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Técnicas fundamentadas na teoria do eu

PARTE I – POLÍTICA E TÉCNICA

4. Breve mapeamento das derivações técnico-políticas após Freud

4.2. Técnicas fundamentadas na teoria do eu

Um número razoavelmente grande de psicanalistas utilizou a teoria freudiana da segunda tópica para fundamentar sua clínica. Federn foi um dos primeiros a desenvolver a teoria do eu já em meados dos anos 1920. Ele enfatizou o aspecto psico-sensorial do eu para tentar analisar alguns fenômenos psicopatológicos de despersonalização (conforme Assoun, 2007). Interessava a Federn compreender os efeitos de perda das fronteiras do eu presentes nos casos de psicose.

Mas foi Anna Freud quem exerceu mais influência sobre outros psicanalistas com sua teoria dos mecanismos de defesa do eu – repressão, negação, racionalização, formação reativa, isolamento, projeção, regressão e sublimação –, desenvolvida na década de 1930. Esse acento dado aos mecanismos de defesa tinha um cunho fortemente pedagógico. Além de tentar levar algumas contribuições da psicanálise à vida escolar, Anna Freud considerava o psicanalista uma espécie de educador. Já vimos que em alguns momentos o próprio Freud estabeleceu uma relação entre e posição do psicanalista e a do educador com algumas ressalvas, mas Anna Freud radicalizou essa relação ao praticamente não distinguir tais posições. Para ela, todo o processo psicanalítico deveria ser feito a partir e sobre o eu, uma vez que apenas o eu poderia ser observado diretamente. O psicanalista seria responsável por ajudar o analisante a encontrar uma nova maneira de lidar com as exigências da realidade. Ali onde o eu do sujeito estaria falhando em sua função de conciliar as demandas do isso com as exigências sociais ou do supereu, o psicanalista interviria para corrigir as anormalidades do eu,

educando as pulsões, domesticando-as em função das exigências externas. Essa técnica, embora tenha sido duramente atacada por Klein, foi largamente utilizada por outros psicanalistas, vindo a formar a corrente chamada de Psicologia do Ego. Fenichel, Balint e, principalmente, Hartmann, Kris e Loewenstein, que fundaram a Psicologia do Ego nos Estados Unidos, mais especificamente em Nova Yorque (os três são europeus, mas migraram para os Estados Unidos em função da Segunda Guerra). Esse grupo da Psicologia do Ego, em continuidade com a clínica annafreudiana, enfatiza a função adaptativa do eu. Hartmann é bastante direto em relação a esse ponto. Em 1937 ele apresentou na Sociedade Psicanalítica de Viena o texto Psicologia do ego e o problema de adaptação (Hartmann, 1939/1968), publicado em alemão dois anos depois.

A concepção do eu como instância de adaptação à realidade tem suas implicações técnicas: a função do psicanalista passa a ser a de um mediador com a realidade. Estabelece-se um pacto entre o suposto eu saudável do psicanalista e o eu enfermo do analisante. Este se compromete a dizer tudo que lhe ocorre enquanto aquele interpreta e lhe mostra o melhor caminho a ser seguido. Além de se tornar um modelo para o analisante, o psicanalista acaba intervindo diretamente nas escolhas e na vida do analisante.

Tomemos também como referência um autor que, embora não tenha sido citado por Lacan, pode nos trazer diversos esclarecimentos sobre as críticas de Lacan à Psicologia do Ego. Trata-se de Greenson, outro psicanalista que, em função da Segunda Guerra, migrou da Europa para os Estados Unidos, mas diferententemente de seus colegas novayorquinos, Greenson foi para Los Angeles. Ele se tornou bastante conhecido nos Estados Unidos por dois motivos: no meio psicanalítico por ter escrito uma espécie de manual da técnica psicanalítica, intitulado A técnica e a prática da psicanálise (1967/1981), reunindo as principais considerações sobre técnica de Anna Freud, Fenichel, Hartmann, Kris e Loewenstein, em articulação, é claro, com algumas citações de Freud mais direcionadas ao trabalho psicanalítico sobre o eu; no meio social mais amplo, Greenson ficou mais conhecido por ser um dos psicanalistas de Marylin Monroe (a primeira psicanalista foi Anna Freud). Há toda uma polêmica, retratada de maneira romanceada em Marilyn últimas sessões (Schneider, 2008), em relação à participação de Greenson na morte de Marylin.

Sabe-se que ele receitava e aplicava medicamentos que eram misturados às drogas usadas pela atriz e foi ele quem ligou para polícia notificando que Marylin estava morta – talvez em função da mistura de drogas feita por ambos. Essa história de Marylin não é aqui apenas uma anedota feita para amenizar a densidade do texto e aliviar a atenção do leitor. Ela tem um interesse psicanalítico, pois traz um ponto muito importante que é o da interferência do psicanalista na vida de seu analisante. Greenson, por exemplo, chegou a fazer um contrato com a gravadora de Marylin prometendo que ela chegaria no horário para as gravações. Ainda mais do que isso, ele chegou a proibir que Marylin fizesse o papel da personagem Cecily, do filme Freud além da alma (Huston, 1962). Pois é, Cecily seria interpretada por Marylin Monroe não fosse a intervenção de Greenson, sabendo que Marlylin não estava desavisada sobre o que seria esse papel, pois ela lia os textos de Freud.

É também interessante o fato de que Greenson escreveu seu manual da técnica no mesmo período em que atendia Marylin. Nesse livro, encontramos diversos trechos que demonstram como a técnica régia (basiliké téchne) desse grupo de psicanalistas é centrada no eu. Indiquemos aqui dois trechos somente para ilustrar:

A técnica psicanalítica visa diretamente ao ego porque só o ego tem acesso direto ao id, ao superego e ao mundo externo. Nosso objetivo é fazer com que o ego renuncie às suas defesas patogênicas ou encontre outras mais convenientes.

(…)

A única solução válida e segura é conseguir mudanças estruturais no ego, o que lhe irá permitir renunciar às suas defesas ou encontrar alguma que permita descarga instintual adequada. (Greenson, 1967/1981, pp. 30-31)

Um pouco a frente, Greenson também diz que o trabalho do analista deve ser “o de tentar restabelecer o raciocínio do processo secundário e lógico do ego” (op. cit., p.37). Fica bem clara, desta forma, a mudança técnica provocada pela Psicologia do Ego: sua política consiste basicamente no restabelecimento e fortalecimento da função adaptativa do eu, cabendo ao psicanalista realizar essa função enquanto o eu do analisante encontra-se enfermo e fraco.