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3. A palavra política no campo psicanalítico

3.2. Na obra de Lacan

Tal como Freud, que não trata diretamente do tema da política, mas, simultaneamente, faz dela o cerne de suas elaborações, Lacan nunca fez da política um tema diretamente abordado – como o fez, no caso, com a ética, com o ato e com o discurso –, mas as referências alusivas também são onipresentes. As referências diretas, por sua vez, são mais numerosas. Lacan utiliza a palavra política muito mais vezes do que o pai da psicanálise.8 Na grande maioria das vezes, entretanto, ela aparece, como em Freud, em sua acepção tradicional, referindo-se aos diferentes tipos de regimes de governo. Talvez por isso Miller (2003), em uma entrevista sobre Lacan e a política, não obstante teça alguns comentários interessantes, tenda a considerar que essa noção aparece na obra lacaniana apenas em referência ao Estado, à sociedade civil e aos ideais da cidade, quando uma investigação mais

8 Renata Constancio, Michele Parola e eu fizemos um levantamento de todas as referências

diretas à palavra política na obra de Lacan. Devido à quantidade de citações (aproximadamente uma centena), selecionamos as que julgamos mais relevantes para a discussão sobre o estatuto da política em sua obra e as publicamos na Revista Stylus, sob o título A palavra política nos Seminários, Escritos e Outros Escritos de Jacques Lacan (Checchia, Constancio, & Parola, 2011).

detalhada permite observar que na obra de Lacan a política não se reduz a esse emprego. Por outro lado, Miller bem aponta, quanto a essas referências mais tradicionais, que Lacan costuma ser irônico e até mesmo cínico e sarcástico ao falar dessa política – explicitando sua posição crítica, assim como Freud, quanto a qualquer forma de ilusão provinda dos ideais propagados pela sociedade.

Já nos momentos em que Lacan articula diretamente alguns conceitos psicanalíticos à noção de política, assim subvertendo-a, ele é mais sério, mas por outro lado costuma ser, no entanto, bastante vago e enigmático. No Seminário 2, por exemplo, ele articula a posição do político com a do psicanalista: “Eu não quero dizer que o político é o psicanalista. Platão precisamente, com o Político, começa a fazer uma ciência da política, e Deus sabe onde isso nos levou depois. Mas para Sócrates, o bom político é o psicanalista” (1954-1955/1985, p. 31). Bem diferentemente de Freud, que diz que o eu é como o político, aqui Lacan afirma que, na perspectiva socrática, o bom psicanalista é o político. Com isso, ele faz propositadamente um anacronismo, imputando a Sócrates uma afirmação irreal, uma vez que a psicanálise não existia em sua época. O que, então, Lacan quis dizer com isso? Ele não explicita, cabendo a nós tentar amarrar algum sentido a isso buscando as referências citadas e o que ele transmite em outros momentos de seu ensino.

Em vista disso, procurarei justamente trabalhar essas citações ao longo da tese, situando-as e tentando esclarecê-las. Mas destaco agora duas dessas citações, pois são as que demarcam o percurso a ser trilhado. A primeira é a famosa passagem de A direção do tratamento e os princípios de seu poder, na qual a política é situada como o princípio primordial da direção da cura9 na

9 É preciso fazer aqui uma advertência importante quanto ao termo cura, que será bastante

utilizado durante a tese. Lacan utiliza o termo cure, que não tem um correspondente em português. Segundo Kaufmann (1996), a palavra cure é definida como o tratamento de uma doença, que produz a cura (guérison) definitiva. Traitement, por sua vez, remete a um tratamento de uma doença que não tem cura. Lacan costuma empregar traitement para se referir à prática psicanalítica com psicóticos e cure para a prática com neuróticos. Penso que traduzir o termo cure por tratamento pode dar a entender que para Lacan o processo analítico com o neurótico não tem fim, o que seria um equívoco, uma vez que é grande sua preocupação em delimitar o que é um final de análise. Por outro lado, traduzir cure por cura pode levar ao equívoco de que a experiência psicanalítica levaria ao fim definitivo de qualquer sintoma neurótico. Tendo isso em vista, procurarei empregar o termo cura para me referir ao que está implicado num final de análise, que não se caracteriza exatamente pela eliminação

