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PARTE I – POLÍTICA E TÉCNICA

5. A técnica e a política na direção da cura em Lacan

5.2. Principais críticas de Lacan aos pós-freudianos

5.2.2. Sobre a interpretação

Passemos agora às principais críticas ao conceito de interpretação. Em A direção do tratamento Lacan logo aponta o problema da confusão existente entre a interpretação e outras intervenções como explicações, gratificações e respostas à demanda, como encontramos num texto de Loewenstein (The problem of interpretation, 1951), provavelmente lido por Lacan. Para esclarecer como se dá essa confusão, ele se refere a outros psicanalistas, como Glover e Kris.

Quanto ao primeiro, Lacan cita o texto no qual Glover (1931) coloca em discussão a relação entre a interpretação e a sugestão. Trata-se de um texto bem interessante, pois Glover procura investigar como uma interpretação inexata pode ter um efeito positivo sobre o analisante, chegando a questionar se a psicanálise como um todo não seria uma sugestão camuflada, ou seja, Glover retoma uma questão séria que havia preocupado Freud. Entretanto, o erro de Glover, de acordo com Lacan, está na tentativa de localizar as interpretações inexatas, pois ele a encontra em todo lugar. E para sair desse impasse, Glover situa a interpretação exata relacionando-a a teoria da fase genital ao invés de situá-la em sua dimensão significante.

Kris comete, segundo Lacan, outro grave equívoco. Em Ego psychology and interpretation in psychoanalytical therapy (1951), Kris sublinha o problema das diferentes possibilidades de interpretação de um mesmo evento. Para isso, ele retoma um caso de Anna Freud, de um menino de seis anos que havia tido uma má experiência no dentista e havia reagido com bastante agressividade durante a sessão de análise. Kris levanta três possibilidades de interpretação da reação do menino: (1) vingança contra a castração; (2) passagem de uma atitude passiva para ativa; e (3) identificação do menino à agressividade do dentista. A partir desse problema, ele afirma que a melhor interpretação é aquela que comunicaria “o conjunto mais completo de significações ao paciente” (op. cit., p.20). Trata-se de uma interpretação totalizante, que contemplaria todos os significados possíveis acerca de uma manifestação do inconsciente. Essa ideia de uma interpretação que dê conta de todas as possibilidades de tradução do inconsciente remete à noção de metalinguagem ou, em termos lacanianos, remete à suposição da existência de um Outro do

Outro. Mas, pela sua própria estrutura, o Outro é furado, não é um sistema completo.

Além de apontar esse equívoco, Lacan também retoma o segundo caso apresentado por Kris no mesmo texto. É um caso considerado exemplar, mas por demonstrar a ineficácia da análise centrada na relação do eu com a realidade e os efeitos negativos de uma interpretação fundada na confrontação com a realidade. Trata-se do famoso caso dos miolos frescos. Um intelectual de trinta e poucos anos, pela segunda vez em análise, apresenta uma forte inibição para publicação de suas pesquisas, acompanhada de um pensamento obsessivo de que rouba a ideia dos outros, principalmente de um jovem e inteligente colega. Após algum tempo de análise, quando estava prestes a publicar um de seus textos, descobriu na biblioteca um livro antigo que já continha a mesma tese que seria anunciada por ele. Kris resolveu analisá-los minuciosamente para verificar que, embora possuísse elementos úteis a sua tese, de modo algum apresentavam a mesma ideia.

