocrata, apresentavam os requisitos fundamentais para submeter-se sem contestação ao poder do patriarca, aliando a ignorância a uma imensa imaturidade. Casavam-se tão jovens que aos 20 anos eram consideradas solteironas. Era normal que aos 15 anos a mulher já estivesse casada e com filho, havendo muitas que se tornavam mãe aos treze. Educadas em ambiente rigorosamente patriarcal, essas meninas-mãe escapavam ao domínio do pai para com o casamento caírem no domínio da esfera do marido. Cronistas estrangeiros relatam a crueldade com que eram punidas mulheres solteiras e casadas, quando havia uma leve suspeita de que houvessem burlado a vigilância do pai ou do marido em supostos namoricos.

Durante o período colonial a timidez e a ignorância faziam parte do principio da segregação sexual integrante da tradição ibérica e validado pela igreja católica, pesava sobre a formação da personalidade feminina, fazendo da mulher um ser sedentário, submisso, religioso, de restrita participação cultural. Entre a autoridade do chefe de família e a autoridade moral da igreja representada pelos padres, a mulher estava imersa num clima inibidor da inovação, em que tudo significava a antissolicitação e o anti-incitamento à obtenção da instrução. O que era reforçado poderosamente pelo governo metropolitano.

Nem mesmo a língua portuguesa sabiam falar as mulheres de certas regiões do Brasil no século XVI e XVII. Da convivência direta com os índios e da ausência de contato direto com os europeus resulta que as mulheres e crianças sabiam expressar-se na língua dos nativos. O estado de indigência cultural em que viviam na época colonial pode ser equilatado pelo que apurou Alcântara Machado nos testamentos paulistas dos séculos XVI e XVII. Nas quatro centenas e tantos de testamentos compulsados, aparece uma constante justificativa da ausência de assinatura da outorgante: “por ser mulher e não saber ler...” (SAFIOTTI, 2013, p. 269).

As leituras da época indicadas às mulheres brasileiras, segundo Ferreira (2013), correspondiam ao que escreveu o “virtuoso bispo Fenelon” no seu “Tratado de educação para meninas”, publicado na França em 1687 e traduzido para o português em 1830 em Pernambuco. A obra estava “oferecida às senhoras mães, de famílias brasileiras”, e o livro alertava para o perigo que o estudo representava para as mulheres, seres frágeis e, portanto inferiores aos homens, e que por isso não deviam se dedicar demasiado aos estudos, a leitura de novelas, que despertam a imaginação e as despertam da realidade. Do mesmo modo não deviam estudar matérias da reflexão, como a Filosofia, Teologia e a Politica. Igualmente perigosas eram a poesia e a música,

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porque favorecem os sonhos e devaneios e a perda de tempo. Fenelon explicava assim a sua ideia de educação feminina que as mães e pais do Brasil adotariam como modelo para suas filhas, recusando as mulheres a instrução e o próprio uso da inteligência, exigindo que apenas se dediquem a direção competente das suas casas.

Elas não devem governar o estado, lutar na guerra, nem, entrar nos ministérios das coisas sagradas. A maioria das artes mecânicas não lhe convém (...). Em compensação a Natureza lhes deu o domínio da limpeza e da economia, para que se ocupem tranquilamente de suas casas (FERREIRA, 2013, p. 127).

Algo contrário à visão andocêntrica e sexista da igreja é publicado em 1832, por Nisia Floresta que na cidade de Olinda lança um periódico, o primeiro editado por uma mulher no Brasil. Cujo título “O espelho das brasileiras”, convidava as mulheres a imitar o exemplo das romanas, na dedicação a família e a pátria, lhes aconselhando a participar da vida na comunidade. Nesse mesmo ano Nisia Floresta57 traduziu o livro de Mary Walstonecraft, “Reivindicação dos Direitos das Mulheres”, e o publicou em Recife, onde se preconiza a necessidade das mulheres se instruírem para tornarem-se cidadãs.