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Os princípios do poder na linguagem

PARTE I – POLÍTICA E TÉCNICA

5. A técnica e a política na direção da cura em Lacan

5.3. Algumas implicações técnicas do aforismo

5.3.1. Os princípios do poder na linguagem

direção da cura. Mas qual o estatuto do poder na linguagem e quais são os poderes da linguagem? Para elucidar tais princípios, Lacan (1958/1998) parte das noções de significante e significado: “Creio que meus alunos apreciarão o acesso que propicio aqui à oposição fundamental entre o significante e o significado, na qual lhes demonstro que começam os poderes da linguagem” (p. 628).

Essa oposição, criada por Saussure (1916/2008), é um marco do nascimento da linguística e das ciências estruturalistas. Com ela, o pai da linguística pôde indicar uma unidade presente em toda e qualquer língua, o signo, cuja particularidade reside no fato de que se trata de uma unidade dividida em dois elementos, o significado (conceito) e o significante (imagem acústica). Há um descentramento, portanto, já na concepção de signo. Mas para que uma língua se constitua, para que tenha um caráter simbólico, não basta a existência de um signo. “A língua é um sistema de signos”, diz Saussure (1916/2008, p. 23). É necessário que haja um conjunto de signos e que eles se articulem uns com os outros, caso contrário ficaríamos no nível da linguagem dos animais.

Essa concatenação entre os signos – que, aliás, evidencia a lei do tempo da língua, uma vez que um significante é colocado após o outro, não havendo a possibilidade de se voltar no tempo para se substituir o significante dito, (tal como diz Horácio, Nescit Vox missa reverti: uma vez emitida, a palavra não volta atrás) – levou Saussure a elaborar outro princípio da linguagem, tão importante quanto o do signo linguístico, pois indica que a significação não se dá apenas pela relação arbitrária entre o significado e o significante. Trata-se do valor, que se refere à significação que um signo adquire em função de sua posição quanto aos outros signos. Veremos aqui que a noção de posição é amplamente empregada por Lacan – podendo talvez ser elevada a um estatuto conceitual – e será central para compreendermos os princípios do poder no inconsciente e na direção da cura.

Antes, ressaltemos ainda outra lei da linguagem, que revela uma propriedade da fala, aspecto enfatizado por Jakobson (1956/2001) em seus estudos sobre as afasias. Se uma língua exige que os signos se encadeiem uns aos outros, há ao menos dois eixos espaço-temporais pelos quais a fala é orientada: o eixo metonímico, que se refere à combinação, à contiguidade e ao

aspecto diacrônico da linguagem; o eixo metafórico, relativo à seleção, substituição e à dimensão sincrônica da linguagem. Ao enunciar que é na oposição entre o significante e o significado que começam os poderes da linguagem, Lacan (1958/1998) ressalta esses eixos:

Relembro o automatismo das leis pelas quais se articulam, na cadeia significante: a) A substituição de um termo por outro para produzir o efeito de metáfora; b) a combinação de um termo com outro para produzir o efeito de metonímia. (p. 628)

Ambos os eixos têm seu papel na produção da significação, mas é o eixo metafórico que tem o maior poder de produzir uma significação simbólica própria da poesia, na qual o significante substituído permanece veladamente em conexão metonímica com o resto da cadeia. Já o eixo metonímico, por remeter o significado a outro significante, resiste mais à significação e tem como poder a instalação da “falta do ser na relação com o objeto” (Lacan, 1957/1998, p. 519). Essa característica estrutural da linguagem chamou a atenção de Lacan por revelar o deslizamento do significado em relação ao significante. O significado de cada signo fica suspenso até que se coloque o ponto final de uma oração, que produz retroativamente a significação19. A significação dessa oração, por sua vez, é remetida a outras significações, processo infinito que aponta outro princípio da língua: ser um sistema incompleto e em contínua transformação:

19 Uma anedota de autoria desconhecida indica bem essa retroação da significação a partir da

pontuação: “Um homem rico estava muito mal. Pediu papel e caneta para fazer seu testamento. Escreveu assim: "Deixo meus bens à minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do padeiro nada dou aos pobres".

