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Primeiro desenvolvimento: o poder de cura via

PARTE I – POLÍTICA E TÉCNICA

3. Inversões dialéticas das posições do poder na

3.1. Primeiro desenvolvimento: o poder de cura via

É possível demarcar a primeira posição de Freud quanto à concepção e ao manejo do poder já em seus escritos pré-psicanalíticos. Nesse período, aproximadamente entre 1885 e 1895, Freud estava sob forte influência dos textos de Bernheim sobre a sugestão – dos quais também foi tradutor – e de sua experiência de estágio em Paris com Charcot (ocorrido entre 1885 e 1886), famoso pelas apresentações nas quais hipnotizava as pacientes, geralmente histéricas graves, suprimindo ou trocando, via hipnose, seus sintomas. Freud (1889/1996) não escondeu o fascínio despertado por essas grandes encenações:

Todo aquele que já tenha acumulado algumas experiências pessoais com o hipnotismo há de se lembrar da impressão que lhe causou o fato de, pela primeira vez, poder exercer sobre a vida psíquica de uma outra pessoa aquilo

que até então tinha sido uma influência inimaginável, e de poder efetuar com uma mente humana uma experiência que, de tal forma, normalmente só é possível executar no corpo de um animal. (p. 136)

A princípio, Freud via na sugestão sob hipnose a possibilidade do exercício de um poder quase ilimitado sobre o outro:

Por meio da sugestão sob hipnose, é possível produzir, influenciar, impedir (inibir, modificar, paralisar, ou estimular) todos os fenômenos subjetivos conhecidos da mente humana e uma grande parte das funções

objetivamente conhecidas do sistema nervoso — isto é, influenciar as funções sensitivas e motoras do corpo, determinados reflexos e processos vasomotores (a ponto mesmo de causar bolhas!) e, na esfera psíquica, influenciar sentimentos, instintos, memória, atividade volitiva e assim por diante. (op. Cit., p. 136).

Esse poder da sugestão sob hipnose revela aquilo que, para Freud (1890, p.282), é a marca mais significativa e a mais importante da hipnose: a servidão do hipnotizado ao hipnotizador ou, em suas palavras: “a dependência da atividade mental da pessoa hipnotizada em relação à do hipnotizador” (Freud, 1889/1996, p. 135).

Enquanto o hipnotizado comporta-se perante o mundo externo como se estivesse adormecido, com todos os seus sentidos desviados dele, está desperto para a pessoa que o hipnotizou: vê e ouve apenas a ela, compreende-a e lhe dá respostas. Esse fenômeno, chamado de rapport na hipnose, encontra um paralelo na maneira como algumas pessoas dormem — por exemplo, a mãe que está amamentando um filho. Trata-se de algo tão curioso que há de facilitar nosso entendimento da relação entre o hipnotizado e o hipnotizador.

Mas o fato de o mundo do hipnotizado estar como que restrito ao hipnotizador não é tudo. Ocorre ainda que o primeiro torna-se completamente

dócil perante o segundo, ficando obediente e crédulo, e de um modo quase ilimitado na hipnose profunda. Na maneira como se dão essa obediência e essa

credulidade mostra-se então, como característica do estado de hipnose, que a

influência da vida anímica sobre o físico aumenta extraordinariamente no hipnotizado. (Freud, 1890/1996, p. 282)

O que esse poder de domínio do hipnotizador sobre o hipnotizado tem de tão importante para nós é justamente a indicação do poder da vida anímica

sobre o corpo, o que fez Freud vislumbrar e apostar em “revoluções teóricas e práticas” (1889/1996, p. 129) no campo do tratamento da histeria a partir do uso terapêutico da hipnose, fato que era desacreditado por Charcot. Freud apostava, portanto, na cura da histeria. Cura que, em função também dos tipos de casos a serem tratados, dizia respeito tão somente à dissolução dos sintomas que paralisavam o corpo e a vida do doente. Isso fica claro quando ele afirma que a técnica psicanalítica “foi criada com base em doentes permanentemente incapacitados para a existência a eles destinada, e seu triunfo consiste em ter tornado um número satisfatório destes permanentemente aptos para a vida” (1905b/1996, p. 249). Essa concepção inicial de cura exprime, assim, um desejo de Freud de exercer poder sobre a doença, de controlar suas manifestações, de agir sobre suas causas e de mitigar seus efeitos, isto é, a cura é baseada aqui num poder que se exprimiria como conquista da natureza.