Sobre o histórico familiar, Kris nos conta que o avô do analisante era um grande intelectual, ao contrário do pai, que nunca se destacou por suas ideias. Havia um desejo de ter um pai à altura de seu avô. Em seguida, Kris relata o sonho no qual o analisante se vê em guerra com seu pai. Ambos se serviam de livros como armas, e os livros perdidos eram engolidos ao longo do combate. É aí que Kris faz a interpretação de que o analisante tinha o desejo de incorporar o pênis paterno e de que sua tendência a roubar, a morder, a tomar algo do outro, era um deslocamento desse desejo. O pensamento de que era plagiário tinha a função de inibir esse impulso original. Nesse ponto da interpretação, o analisante subitamente lhe diz que todas as tardes, ao sair da sessão, percorre uma rua cheia de restaurantes para encontrar no menu seu prato preferido: fresh brain, cuja tradução literal é miolos frescos, mas que no inglês remete também a ideias frescas ou ideias novas. A interpretação de Kris, como ele mesmo afirma no texto, vai em direção ao mecanismo de inibição da atividade, buscando ao mesmo tempo os padrões de comportamento [patterns] do analisante. Essa é, para ele, a arma mais poderosa do psicanalista na cura: “ela [a interpretação] não visa a um conteúdo do id. A arma interpretativa mais poderosa é, evidentemente, a ligação entre a defesa e a resistência do paciente na cura” (op. Cit., p.24).

O próprio Kris deixa bem claro, portanto, que sua interpretação visa diretamente às resistências, deixando de lado a análise do inconsciente. É um tipo de intervenção que tem por objetivo fazer o analisante aceitar uma percepção mais adequada da realidade. Lacan então apontará como a resposta do analisante à interpretação é um acting out, uma mensagem direcionada ao psicanalista de algo que ele mesmo, psicanalista, não conseguiu escutar. Ele também nos diz que se o analista busca, por meio de sua interpretação, um assentimento do sujeito, a interpretação tem um estatuto de sugestão, criando assim a resistência no analisante. É nesse sentido, creio, que podemos entender a afirmação de que não há outra resistência na análise senão a do analista (Lacan, 1958/1998, p. 601).

Ainda uma última crítica importante de Lacan quanto ao estatuto da interpretação nos pós-freudianos: como a interpretação das resistências foi colocada no primeiro plano da tarefa analítica, houve uma inversão quanto aos princípios postulados por Freud. Lembremos que um desses princípios é o de que a interpretação do psicanalista não deve disputar “à direção do inconsciente o estabelecimento das conexões” (Freud, 1911/2010, p. 129). Lembremos também que Freud enfatiza diversas vezes que o “bem mais poderoso” (1910a/1996, p. 148) do tratamento analítico é a transferência e que o poder de cura da interpretação é bem menor se comparado ao poder do manejo da transferência. Já nos textos dos integrantes da Psicologia do Ego se diz praticamente o contrário. Isso é explicitado, por exemplo, no manual sobre a técnica elaborado por Greenson (1967/1981):

O procedimento analítico mais importante é a interpretação; todos

os outros procedimentos estão a ele subordinados, teórica e praticamente.

Todos os procedimentos analíticos ou são medidas que levam a uma interpretação ou medidas que tornam eficiente uma interpretação. (p. 40)

Lacan (1958/1998) também criticará essa inversão feita retomando o texto freudiano:

Digo que é numa direção do tratamento que se ordena, como acabo de demonstrar, segundo um processo que vai da retificação do sujeito com o

situa o horizonte em que a Freud se revelaram as descobertas fundamentais que até hoje experimentamos, no tocante à dinâmica e à estrutura da neurose obsessiva. Nada mais, porém também nada menos. (p. 604)

A interpretação, portanto, é re-situada em sua subordinação à transferência. Nesse trecho, contudo, Lacan introduz também, inspirado em Freud, outro ponto que diz respeito à retificação do sujeito com o real, referindo-se, como exemplo, ao caso Dora e ao caso Homem dos Ratos. Mas para tentar explicar melhor o que ele quer dizer com isso, é preciso entrar em outros pormenores de como Lacan situa a interpretação e a transferência na direção da cura a partir de sua concepção do inconsciente. Sigamos agora, então, as proposições lacanianas sobre a técnica, indicando os avanços e os problemas no estabelecimento de uma política da direção da cura propiciados por tal concepção.

5.3. Algumas implicações técnicas do aforismo “o inconsciente é