No entanto, morreu sem fazer a pontuação do texto. Para quem, então, ficaria a fortuna? Eram quatro os candidatos à herança:

1) O sobrinho, que fez a seguinte pontuação: Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho. Jamais será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres. 2) A irmã chegou em seguida. Pontuou assim o texto: Deixo meus bens à minha irmã. Não a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres.

3) O padeiro, que fazia parte do texto do falecido, também deu a sua pontuação: Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres.

4) Aí, chegaram os descamisados da cidade. Um deles, mais letrado apesar de ser pobre, fez esta interpretação: Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do padeiro? Nada! Dou aos pobres.

E assim é a vida. Nós é que colocamos os pontos. É isso que faz a diferença.” (Recanto das Letras).

A metonímia, como lhes ensino, é o efeito possibilitado por não haver nenhuma significação que não remeta a outra significação, e no qual se produz o denominador mais comum entre elas, ou seja, o pouco de sentido (...) que se revela no fundamento do desejo (...). O verdadeiro dessa aparência é que o desejo é a metonímia da falta-a-ser. (Lacan, 1958/1998, pp. 628-629)

O desejo é situado, assim, nesse movimento contínuo do eixo metonímico da linguagem. Já o sintoma é situado mais no eixo metafórico, pois é um “significante de um significado recalcado da consciência do sujeito” (Lacan, 1953/1998, p. 282). Isto é, o sintoma é um significante que vem a substituir outro significante, traumático, cujo significado foi recalcado. O sintoma de Elisabeth Von R. (Freud & Breuer, 1893-1895/1996), por exemplo, de sentir dores nas pernas e não conseguir andar era o significante que substituía seu desejo de se casar com o cunhado. O significado do sintoma, não poder ir adiante com seu desejo, fora recalcado de sua consciência. Essa concepção do sintoma explicaria o princípio de que “a fala tem aqui todos os poderes, os poderes especiais do tratamento” (Lacan, 1958/1998, p. 647), pois ele mesmo é estruturado como linguagem, é uma “linguagem cuja fala deve ser liberada” (Lacan, 1953/1998, p. 270). O que não significa, contudo, que a fala tenha plenos poderes. Posteriormente, Lacan precisará tratar daquilo que está fora do alcance da fala, o Real.

Acompanhando agora mais alguns desdobramentos da influência da linguística na psicanálise, ainda é preciso dizer que Lacan conceberá todas as formações do inconsciente a partir da estrutura da linguagem. Os eixos metafórico e metonímico – da condensação e do deslocamento, respectivamente, na obra freudiana – são situados em cada uma delas. Já o inconsciente é concebido como uma cadeia significante cuja propriedade é a de que os significantes recalcados insistem em reaparecer nas irrupções do discurso coerente, não havendo, porém, um (1) significante que dê consistência para a significação: “donde se pode dizer que é na cadeia significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse mesmo momento” (Lacan, 1957/1998, p. 506). A cadeia de significantes que compunham o complexo do

Homem dos Ratos (Ratten – Spielratte – Heiraten – Raten20) é exemplar para fundamentar essa concepção de inconsciente.

Dessa noção de cadeia significante se depreende também a concepção de sujeito. Ducrot & Todorov (2007) sintetizam muito bem essa relação da cadeia significante com a noção de sujeito:

é ao nível, não mais do signo, mas da cadeia significante, que a discussão conduzida por J. Lacan, em nome da experiência analítica, se institui: a descoberta do inconsciente é a descoberta de um sujeito, cujo lugar, excêntrico para a consciência, só pode ser determinado por ocasião de certos retornos do significante, e pelo conhecimento das leis do deslocamento do significante. (p. 328)

Contudo, o sujeito não é exatamente apreensível nesses retornos do significante. Não há Um significante que o represente, pois esse sujeito, em sua dimensão metonímica, está sempre se deslocando em outros significantes. A posição do sujeito não é, assim, perfeitamente situável, pois ele está sempre entre significantes. Esse descentramento do sujeito leva, por sua vez, ao descentramento do poder na subjetividade, sendo coerente com a descoberta freudiana de que o homem não é senhor em sua própria morada.

