• Nenhum resultado encontrado

Técnica pós segunda tópica: terceira inversão dialética?

PARTE I – POLÍTICA E TÉCNICA

3. Inversões dialéticas das posições do poder na

3.6. Técnica pós segunda tópica: terceira inversão dialética?

transferência e da interpretação para se atingir uma cura permanente, parece- me, manteve-se até o final de sua obra. É possível observar nas citações evocadas anteriormente que Freud sustentou até o final a posição de um trabalho com a transferência que se diferencia da técnica sugestiva, embora possa haver algumas contradições ou ambigüidades em suas formulações. Com a segunda tópica do sistema psíquico, porém, a tarefa da análise é definida em outros termos. Ganha força a idéia de que a técnica psicanalítica

busca a harmonia entre as instâncias psíquicas:

Para evitar a má compreensão é necessário, talvez, explicar mais exatamente o que se quer dizer por ‘livrar-se permanentemente de uma exigência instintual’. Certamente não é ‘fazer-se com que a exigência

desapareça, de modo que nada mais se ouça dela novamente’. Isso em geral é impossível, e tampouco, de modo algum, é de se desejar. Queremos dizer outra coisa, algo que pode ser grosseiramente descrito como um ‘amansamento’ do instinto. Isso equivale a dizer que o instinto é colocado completamente em

harmonia com o ego, torna-se acessível a todas as influências das outras

tendências neste último e não mais busca seguir seu independente caminho para a satisfação. (Freud, 1937/1996, pp. 240-241)

O eu passa a ter uma função central na cura, e cada vez mais esta é definida em termos de fortalecimento do eu e o subseqüente domínio do eu sobre o isso. Em Análise terminável e interminável (1937/1996), por exemplo, Freud afirma que só se pode falar em análise definitivamente terminada nos casos em que a decisão tomada na vida primitiva é substituída por uma solução correta graças ao fortalecimento do ego do analisante (p. 236). No mesmo texto, um pouco depois, ele também afirma que “só podemos conseguir nosso intuito terapêutico aumentando o poder da análise em vir em assistência do ego” (p. 245).

Em função dessa nova concepção da cura em articulação com a teoria da segunda tópica, a situação analítica passa a ser concebida como uma aliança entre o psicanalista e o eu do analisante: “a situação analítica consiste em nos aliarmos com o ego da pessoa em tratamento, a fim de submeter partes de seu id que não estão controladas, o que equivale a dizer, incluí-las na síntese de seu ego” (op. Cit., p.251). Em Esboço de psicanálise (1940[1938]/1996) Freud ainda reforça essa concepção da situação analítica, associando-a, inclusive, ao contexto da guerra:

Nosso plano de cura baseia-se nessas descobertas. O ego acha-se enfraquecido pelo conflito interno e temos de ir em seu auxílio. A posição é semelhante à de uma guerra civil que tem de ser decidida pela assistência de um aliado vindo de fora. O médico analista e o ego enfraquecido do paciente, baseando-se no mundo externo real, têm de reunir-se num partido contra os

inimigos, as exigências instintivas do id e as exigências conscienciosas do superego. Fazemos um pacto um com o outro. O ego enfermo nos promete a mais completa sinceridade — isto é, promete colocar à nossa disposição todo o material que a sua auto-percepção lhe fornece; garantimos ao paciente a mais estrita discrição e colocamos a seu serviço a nossa experiência em interpretar material influenciado pelo inconsciente. Nosso conhecimento destina-se a compensar a ignorância do paciente e a devolver a seu ego o domínio sobre regiões perdidas de sua vida mental. Esse pacto constitui a situação analítica. (p. 188)

Pois bem, essa nova definição da situação analítica favorece a idéia de que o trabalho de análise consiste numa relação entre o eu sadio do analista e o eu enfraquecido ou doente do analisante, tratando-se, desta forma, de uma relação a dois. E, de fato, há algumas passagens no texto freudiano que corroboram essa concepção da tarefa analítica e da cura como fortalecimento do eu. Mas há pelo menos uma passagem em que Freud situa a aliança entre o psicanalista e o analisante e o fortalecimento do eu apenas como uma etapa preliminar ao tratamento psicanalítico propriamente dito. No mesmo texto citado acima, ele coloca:

