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PARTE I – POLÍTICA E TÉCNICA

5. A técnica e a política na direção da cura em Lacan

5.3. Algumas implicações técnicas do aforismo

5.3.5. No tempo da sessão

Curiosamente, o tema do tempo parece ter sido recalcado em A direção do tratamento (1958). Lacan simplesmente não faz nenhuma menção direta àquilo que já era a marca principal de sua técnica, o manejo do tempo na sessão analítica. Talvez essa ausência possa ser explicada pela crise político- institucional enfrentada por ele desde 1951, justamente em função do tempo de suas sessões. Provavelmente Lacan sabia que tinha muito mais liberdade para criticar seus colegas do que para defender uma técnica que ia diretamente contra os princípios postulados pela IPA. Em 1951 ele chegou a receber uma advertência para que respeitasse a regra das sessões de 45 minutos. E mesmo após a cisão de 1953, embora a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP) não tivesse sido reconhecida pela IPA após o rompimento com a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), Lacan ainda era um membro da IPA e não queria ser desfiliado. Nota-se assim que a política institucional interferiu de alguma forma na transmissão lacaniana da psicanálise.

A provável suspeita de Lacan de que não poderia tratar de maneira mais direta o tema do tempo a partir da cisão de 1953 seria legítima. Em 1961 os conflitos em torno desse assunto voltaram a emergir com força. Nesse ano, a IPA montou uma comissão – conhecida como Comissão Turquet, pois era presidida pelo psicanalista Pierre Turquet – cuja missão era investigar a duração do tempo das sessões empregada por Lacan. Turquet chegou a convocar analisantes de Lacan para conhecer detalhes de sua prática clínica, como hoje podemos acompanhar por meio de depoimentos de alguns analisantes de Lacan na época (Didier-Weill, Weiss, & Gravas, 2007). Lacan chegou a solicitar a alguns de seus analisantes que mentissem caso fossem convocar a prestar depoimento, ou seja, aqui a política institucional chegou a interferir diretamente na relação com seus analisantes, cruzando-se, assim, com a política na direção da cura. Esse conflito político-institucional culminou com a expulsão de Lacan da IPA e com a dispersão de alguns de seus

analisantes e seguidores que temiam sofrer a mesma consequência pela proximidade que havia com ele.

Como, então, Lacan inclui o tempo como um princípio na direção da cura? De que maneira essa inclusão é também um efeito de sua tese de que o inconsciente é estruturado como linguagem?

Vimos que a linguagem contém uma dimensão temporal. No ato da fala, um significante é colocado após o outro, o que já implica o tempo. Mas a significação de cada significante só se dá retroativamente, no momento em que se dá o ponto final de uma oração. Concomitantemente, essa oração pode ter um significado diferente em função das orações subsequentes. Há, portanto, nessa dimensão temporal da cadeia de significantes, certa suspensão da significação. Creio que Lacan procurou isolar esse momento de suspensão, extraindo daí uma lógica para a intervenção do psicanalista. Em O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada (1945/1998), que anunciou já em 1945 uma subversão quanto à noção e uso do tempo em psicanálise, ele traz uma noção, fundamentada nesse momento de suspensão da significação, que terá forte ressonância em sua técnica: as escansões suspensivas.

Escansão é um termo utilizado principalmente na música e na poesia. Na música indica uma subida de tom, uma modulação; na poesia, refere-se à decomposição do verso em seus elementos métricos, isto é, em seus fonemas. Marcam-se, pelas escansões, as pausas entre os fonemas que compõe os significantes de um verso. Lacan utiliza essa noção de escansão, enfatizando que as próprias escansões da fala têm valor de significantes, pois tem o poder de provocar novas significações. Por favorecer o equívoco entre significantes, como num ato falho, a escansão abre a possibilidade do aparecimento de significantes recalcados, que levam a novas significações. Desta forma, a escansão pode proporcionar uma abertura do inconsciente.

Por que não incluir, então, essa propriedade temporal da linguagem na técnica psicanalítica? Não há nada mais psicanalítico do que incluir na técnica a escansão da fala e a atemporalidade do inconsciente descoberta por Freud. Certamente foi por isso que Lacan não cedeu às exigências da IPA de abandonar a prática das sessões de tempo variável, essencialmente mais curtas. Seria anti-psicanalítico.

as insere numa lógica de decisão que envolve o outro, a coletividade. Para explicitar esse aspecto, ele apresenta um problema de lógica que comporta uma situação na qual um de três prisioneiros pode ser libertado caso descubra, antes dos outros dois, qual a cor do círculo (havia três brancos e dois pretos) que foi colocado em suas costas. Cada prisioneiro, para deduzir a cor do disco em suas costas, deve observar a reação de seus companheiros. Lacan discrimina nesse problema lógico três moções suspensas que tem estatuto de significante: “a razão de elas serem significantes é constituída não por sua direção, mas por seu tempo de parada” (op. Cit., p.203). Essas três moções suspensivas ou tempos de parada são: (1) o instante do olhar; (2) o tempo para compreender; (3) o momento de concluir. E para que o sujeito passe de uma moção a outra conta bastante o fator da pressa. No caso dos prisioneiros, só é libertado o que descobrir primeiro a cor do disco em suas costas.