Já em sua dimensão metafórica, o sujeito é considerado resultado de uma operação de substituição de um significante por outro. A constituição do sujeito se dá pela substituição do significante materno pelo Nome-do-pai. Processo de instituição do sujeito no campo da linguagem e que ocorre em três tempos lógicos, os três tempos do Édipo. Ao deslocar o complexo de Édipo para o âmbito da linguagem, Lacan muda radicalmente o estatuto do pai, considerando-o como um significante. Mas para que o pai, enquanto significante, venha a substituir o significante materno, que é o primeiro significante do processo de simbolização, é necessário, contudo, que outro significante exerça sua função: o falo.

O complexo de Édipo é considerado assim em uma estrutura quaternária, na qual o falo ocupa uma posição paradoxal, tendo um valor

20 Respectivamente: rato

– rato de jogo/dívida de jogo – casamento – prestações. A tradução para o português perde a dimensão do significante. O analisante de Freud ficou conhecido como Homem dos Ratos pela insistência do significante Ratten em seu complexo.

especial no conjunto dos significantes, ponto essencial para compreendermos sua função na linguagem e na subjetividade: “o caráter problemático desse significante particular, o falo, é o ponto em que está a questão, é onde está aquilo em que nos detemos, é onde está o que nos propõe todas as dificuldades” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 340). Por um lado, o falo, enquanto significante, está submetido à lei da metonímia, deslocando-se de um significante para outro. Por outro, o falo é o significante do desejo, é o significante que serve como “razão do desejo do Outro” (Lacan, 1958b/1998, p. 700), ele é “o próprio signo do que é desejado” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 363) e, por ser o significante da falta, é também o significante da castração do Outro. Essa posição própria do falo o leva a exercer a função de “designar, em seu conjunto, os efeitos de significado” (Lacan, 1958b/1998, p. 697), ou seja, ele tem o poder de produzir efeito de metáfora. Por ser “o significante por excelência da relação do homem com o significado, ... acha-se numa posição privilegiada” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 418).

É, então, no momento em que o Nome-do-pai surge como razão do desejo da mãe que se opera a metáfora paterna. O Nome-do-pai é colocado na mesma posição do falo na economia dos significantes que vêm do Outro materno. O Nome-do-pai só tem valor de Lei da linguagem quando colocado na posição do falo. Com isso, o pai, enquanto significante, é instituído como Um, no sentido de que há Um que imaginariamente possui o falo. Mesmo que não passe de um engodo, uma vez que o pai, assim como qualquer outro, não possui o falo, trata-se de uma ilusão fundamental para a instituição da Lei do desejo. É preciso que haja Um, que alguém ou alguma coisa faça essa função, para que a neurose seja instituída. Deste modo, o falo – por ser o significante do desejo do Outro, um significante que institui o Um, um significante que dá um sentido para o desejo do sujeito – é o significante do poder. O falo governa o desejo do Outro e do sujeito.

Aqui é importante esclarecer também que, por ser obediente à lei metonímica, o poder do falo é parcial. Ele é um significante, mas não é 1 significante. Por isso, há alguns significantes Um, S1, como escreverá Lacan21. A posição do sujeito emerge entre esses S1 eleitos pelo sujeito. Mas qual

21 No final de década de 1960, Lacan designará os S

posição é assumida pelo sujeito em relação a esses S1 recebidos do Outro? Posição de alienação, de separação, de aversão, de obediência, de negação...? Abre-se aqui uma série de possibilidades de posição22, como ocorre no âmbito mesmo da política: como se posiciona o indivíduo frente aos significantes que são mais valorizados pela cultura? Utilizando como exemplo nosso próprio debate sobre a técnica, podemos dizer que a posição de Lacan em relação à técnica passa também pela sua posição em relação ao Outro que o precedeu no campo psicanalítico, daí a importância de compreender ou descrever que Outro foi esse. Aproveitando também para retomar um dos propósitos dessa pesquisa, pode-se dizer que a própria posição do termo política na obra de Lacan é análoga a essa posição do sujeito frente ao Outro, isto é, uma posição que emerge entre alguns conceitos chaves (S1) de seu ensino.