A questão que se deriva dessa concepção é a de como, então, levar o paciente à cura. Como tornar essas pessoas novamente aptas para a vida? Se a “sugestão hipnótica proporciona ao médico um poderoso método terapêutico” (Freud, 1888/1996, p. 111), como explicar o poder da sugestão e como bem utilizá-lo? Para Freud (1891/1996),

O verdadeiro valor terapêutico da hipnose está nas sugestões feitas durante a mesma. Essas sugestões consistem numa enérgica negação dos males de que o paciente se queixou, ou num asseguramento de que ele pode fazer algo, ou numa ordem para que o execute. Um resultado muito mais marcante do que o produzido por simples asseguramento ou negação será obtido se vincularmos a esperada cura a uma ação ou intervenção [nossa] durante a hipnose. (p. 151) Mas para que as sugestões tenham valor terapêutico, não basta que o médico simplesmente dê certas ordens que visam à supressão dos sintomas. Para que essas ordens tenham efeito, para que a sugestão tenha poder de cura, é preciso associá-la a dois outros poderes: o poder da palavra e o poder da personalidade do médico.

Desde Tratamento psíquico (1890/1996) Freud já considerava as palavras a ferramenta essencial da cura. Não se trata, porém, de qualquer palavra, uma vez que “as palavras de nossa fala cotidiana não passam de

magia mais atenuada” (op. Cit., p.271). A palavra só tem um “poder mágico” de cura quando o hipnotizador dá ao hipnotizado uma representação que provoca nele “a relação físico-anímica correspondente ao conteúdo da representação” (op. cit., p.282). Nota-se aí que o poder da palavra é indissociável do poder de influência do médico, cabendo então compreender como o hipnotizador pode exercer uma influência tão grande sobre o hipnotizado e por que um médico, mesmo que não o faça deliberadamente, exerce tanta influência quanto um hipnotizador.

Antes, contudo, vale fazer um breve parêntese sobre essa similaridade de poder do médico e do hipnotizador. Freud reconhece isso em outros dois momentos. Em Resenha de Hipnotismo (1889/1996) ele escreve:

Como se sabe, o uso da sugestão tem sido uma coisa familiar aos

médicos, desde épocas imemoriais: “Todos nós estamos dando sugestões constantemente”, dizem eles; e, realmente, um médico — mesmo que não pratique a hipnose — nunca se sente mais satisfeito do que depois de haver

recalcado um sintoma da atenção de um paciente mediante o poder de sua personalidade e influência de suas palavras — e de sua autoridade. Por que

não deveria então o médico procurar exercer sistematicamente a influência que sempre lhe parece tão desejável quando nela tropeça inadvertidamente? (p. 132)

Deste modo, se ao médico é atribuído tal poder de influência, se a sugestão é algo inevitável, por que não utilizá-la a favor da cura? Esse questionamento aparece mesmo 16 anos depois:

Um fator que depende da disposição psíquica do doente contribui, sem que tenhamos essa intenção, para o resultado de qualquer procedimento terapêutico introduzido pelo médico, quase sempre num sentido favorável, mas também com freqüência num sentido inibitório. Aprendemos a usar para esse fato a palavra “sugestão”, e Moebius nos ensinou que a falta de contabilidade que deploramos em tantos de nossos métodos terapêuticos remonta justamente à

influência perturbadora desse poderoso fator. Nós, médicos — inclusive todos os senhores —, portanto, praticamos constantemente a psicoterapia, mesmo