O método pelo qual fortalecemos o ego enfraquecido tem como ponto de partida uma ampliação do autoconhecimento. Isso, naturalmente, não é toda a

história, mas apenas seu primeiro passo. A perda de tal conhecimento significa,

para o ego, uma abdicação de poder e influência; é o primeiro sinal tangível de que está sendo encurralado e tolhido pelas exigências do id e do superego. Por conseguinte, a primeira parte do auxílio que temos a oferecer é um trabalho

intelectual de nossa parte e um incentivo ao paciente para nele colaborar. Esse

primeiro tipo de atividade, como sabemos, destina-se a preparar o caminho para outra tarefa, mais difícil [superar as resistências]. (op. Cit., p.192)

Entretanto, não obstante Freud tenha feito essa ressalva, se antes já havia uma confusão entre sugestão e transferência e entre psicanálise e educação, agora outros conceitos provocavam ainda mais ambiguidades e contradições quanto ao estabelecimento dos princípios da técnica psicanalítica. Situação analítica definida como pacto entre o eu do analista e do analisante, cura compreendida como fortalecimento do eu, domínio do eu sobre o id e harmonia entre eu, id e supereu, tudo isso levou a muitas divergências entre os

psicanalistas pós-freudianos quanto às variações na técnica. Não se trata de pequenas modificações que levam ao mesmo resultado, pois elas remetem a técnica ao sentido forte da téchne, uma vez que se trata de concepções diferentes do que é a cura e de qual é, consequentemente, a política, a basiliké téchne da psicanálise. Essas variações, como bem diz Dunker (2011), “não são apenas modos de ler e interpretar conceitos, mas formas de entender os fins e os meios da prática, maneiras de resolver o problema do poder e da verdade em psicanálise” (p. 587).

Não há, portanto, uma síntese completa das teses e antíteses desenvolvidas nas viradas dialéticas das posições de Freud em relação à técnica psicanalítica. Não que fosse possível chegar a um saber absoluto ou a uma posição completa, como já bem demonstraram diversos críticos da dialética hegeliana que supunha esse saber, como o próprio Lacan. Evidencia- se, porém, mesmo sem essa síntese, como essas diferentes posições levaram a diferentes políticas de cura.

Se ainda considerarmos as variações colocadas pelos contemporâneos de Freud e pelos pós-freudianos, a complexidade fica ainda maior. Cada um privilegia algum elemento clínico e teórico, alguma das posições de Freud, fazendo também suas inovações teóricas e práticas.

As variações decorrentes dessas inovações tornaram-se uma grande preocupação para a International Psychoanalytical Association (IPA), fundada por Freud. Já em 1934, antes ainda da morte de Freud, Glover fez uma pesquisa na Grã-Bretanha na qual os psicanalistas deveriam responder a um questionário sobre quais eram suas práticas técnicas reais. Sobre o resultado desse questionário, publicado seis anos depois, Glover (1940, citado por Lacan, 1955b/1998) diz:

Obtive respostas completas de vinte e quatro dos vinte e nove membros praticantes. Do exame delas transpirou (sic) que só havia acordo completo quanto a seis dos sessenta e três pontos levantados. Apenas um desses seis pontos pode ser considerado fundamental, a saber, a necessidade de analisar a transferência; os demais se relacionaram com matérias tão insiginificantes quanto à inoportunidade de aceitar presentes, a rejeição do uso de termos técnicos na análise, a evitação de contatos sociais, a abstenção de responder a perguntas, à objeção por prinípio às pré-condições e, muito curiosamente, o pagamento de

todas as sessões a que se deixa de comparecer. (p.328)

Esse enorme desacordo entre os psicanalistas fez com que a IPA estabelecesse algumas normas que deveriam ser respeitadas por todos, levando à rigidez que depois foi tão contestada por outros, principalmente por Lacan. De todo modo, as variações continuaram presentes, determinando rumos distintos para um fim que também parece já não ser o mesmo para todos. Daí a importância em conhecermos esses caminhos que parecem levar a diferentes destinos.

Fica impossível, contudo, fazer aqui um mapeamento mais detalhado de todas as derivações técnicas e suas implicações políticas. Entretanto, embora a missão seja impossível, isso não impede que façamos um breve mapeamento, não com o intuito de aprofundar as concepções de cada psicanalista, mas de fazer uma contextualização que vise tão somente situar de maneira mais clara como Lacan adentra e se posiciona nessa seara.