• Nenhum resultado encontrado

1. APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO: Teoria da Variação e Mudança

2.1 NOÇÃO DE CASO GRAMATICAL NO PORTUGUÊS

Nas palavras de Mioto, Figueiredo Silva e Lopes (2007, p. 171), “Caso é uma teoria da gramática que tem longa tradição mas que não retém sentido uniforme na teoria linguística”. É importante dizer que quando se fala em caso na teoria linguística, pode-se estar falando de Caso abstrato, caso morfológico ou caso semântico. Desses, nos detivemos (detivemo-nos) com mais acuidade ao Caso abstrato, haja vista que é esse o parâmetro da marcação casual do Português Brasileiro, apesar de ainda haver resquícios do caso morfológico. Essa marcação torna-se ainda mais perceptível, haja vista que ela prevalece até mesmo sobre estes resquícios do caso morfológico, os pronomes, quando concorrem à marcação de uma mesma função sintática. Um pronome oblíquo (tônico), por exemplo, ocorre em função acusativa e os pronomes morfologicamente acusativos ocorrem em função desempenhada por oblíquos tônicos. De forma semelhante, os pronomes com morfologia do caso reto ocorrem em funções sintáticas acusativa e oblíqua, possibilidades de empregos que exemplificaremos mais à frente. No Português Europeu, o emprego desses pronomes (resquícios do caso morfológico) ainda coincide no seu uso com sua marcação morfológica de caso, apesar de que nos sintagmas nominais também prevalece o Caso abstrato.

A Teoria do Caso, por meio do Filtro do Caso (Filtro Casual) tal como proposta pela Gramática Gerativa, é um princípio universal, haja vista que toda língua tem Caso, e a forma como ela se expressa na língua, seja por meio de caso morfológico ou de Caso abstrato, trata- se da marcação dos parâmetros. Segundo Chomsky (1994 [1986], p. 173),

nalgumas línguas (o sânscrito, o latim, o russo,...), o Caso manifesta-se morfologicamente, ao passo que noutras tem pouca realização visível (o

8 A Gramática de Português, organizada por Raposo et al (2013), contempla tanto análises linguísticas quanto

gramaticais (funcionais) descritivas. Logo, essa obra sempre que necessário será referenciada em relação à parte linguística e à parte gramatical de nossa discussão e análise.

inglês, o francês,...) ou mesmo nenhum (o chinês,...). De acordo com as linhas gerais da nossa abordagem, assumimos que o Caso se encontra sempre presente abstratamente. Em línguas nominativas/acusativas, o sujeito de uma oração finita recebe o Caso nominativo; o objetcto de um verbo transitivo recebe Caso acusativo (com alguma variação paramétrica e lexical, discutida por Freidin e Babby (1984), Neidle (1988), entre outros); e o objecto de uma pre- ou posposição recebe o Caso oblíquo (de novo com variação substancial). As ideias básicas da teoria do Caso nasceram a partir da investigação sobre a distribuição dos NPs visíveis, com um conteúdo morfológico. Chomsky e Lasnik (1977) propuseram um conjunto de filtros de superfície para captar essa distribuição, mas Vergnaud (1982) observou que a maioria dos seus efeitos podia ser unificada se o Caso fosse atribuído do modo que acabamos de indicar, e se o Caso fosse exigido para a realização morfológica, algo que se pode formular como em (269) Todo o NP foneticamente realizado tem de receber um Caso (abstracto). [grifo nosso].

No PB, encontramos tal marcação paramétrica com base no Caso abstrato, o qual nos confere esses 3 casos apontados por Chomsky: nominativo, acusativo e oblíquo. De acordo com a Teoria X-barra, o Caso nominativo é atribuído pelo amálgama do núcleo funcional da flexão verbal I do IP com o núcleo V do VP,9 ao argumento movido ao Espec (posição em que o argumento externo recebe a marcação do caso nominativo); o segundo, o Caso acusativo, é marcado pelo núcleo V do VP, e o terceiro, o oblíquo, recebe caso do núcleo P do PP10. Este

último abarca três dos antigos casos morfológicos, equivalendo ao genitivo, dativo e ablativo – presentes morfologicamente no Latim. Esses, no PB, se restringem a resquícios dessa marcação morfológica, a exemplo de, Mim e Ti oblíquos tônicos (dativos preposicionados), ou Me e Te, oblíquos átonos (formas morfologicamente acusativas, mas que podem desempenhar função sintática de complemento indireto – forma dativa não preposicionada). Segundo a tradição gramatical, são pronomes objetos.

Na prática, na língua em uso no PB, o que encontramos é o Caso abstrato, com base na estrutura hierárquica argumental, sobrepondo os resquícios do caso morfológico, como exemplificado logo abaixo. Esse parâmetro faz com que pronomes com resquícios morfológicos de um caso latino ocorram em contextos sintáticos de usos prototípicos a outros pronomes, sem maiores problemas à produtividade da sentença e a seu entendimento. Isto é, um pronome reto, quando predicado por um núcleo verbal, pode assumir função sintática de

9 Na Teoria Gerativa, segundo a teoria X-Barra, há um núcleo funcional “I” que seleciona como argumento

interno um VP (projeção máxima de um núcleo verbal), codificando “certas propriedades gramaticais que definem uma sentença como finita ou infinitiva”. (MIOTO; SILVA e LOPES, 2007, p. 57). Saturada essa predicação do núcleo funcional “I”, chega-se à sua projeção máxima o IP, do inglês Inflectional Phrase.