que não o saibamos nem tenhamos essa intenção; só que constitui uma desvantagem deixar tão completamente entregue aos enfermos o fator psíquico da influência que os senhores exercem sobre eles. Dessa maneira,

um esforço legítimo do médico dominar esse fator, servir-se dele intencionalmente, norteá-lo e reforçá-lo? É isso, e nada mais, o que a psicoterapia científica lhes propõe. (...) Não é um ditado moderno, e sim uma antiga máxima dos médicos, que essas doenças [psiconeuroses] não são curadas pelo

medicamento, mas pelo médico, ou seja, pela personalidade do médico, na medida em que através dela ele exerce uma influência psíquica. (Freud,

1905b/1996, pp. 245-246)

Na base do tratamento psíquico, tal como este era concebido nesse período inicial, o poder de cura estava apoiado na idéia de um uso científico do poder mágico da sugestão. Mas como, então, o médico poderia servir-se desse fator para levar à cura? Em primeiro lugar, é imprescindível criar no doente um estado chamado por Freud (1905b/1996, p. 245) de “expectativa crédula”, tal como ocorre freqüentemente quando um indivíduo se encontra diante de um prestigiado sacerdote, como quando a senhora Khoklakova diz ao sacerdote Zossima ao crer que ele havia curado sua filha de uma paralisia histérica: “o senhor faz curas, é um conhecedor da alma humana” (Dostoiévski, 1880/2008, p. 89). O escritor russo, que foi estudado por Freud, descreve bem, em Os irmãos Karamázov, como o prestígio de Zossima fazia com que suas palavras tivessem outro valor na comunidade.

No caso do médico, este pode não ter o mesmo prestígio que um sacerdote, mas seu poder é derivado deste:

Os conhecidos usos de fórmulas mágicas, banhos purificadores e invocação de sonhos oraculares dormindo no salão do templo, entre outros, só podem ter-se tornado curativos por via psíquica. A própria personalidade do

médico adquiria prestígio por derivar diretamente do poder divino, já que, em

seus primórdios, a arte curativa estava nas mãos dos sacerdotes. Assim, tanto

naquela época quanto hoje, a pessoa do médico era uma das condições principais para promover no doente o estado psíquico propício à cura.

(Freud, 1905c/1996, p. 279)

Mas a indução pelo médico do estado de expectativa crédula, embora possa ser derivado do poder divino, depende, segundo Freud (1890/1996), de outros fatores:

É evidente, por exemplo, que o médico, já não podendo hoje inspirar

admiração como sacerdote ou como possuidor de um saber secreto, há de usar sua personalidade de modo a poder ganhar a confiança e uma parcela da simpatia de seu paciente. Já atenderá a uma distribuição conveniente que ele

consiga esse resultado apenas com um número restrito de enfermos, enquanto outros, por seu grau de formação e suas inclinações, serão atraídos para a pessoa de outros médicos. Entretanto, com a abolição da livre escolha do médico, aniquila-se uma importante precondição para influenciar o doente em termos anímicos. (p. 280)

Portanto, se o médico não tem exatamente a mesma autoridade que um sacerdote, esta pode ser conquistada a partir da ânsia de cura do paciente, de sua confiança e respeito pela medicina e pela simpatia despertada pela personalidade do médico que o trata. Por isso é muito importante que o paciente possa escolher livremente o médico que vai tratá-lo, na medida em que tal escolha favorece o estabelecimento da confiança e, consequentemente, acresce o poder de sugestão do médico.

Com isso, chegamos à conclusão de que nesse primeiro desenvolvimento realizado por Freud, o poder de cura é associado ao poder de sugestão do médico e esse poder depende, por conseguinte, da autoridade que ele possui para o paciente. Nesse sentido, o poder médico é similar ao poder soberano e o poder de cura é o poder de subjugação dos sintomas por meio da soberania. Essa foi, portanto, a primeira posição de Freud em relação ao uso do poder com a finalidade de cura.

3.2. Primeira inversão dialética: o poder da sugestão em questão