Quais são, então, os desdobramentos dessas três escansões e da pressa na sessão psicanalítica? A indefinição do tempo da sessão já deixa no ar um suspense em forma de questão: o que o outro, o psicanalista, quer de mim? Após o corte, isto é, a suspensão da sessão, outra questão é posta: por que a sessão foi cortada nesse momento? O que se disse ou se deixou de dizer? Questões que são cruciais para que o próprio sujeito elabore suas conclusões, mesmo fora do espaço da sessão. Em Função e campo da fala e da linguagem (1953/1998), Lacan diz:

Assim, é uma pontuação oportuna que dá sentido ao discurso do sujeito. É por isso que a suspensão da sessão, que a técnica atual transforma numa pausa puramente cronométrica e, como tal, indiferente à trama do discurso,

desempenha aí o papel de uma escansão que tem todo valor de uma intervenção, precipitando os momentos conclusivos. E isso indica libertar

esse termo de seu contexto rotineiro, para submetê-lo a todos os fins úteis da técnica. (p. 253)

Não obstante nesse trecho Lacan explicite que a suspensão da sessão faz precipitar os momentos conclusivos, não se deve reduzir o manejo da escansão a esse fim. Ela pode servir como intervenção para marcar o instante de ver, por exemplo. Assim, “a escansão não ocorrerá forçosamente ao final de uma sessão, ela pode se dar no início ou fim de várias sessões” (Porge, 1996,

p. 521). Soler (2009) também traz alguns esclarecimentos a esse respeito ao dizer que “seja qual for a duração da sessão, seu ponto de interrupção é ou bem uma interrupção conclusiva, por menor que seja, ou bem uma interrupção suspensiva” (p. 118).

De qualquer modo, seja como pontuação de uma conclusão ou como uma suspensão que visa provocar as conclusões, a escansão deve manter relação com uma irrupção no discurso que leva o sujeito a se deparar com significantes que de alguma forma marcam sua posição diante do Outro e do objeto fantasmático. Com isso, mais uma vez o psicanalista tem meios de se esquivar do uso da sugestão, pois o poder atribuído via transferência à fala do psicanalista é retirado de cena, restituindo ao analisante o poder de sua fala, na medida em que é ele mesmo que chega às suas conclusões. Observa-se aí que o poder, como diria Foucault, circula e é heterogêneo. Ele passa do analista ao analisante e vice-versa, e ao passar de um a outro, muda algumas de suas propriedades. Nesse caso da escansão de uma sessão isso fica bem claro: quem determina seu momento é, na maior parte das vezes, o psicanalista, e quando o faz, apoia-se naquilo que o analisante disse. O poder do psicanalista não é arbitrário e depende do poder da fala do analisante. Ambos participam, portanto, da escansão, mas é o psicanalista que o coloca em ato. O que não garante que não ocorram equívocos e o analisante receba tal intervenção como arbitrariedade, gerando assim um contra poder, uma resistência do analisante.

Outro aspecto importante da escansão é a função da pressa. Ela tem a função de precipitar os tempos lógicos, levando o analisante, dentro ou fora da sessão, ao momento de concluir. Creio ser por isso que Lacan (1953/1998) afirma que “a função da pressa na precipitação lógica” faz com que “a verdade encontre sua condição insuperável” (p. 242). Mas a pressa tem também outra função: fazer da experiência analítica, como diz Soler (2009), uma prática sem tagarelice. Trata-se de evitar um blábláblá infrutífero, não autorizando assim que a fala vazia tome conta do tempo da análise. Didier-Weil (2009) também nos diz algo semelhante ao definir a própria escansão: “A escansão é, pois, a introdução de um significante que tem o poder de levar a termo, à sua conclusão lógica, mais que cronológica, um diálogo que, sem isso, poderia durar indefinidamente” (p. 30).

Ao mesmo tempo, também cabe ao psicanalista não ter a pressa de anular “os tempos para compreender em prol dos momentos de concluir” (Lacan, 1953/1998, p. 258), o que ocorre quando este se precipita ao fazer interpretações que fecham um sentido a qualquer manifestação do inconsciente. A interpretação enquanto tradução ou explicação do psicanalista pode provocar um fechamento do inconsciente do analisante. Já a interpretação enquanto significante – implicando aí a escansão, o corte e o equívoco – possibilita uma abertura do inconsciente.

A dimensão do tempo também tem seus desdobramentos no manejo da transferência. A escansão pode propiciar, como dito agora pouco, a irrupção de significantes, não de quaisquer significantes, mas os significantes mestres, que marcam a posição do sujeito frente ao Outro e à fantasia, trazendo à tona, assim, a repetição na relação com o analista. A repetição está inserida na temporalidade, na diacronia das sessões, e por isso a transferência é concebida também em função dessa lógica da temporalidade: “a transferência é uma relação essencialmente ligada ao tempo e a seu manejo” (Lacan, 1960a/1998, p. 858).

Tendo em vista, portanto, as implicações na interpretação, no manejo da transferência e no tempo da sessão, a escansão tem um valor especial na política da direção da cura. É interessante que Lacan afirmou explicitamente que a escansão “é sem dúvida o modo mais eficaz da intervenção e da interpretação analítica” (1958-1959, p. 517). Por que então ele não falou sobre a função do tempo no ano anterior em A direção do tratamento? Teria sido, em 1959, um lapso? Provavelmente não. Ou simplesmente sentiu-se mais à vontade para falar por se tratar de uma transmissão oral? Talvez.