clínica com os neuróticos: “o analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser” (1958/1998, p. 596). Essa ideia de uma política da direção da cura serve perfeitamente aos propósitos dessa pesquisa, uma vez que intento extrair da obra de Lacan uma noção de política que tenha validade para se examinar não só a finalidade social da clínica psicanalítica, mas também os princípios da direção da cura, implicados nessa finalidade, que estão presentes ao longo de uma sessão e de todas as sessões de uma experiência psicanalítica levada até seu final. Por isso, embora Lacan não siga empregando essa referência direta à política durante seu ensino, utilizei-a como chave de leitura de sua obra para orientar o diálogo entre alguns conceitos do campo psicanalítico e conceitos do campo político.10 Foi a partir dessa leitura que se evidenciou, de meu ponto de vista, quatro significantes mestres, isto é, quatro conceitos centrais aos quais a política da direção da cura está atrelada, a saber: técnica, ética, ato e discurso. Deste modo, na primeira parte da tese serão discutidas as articulações entre as noções de técnica e política. Essa articulação, a meu ver, prevaleceu no ensino de Lacan até o final da década de 1950. Por se tratar de um tema que marca também a entrada de Lacan na história da psicanálise, bem como explicita sua posição no debate sobre a técnica existente nas instituições psicanalíticas, considerei ser importante investigar primeiro qual era a posição de Freud nas questões relativas à técnica para, em seguida, passar ao posicionamento de Lacan. Nesse trajeto, a política também é associada, em suma, aos conceitos de sugestão, resistência, interpretação e transferência.

Como de 1960 a aproximadamente 1965 passa a prevalecer na obra de Lacan as reflexões acerca da ética da psicanálise, a segunda parte é dedicada a esse tema. Nessa parte, num primeiro momento a política é situada nos

completa dos sintomas (a expressão “direção da cura”, por exemplo, compreende a direção do final de análise). E utilizarei o termo tratamento em referência ao conjunto de sessões de análise que leva à cura analítica. Para quem se interessar pelo estudo mais aprofundado dessas noções de cura e tratamento em relação às noções de cuidado, terapia e clínica, remeto à obra Estrutura e constituição da clínica psicanalítica – uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento (Dunker, 2011).

10 A psicanalista Dominique Fingermann tem feito um percurso parecido em seus seminários no

Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo. Desde 2010 ela vem propondo uma leitura de alguns seminários de Lacan (do Seminário 15 em diante) partindo da noção de direção da cura. Inspirei-me também nessa proposta para realizar uma leitura da obra de Lacan tendo como base a citação sublinhada.

fundamentos teóricos da ética tal como estabelecida por Lacan. Posteriormente, ela é remetida à psicanálise enquanto experiência ética e moral, bem como a outras noções associadas à ética lacaniana: desejo do analista, alienação e separação.

Na parte seguinte, o diálogo é feito com o conceito de ato psicanalítico, intensamente presente na obra de Lacan entre 1966 e 1968. Inicialmente, busco retomar os princípios do ato na direção da cura para indicar como a política passa a ser reportada às operações alienação, transferência e verdade e, principalmente, às expressões que definem o final de análise, a saber, destituição subjetiva e queda do objeto a. A partir dessa elaboração, levanto algumas possibilidades de articulação entre os conceitos de ato psicanalítico e ato político.

Logo após 1968 Lacan elabora o conceito de discurso para, dentre outras coisas, indicar de outra forma a posição do psicanalista na direção da cura. Por se tratar de uma elaboração que implica também a noção de laço social, assim como a descrição e análise das formas de laço existentes na relação do sujeito com o Outro, a política é situada de forma distinta em cada configuração discursiva, a saber, no discurso do mestre, no discurso da histérica, no discurso do analista, no discurso universitário e no discurso capitalista. Depois de postulada a política de cada discurso, proponho uma discussão sobre os efeitos da experiência psicanalítica a partir de outras noções que Lacan trabalha nesse período e que têm forte cunho político: revolução e subversão. Termino essa quarta parte trazendo alguns depoimentos sobre os efeitos da Revolução de 68 e da experiência de análise para os filhos dos revolucionários.

Por fim, para concluir esse trabalho, optei por encerrá-lo partindo de outra citação (a segunda que demarca esse percurso, conforme indicado mais acima), na qual Lacan associa diretamente um conceito psicanalítico com a política. No Seminário 14 (1966-1967a), ele assevera: “(...) não digo mesmo ‘a política é o inconsciente’, mas simplesmente, o inconsciente é a política” (p. 350). No início dessa pesquisa, essa citação me pareceu a mais importante, mas, ao mesmo tempo, a mais enigmática. No próprio seminário em que ela aparece não encontrei muitos elementos que me ajudassem a compreendê-la. Creio que, para entendê-la, não basta situá-la no seminário em que Lacan a

profere, é preciso lê-la tendo em vista toda sua obra. Por isso, decidi utilizar tal citação como eixo central para retomar e amarrar alguns pontos trabalhados ao longo da tese.

Espero, assim, mapear as referências de Lacan à política e extrair de sua obra os diferentes usos e significados desse conceito a partir de uma construção rigorosa, e que seja enriquecedora aos psicanalistas, de um diálogo entre o vocabulário político e a clínica lacaniana.