Voltemos agora ao campo das leis da fala e da linguagem no inconsciente, pois ainda é preciso ao menos citar que nesse período do ensino de Lacan a razão diagnóstica é extraída da lógica fálica. Neurose, psicose e perversão, enquanto estruturas subjetivas, são caracterizadas a partir da posição do sujeito em relação ao falo, ao desejo do Outro e à fantasia. Não cabe detalhar a lógica diagnóstica, mas apenas indicar que “toda a ambiguidade da conduta do sujeito em relação ao falo reside num dilema, o de que esse significante o sujeito pode tê-lo ou pode sê-lo” (Lacan, 1957- 1958/1999, pp. 390-391). As estruturas, bem como os tipos clínicos de cada estrutura – por exemplo, a neurose obsessiva e a histeria no caso da estrutura neurótica –, são derivados das diferentes posições em relação ao falo.

Retomemos então o que Lacan nos diz sobre a “retificação do sujeito com o real” (1958/1998, p. 604) à luz do que trouxemos agora. Essa retificação é uma mudança de posição do sujeito em relação ao mundo que o cerca – o real aqui não tem o sentido forte que virá a ter a partir da década de 1960. Uma das tarefas da análise é fazer aparecer essa posição. Daí a crítica a Kris no caso dos miolos frescos: ele insistiu com o analisante de que este não era

22 Talvez em função dessas múltiplas perspectivas das posições do sujeito, Lacan pensou em

propor um seminário cujo título seria As posições subjetivas. Acabou mudando o título para Problemas cruciais em psicanálise (1964-1965/2006), mas não abandonou o tema, tratando-o mais no nível da lógica. Mas deixarei para abordar esse ponto depois, quando entrarmos na década de 1960, acompanhando como a noção de política acompanha Lacan nesse período.

plagiário, impondo a observação de que sua tese era original – uma vez que ele, analista, era o ego sadio da relação, verificou isso na biblioteca – ao invés de interpretar sua posição subjetiva: a de quem rouba nada. Lacan também utiliza como exemplo o caso Dora. Aliás, creio que Lacan usa o caso Dora para fundamentar sua tese de que a psicanálise é uma experiência dialética justamente por provocar mudanças de posição que revelam uma nova verdade. Recuperemos o trecho que citei ao justificar que abordássemos as diferentes posições de Freud quanto à técnica a partir da noção de inversões dialéticas:

É impressionante que ninguém tenha acentuado, até o momento, que o caso Dora é exposto por Freud sob a forma de uma série de inversões dialéticas. (...) Trata-se de uma escansão das estruturas em que, para o sujeito, a

verdade se transmuta, e que não tocam apenas em sua compreensão das

coisas, mas em sua própria posição como sujeito da qual seus “objetos” são

função. Isto é, o conceito de exposição é idêntico ao progresso do sujeito, isto é,

à realidade da análise. (Lacan, 1951/1998, p. 217).

Cada inversão dialética feita por Dora é, seguindo Lacan, uma retificação subjetiva que implica um novo desenvolvimento da verdade. Não seguirei detalhadamente como isso ocorre com Dora, pois apenas iria repetir o que Lacan já disse. O importante é sublinhar como a noção de posição tem uma série de desdobramentos clínicos. A entrada em análise, por exemplo, também é nomeada como uma retificação subjetiva, cujo efeito é o de transformar o sintoma queixa no sintoma analítico (Miller, 1997). O final da análise também é caracterizado como uma modalidade de retificação subjetiva, tratando-se especificamente da destituição subjetiva.

Todavia, embora a explanação sobre a razão diagnóstica e sobre as retificações subjetivas que ocorrem ao longo da análise reforcem a ideia de que a noção de posição possa ser elevada a um estatuto conceitual, lembremos que nosso propósito é o de evidenciar as retificações técnicas propostas por Lacan. Se até aqui tratamos mais profundamente da estrutura da língua em suas relações com o inconsciente, o desejo, o sujeito e o falo, sigamos agora tais retificações enfatizando outro princípio da linguagem, a fala, em articulação com a regra fundamental da psicanálise, a associação livre.

5.3.2. Os poderes da fala e da linguagem na associação-livre