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Nosso objetivo, neste trabalho, é o estudo da expressão da temporalidade em textos de fait divers, examinados numa perspectiva enunciativa, assim como também o de verificar como ela é expressa por alunos de francês, em contexto institucional.

Pretendemos, assim, apresentar algumas características do referido gênero e verificar como é construída sua estrutura temporal. Já definimos nos itens anteriores o tipo linguístico do fait divers na acepção de Bronckart, ou seja, trata-se de um relato interativo (BRONCKART, 1999) que tem características próprias do gênero, como veremos adiante.

Riegel, Pellat e Rioul (2009, p. 969) afirmam que a língua “est préconstruite en vue de son utilisation effective en situation de communication” e que « tout enoncé est repéré directement ou indirectement par rapport à la situation d‟énonciation où il est produit »19, o que fará com que se permita identificar o

enunciado no tempo e no espaço. Assim sendo, para observarmos a expressão da temporalidade nesse gênero, faremos inicialmente um breve estudo do fait divers na mídia, observando diversos aspectos relacionados ao tema que nos interessa, ou seja, à temporalidade a partir da situação de enunciação.

Os gêneros midiáticos dividem-se em: 1) gêneros jornalísticos (imprensa escrita); 2) gêneros televisivos; e 3) gêneros radiofônicos. Nos gêneros da imprensa escrita, os quais nos interessam, encontramos, entre outros, o editorial, a crônica, o perfil, o artigo de análise, o dossiê, a tribuna, a entrevista, o fait divers etc.20.

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“é pré-construida em vista de sua utilização efetiva em situação de comunicação [...] todo enunciado é observado direta ou indiretamente em relação à situação de enunciação em que ele é produzido”.

20 Alguns autores, Charaudeau (2006), por exemplo, reconhecem o título também como um gênero

A narrativa midiática, contrariamente a outras narrativas como a literária, por exemplo, caracteriza-se pelo relato de fatos reais. Ela não se propõe a inventar uma história, como na ficção, pois deve partir de acontecimentos da vida real. Porém, isso não quer dizer que seja “o reflexo do que acontece no espaço público”. É, antes de mais nada, “o resultado de uma construção”, pois “o universo da infomação midiática é efetivamente um universo construído” (CHARAUDEAU, 2006, p. 151).

Charaudeau (2006, p. 151), também referenciado por Sodré e Ferrari (1978), explicita essa questão, mostrando que o acontecimento nunca é transmitido em seu “estado bruto”. Acrescenta ainda, que é impossível transmiti-lo em sua totalidade, ele representa apenas um fragmento do real, um corte da realidade. Antes de ser transmitido e para que ele seja transmitido no curto espaço físico de um jornal, o acontecimento passa por uma série de racionalizações, de seleções: o que contar, como contar, quem incluir nesse acontecimento etc. Desta forma, “a instância midiática impõe ao cidadão uma visão de mundo previamente articulada, sendo que tal visão é apresentada como se fosse a visão natural do mundo”. Na realidade, ao fazer a seleção, a enunciação, de alguma forma, passa pelo filtro do ponto de vista do enunciador.

A imprensa deve ater-se a fatos reais, mas também atuais. A atualidade é uma das finalidades da informação midiática. O discurso das mídias fundamenta-se no que é atual. Cabe esclarecer, entretanto, que nem tudo o que é atual aparecerá na mídia, nem tampouco a interessará. Segundo ainda Sodré e Ferrari (1986, p. 17), “um jornal costuma publicar apenas quinze por cento de todo o volume informativo que recebe diariamente.” Como já vimos, há uma seleção que começa pelos acontecimentos que vão figurar na mídia. O acontecimento, que vai virar notícia, “é selecionado em função de seu potencial de saliência, que reside ora no notável, no inesperado, ora na desordem” (CHARAUDEAU, 2006, p. 134), assim sendo, “„um cão que morde um homem‟ não é, a priori, digno de ser noticiado, mas „um homem que morde um cão‟, isto sim, é novidade!”:

Não é o acidente enquanto tal que interessa às mídias, mas o que ele comporta de drama humano: o „insólito‟, que desafia as normas da lógica; o „enorme‟, que ultrapassa as da quantidade obrigando o ser humano a se reconhecer como pequeno e frágil; o „misterioso‟, que remete ao além como lugar de poder, muito mais das forças do mal que do bem; o „repetitivo‟, que transforma o aleatório em

fatalidade; o „acaso‟, que faz coincidir duas lógicas em princípio estranhas uma à outra, obrigando-nos a pensar nessa concidência; o „trágico‟, que descreve o conflito entre paixão e razão, entre pulsões de vida e pulsões de morte; o „horror‟, enfim, que conjuga exacerbação do espetáculo da morte com frieza no processo de exterminação. (CHARAUDEAU, 2006, p. 140-1)

O acontecimento selecionado é, então, convertido em notícia e isso acontece por meio de um processo narrativo que a apresentará a partir de um fato que tem sua origem no passado e pode apresentar um porvir (futuro)21. A “noticia”, para

Charaudeau (2006, p. 134), é um “conjunto de informações que se relaciona a um mesmo espaço temático, tendo um caráter de „novidade‟, proveniente de uma determinada „fonte‟ e podendo ser diversamente tratado”. Segundo o autor, a notícia caracteriza-se como efêmera, sempre ligada à atualidade, é a-histórica, fundamenta- se na urgência da transmissão da informação, é a não descrição do cotidiano social, uma vez que trata-se de um recorte do mundo operado pelas mídias. A notícia parte do real, da atualidade, mas não significa nem pretende ser descrição do cotidiano social. Trata-se simplesmente de um recorte operado pela mídia.

A imprensa escrita inscreve-se numa situação de troca monolocutiva22, ou seja, não possibilita um face-a-face entre os locutores como em uma interação verbal. Esse fato faz com que ela deva apresentar: legibilidade dos acontecimentos que transmite, ou seja, o acontecimento relatado deve constituir um texto bastante claro, o mais próximo possível do real, isso visando despertar a credibilidade no leitor; deve ainda ser acessível a um grande número de leitores.

A veracidade do relato pode ser alcançada também pelas referências concretas inseridas no texto: a hora exata do atropelamento, o nome completo das pessoas etc. Tais referências dão efeito de realidade no texto (LAGE, 2002, p. 42).

21 Charaudeau (2006, p. 135) afirma haver um “blefe” positivo no âmbito da mídia: a atualidade é que

interessa a imprensa escrita, portanto, o “presente” do enunciador e do leitor. Esse “blefe nobre” seria a conversão da atualidade do enuciador em narrativa, o que faz com que o acontecimento se insira “numa interrogação sobre a origem e o devir, conferindo-lhe uma aparência (ilusória) de espessura temporal”. Condordamos em parte com as afirmações do autor, mas não podemos nos esquecer que, em se tratando de relato, em uma situação de escrita, o acontecimento já ocorreu, mesmo que este seja recente, portanto, de toda forma, ele é passado e é passível de ser relatado: são ações acabadas no tempo. Em outro item, o autor denomina a narrativa midiática como “relato do acontecimento”, uma narrativa de reconstituição, uma vez que o acontecimento já se produziu, e que se diferenciaria da narrativa de simultaneidade. Simultaneidade entre o tempo do acontecimento e o tempo da transmissão, ou seja, que se desenrola paralelamente à narrativa como, por exemplo, a narração de um jogo (rádio, TV, internet).

Outro elemento que dá credibilidade ao texto e é bastante utilizado na mídia escrita é a inserção da fala do “outro”, no texto (alguém ligado ao acontecimento, à vítima, uma testemunha, por exemplo). Em item posterior vamos explicitar um pouco mais essa questão, que é também interessante do ponto de vista das funções verbais da situação enunciativa.