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Um fragmento da clínica de Lacan

PARTE I – POLÍTICA E TÉCNICA

5. A técnica e a política na direção da cura em Lacan

5.3. Algumas implicações técnicas do aforismo

5.3.6. Um fragmento da clínica de Lacan

Não temos nenhum acesso aos casos clínicos de Lacan por meio de sua obra. Exceção poderia ser feita ao caso Aimée, mas esse, embora já contivesse em sua apresentação muitas influências da teoria freudiana, pode ser considerado um caso “pré-psicanalítico”. Lacan tinha muitos analisantes

que estavam em formação psicanalítica e que frequentavam seus seminários, logo a ampla repercussão de sua transmissão colocava em risco a privacidade de seus analisantes. Por isso, ele restringiu-se a comentar os casos de Freud e de outros já publicados por outros psicanalistas.

Hoje, porém, temos um pequeno acesso via relatos e depoimentos de pessoas que fizeram análise e/ou supervisão com Lacan. É verdade que muitos pontos devem ser considerados ao se tomar esse material. Em primeiro lugar, a maioria dos relatos é de pessoas que estão engajadas na prática psicanalítica, ou seja, estão inseridas também num certo jogo de luta por reconhecimento nas instituições psicanalíticas. Assim, pode ser conveniente para alguém dar um depoimento de uma boa intervenção de Lacan e dos efeitos operados por ela no sujeito e ocultar várias que não funcionaram ou, pior, tiveram um efeito negativo. Manter a imagem inabalável do mestre é também uma maneira de garantir seu status de discípulo herdeiro.

Por outro lado, para aqueles que romperam relação com Lacan e com o lacanismo, atacar o antigo mestre é uma forma de elevarem seus status para o de quem superou Lacan. Infelizmente, praticamente não temos relatos de analisantes que não se tornaram psicanalistas. Há o livro de Pierre Rey (1990), que traz algumas histórias bem interessantes, que mostram como Lacan fazia intervenções, no mínimo, muito curiosas e que fugiam a qualquer padrão.

Mas apenas para dar aqui um exemplo clínico das fundamentações teóricas da transferência, da interpretação e da escansão, escolhi discutir aqui um fragmento do relato de Jean-Pierre Winter (2009). Justifico tal escolha por considerar que, além de trazer uma intervenção bem específica de Lacan e de modo bem contextualizado, Winter não cai no idealismo da prática lacaniana, dando inclusive uma breve demonstração de uma intervenção que teve efeitos devastadores, como ele mesmo afirma.

Winter nos conta que nas primeiras entrevistas de análise com Lacan uma de suas demandas de análise consistia em entender melhor o que havia por trás de uma situação que vivenciou quando adolescente. Roubou um assado no supermercado e acabou sendo pego e processado por isso. Lacan não lhe disse uma palavra acerca desse assunto. Dois anos depois dessa sessão, Winter ficou sabendo que um de seus amigos psiquiatras italianos – foi por meio desses amigos que ficou sabendo de Lacan – fora preso por roubar

livros. No dia seguinte, bem cedo, veio uma intervenção inesperada de Lacan. Já sabendo do ocorrido por meio de outra analisante, ele ligou para Winter para manda-lo ir até a prisão, perguntar o que aconteceu e voltar para lhe contar.

Apesar de toda dificuldade de entrar numa prisão e solicitar uma visita com quem não tinha nenhuma relação de parentesco ou diretamente profissional, Winter se desdobrou para consegui-la. Falou com um advogado, mentiu ao procurador e obteve a autorização. Após algumas horas na prisão, finalmente conseguiu conversar com o tal amigo, que não lhe contou nada além do que ele sabia. Em seguida, foi ao consultório de Lacan relatar sua aventura na prisão. No final, disse: “é mesmo doideira afanar livros!”, ao que Lacan responde: “De jeito nenhum, meu caro, o que é louco não é afanar, é se deixar pegar” (Winter, 2009, p. 141).

Essa intervenção teve grandes e importantes efeitos em Winter: Ele diz: “O efeito disso foi inverter completamente a relação que eu tinha com minha própria história e todo o resto! É o que se poderia chamar de retificação ética” (op. Cit., loc. Cit.). Essa retificação, mudança de posição subjetiva, veio pelo modo como Winter se apropriou não só dessa última interpretação de Lacan, mas de toda a intervenção concernente a esse assunto. Em suas palavras, era como se Lacan dissesse: “Já que o senhor tinha vontade de ir para a prisão, pois bem, vá! Vá ver como é, e como o senhor tem comentários a fazer sobre a coisa, vamos nos apossar dela para fazê-lo trabalhar naquilo de que se trata, para o senhor, nesse tipo de assunto” (op. Cit., p. 141-142).

Pois então, dois anos após ter ouvido uma das demandas de Winter, Lacan aproveitou um evento da realidade para fazer uma interpretação, que pode ser localizada em mais de um momento nessa intervenção mais geral. Talvez possamos considerar a primeira interpretação a ordem de Lacan para que Winter fosse até a prisão. Embora seja uma ordem, ela parece ter estatuto diferente de uma sugestão, pois fala de uma posição subjetiva recalcada e que depois é traduzida por Winter. A interpretação funciona aqui justamente como Lacan a definiu, ou seja, como a introdução, na sincronia dos significantes que aparecem na diacronia da história do sujeito e das sessões, de algo novo que possibilita a tradução.

Mas era preciso que houvesse também transferência que sustentasse uma intervenção desse tipo. O próprio Winter testemunha como ela foi forte a

ponto de fazê-lo ir atrás de algo absurdo, que aparentemente não dizia respeito a ele, a não ser pelo fato de que era um amigo dele que estava preso. Creio ficar mais claro por meio desse caso como a interpretação precisa ser feita sob transferência, e como ambas precisam levar em conta a temporalidade do inconsciente.

Há também outro exemplo de interpretação de Lacan descrita por Winter que considero interessante para discriminar a tênue separação entre a interpretação e a sugestão, principalmente quando ela ocorre em forma de ordem. Lacan havia dito a Winter que voltaria de féria no meio de setembro. No entanto, por meio de outros analisantes, Winter descobriu que Lacan havia retornado no primeiro dia do mês e já havia agendado sessões com alguns analisantes, mas não com ele. Tomado pelo ciúme, deitou-se no divã e disse: “Veja o que acabei de saber e, digo-lhe com todas as letras, estou extremamente enciumado”. Lacan lhe respondeu: “O senhor está enciumado? Bem, nesse caso, o senhor me pagará todas as sessões que deveria ter feito se eu tivesse lhe telefonado no dia 1º.” (op. Cit., p.137). Ou seja, outra ordem dada por Lacan. Qual foi a reação de Winter nessa situação?

A partir daí, havia suas opções: ou pagar, e era um certo tipo de vínculo que se instauraria, ou tomar aquilo como uma interpretação de meu masoquismo; interpretação que também significava uma consideração de sua parte, de modo humorístico, para com minha realidade material. Ri disso com ele, não paguei, e depois veríamos o que ia acontecer. Evidentemente, ele nunca pediu esse pagamento. Nunca pediu e isso adquiriu a condição de uma interpretação que efetivamente abriu para mim a possibilidade de me interrogar sobre a significação masoquista do ciúme. (op. Cit., p. 138)

Trata-se de um fragmento interessante por indicar, junto com a intervenção descrita anteriormente, como essas ordens de Lacan não são feitas para ser seguidas, daí a diferença com a sugestão. Elas têm a estrutura de um chiste e evidenciam a posição do sujeito frente ao Outro. E o efeito a posteriori é, além de provocar a tradução feita pelo próprio sujeito, fazer cair a transferência. Como no caso da primeira intervenção, que provavelmente fez Winter se questionar sobre essa obediência maluca à ordem dada por Lacan. Já na segunda intervenção, Winter não toma a ordem ao pé da letra, como se

fosse algo que ele tivesse que obedecer. Não, aí antes de obedecer ele percebeu que era de outra coisa que se tratava.

Contudo, é importante dizer que essas intervenções contém também um certo risco e elas nem sempre dão certo. Não se trata de idealizar ou, como diz Winter, de glorificar a prática lacaniana. Aliás, o próprio Lacan não incentivava todos a copiarem seu estilo, mesmo a prática das sessões curtas. Pelo menos é o que nos diz Houbballah (2009), que fez supervisão com Lacan. Além disso, diversas vezes Lacan fez intervenções não só ineficazes como também bastante prejudiciais ao tratamento. Winter relata que uma vez teve que mudar o horário de uma de suas sessões em função de seu trabalho num centro médico psicopedagógico, mas Lacan não aceitou, sem explicitar por quê. Após muito tempo perturbado com isso, Winter (2009) perguntou o porquê da recusa, ao que Lacan respondeu: “Você não entende nada? Bem, azar o seu” (p.143). Essa resposta teve um “efeito devastador”, levando-o a um desinvestimento no trabalho. Só algum tempo depois Winter descobriu que a recusa era uma resposta ao fato de que, em função da mudança de horário no trabalho, não poderia participar da apresentação de pacientes de Lacan. Logo, não se tratava exatamente de uma questão de Winter, mas de um desejo do Lacan.

Enfim, haveria ainda outros relatos de abusos de poder de Lacan – seja de analisantes ou de pessoas que trabalhavam com ou próximos a ele – mas nem vale a pena entrar nesse assunto, pois seria preciso tratar de questões pessoais dos envolvidos. E também não se trata de execrar Lacan, mas somente de evitar uma idealização de sua técnica e uma ideologização de sua teoria. Isso pode parecer óbvio, mas importante de ser dito quando se observa uma repetição, ou melhor, um mimetismo de sua prática em psicanalistas lacanianos. Lacan tinha muitos analisantes que faziam formação em psicanálise, que assistiam a seus seminários, atendia também muitos casos graves; fazia parte da cultura francesa e era um dos protagonistas da intelectualidade parisiense, ocupando assim uma posição de prestígio na sociedade francesa. Tinha, portanto, uma posição que suscitava muita transferência. E, por sua personalidade sui generis, suscitava tanto amor quanto ódio. Essas condições lhe davam um poder de intervenção também muito peculiar, dentro de um contexto específico, sendo então inimitável.