10 O “P” é o núcleo lexical de sua projeção máxima PP, o qual predica como argumento interno não só um DP,

OD. Quando predicado por núcleo preposicional, esse pronome reto também pode assumir a função de OI ou de CO; ou, ainda, podemos encontrar os pronomes morfologicamente acusativos desempenhando papel dativo, como atestam Morais e Berlinck (2017, p. 36) quando afirmam sobre “a perda da distinção morfológica entre caso Acusativo e caso Dativo no sistema pronominal”. Generalizando essa “perda de distinção morfológica” proposta pelas autoras, podemos expandi-la às ocorrências envolvendo todo o quadro pronominal, haja vista que não raro encontramos exemplos de emprego dos pronomes retos como complemento de verbo e dos pronomes ditos objetos como sujeito de verbos. Vejamos os exemplos a seguir:

(1) Encontrei ela no departamento. (2) Entreguei os documentos a ela. (3) Te entreguei os livros. (Te = a Ti) (4) Vos darei os livros. (Vos = a Vós)

(5) “Filma eu, filma tu” ou “beija eu”11 (Eu e tu como objeto direto nas dadas sentenças)

(6) Este livro é para mim ler.

(7) Deus mim ajude! Ou Ela mim viu na feira.

Essas construções são todas legítimas na gramática do PB. O caso morfológico herdado pelo pronome reto, caso nominativo, cede lugar ao Caso abstrato acusativo em (1) e ao Caso oblíquo em (2). Em (3), temos o clítico acusativo de segunda pessoa do singular, independente de vir em ênclise ou próclise, desempenhando a função sintática de OI e por isso marcado com a noção semântica de meta ou beneficiário, papéis temáticos típicos do dativo. Em (4), ocorre o mesmo com o clítico acusativo da segunda do plural. Em (5), há o emprego dos pronomes retos de primeira e de segunda pessoa, prescritos pela GT como formas exclusivas da função de sujeito ou de predicativo do sujeito, ocorrendo como acusativos, sem maiores problemas. Em (6), há um pronome oblíquo tônico desempenhando a função de sujeito do verbo no infinitivo, ocorrência muito usual no PB. Por último, no

exemplo (7), o pronome oblíquo mim também pode ocupar a função sintática de OD, típica dos pronomes acusativos. Dessa forma, a marcação de caso no PB é o Caso abstrato, sintático, intrinsecamente ligado à seleção estrutural, de acordo com a Teoria X-Barra, e quase sempre se dá na posição linear do sintagma na sentença.

Fazendo uma breve distinção do Caso abstrato dos demais casos, entendamos o caso semântico como sendo aquele responsável por verificar a “noção semântica que corresponde ao papel que o argumento desempenha na relação estabelecida pelo núcleo lexical do sintagma: AGENTE, TEMA, INSTRUMENTO, LOCATIVO e alguns outros.” (MIOTO, FIGUEIREDO SILVA; LOPES, 2007, p. 171). Vejamos que tal verificação temática só é possível por meio da visibilidade ocasionada pelo Caso abstrato; isto é, cada DP tem seu papel temático reconhecido e interpretado, na sentença abaixo, graças ao Caso abstrato conferido segundo o Filtro do Caso – princípio que garante que um DP pronunciado tenha Caso (ibid, p. 175):

(8) [SN Um homem] [SV espancou [SN o João] [SP com [SN um pau]] [SP n[SN a rua]]].

AGENTE PACIENTE INSTRUMENTO LOCATIVO

Vejamos que em (8) há quatro sintagmas nominais (ou DPs – segundo a Teoria Gerativa): [Um homem], [o João], [um pau] e [a rua], sendo estes dois últimos argumentos internos de um PP. Segundo o filtro de caso, cada DP pronunciado deve, portanto, receber um caso linguístico para que tenha sua configuração temática lida e interpretada na sentença. Dessa forma, o DP [um homem] recebe leitura temática de agente “o espancador”; [o João] recebe leitura temática de paciente “a vítima do espancamento”; [um pau] é lido como o instrumento utilizado na agressão e [a rua], a leitura de lugar em que ocorreu a ação expressa pelo verbo “o espancamento”.

Apesar de semelhantes, o Caso abstrato diferencia-se do caso morfológico, principalmente, por não disponibilizar de um paradigma desinencial (terminações inerentes a cada caso). Isto é, no caso morfológico, encontramos um morfema associado aos diferentes casos. O latim é um bom exemplo para observarmos o caso morfológico e seu paradigma.

A grande diferença entre estes dois últimos casos é basicamente a ausência do paradigma morfológico por parte do Caso abstrato. No entanto, esses dois casos têm como principal função dar visibilidade ao DP, como vimos em (8), para que se torne visível a leitura

temática na cena expressa pela sentença, um princípio universal comum a todas as línguas. Nesse sentido, afirma Kennedy (2013, p 238) que “o Caso é [...] uma propriedade importante das línguas naturais. A função do Caso num sistema linguístico qualquer é permitir a discriminação dos argumentos de um dado predicador”.

Como vimos, há gramáticas de línguas como o Português, em que o parâmetro de marcação de caso dá-se por meio do Caso abstrato. Esse caso é conferido por meio da relação estrutural hierárquica na sentença, sempre que um núcleo predica seu complemento. Quase sempre tal marcação coincide com a ordem linear sintagmática, como generaliza Eduardo Kennedy (2013, p. 240): “Em português, identificamos o Caso de um SN (na verdade, de um SD, que é o sintagma funcional que domina SN) por meio de sua posição linear na frase”. Com a marcação de tal parâmetro, ocorre a ausência do já referido paradigma morfológico de casos, o que, de fato, torna a ordem de distribuição dos constituintes na sentença relativamente fixa, sendo mais produtiva, portanto a ordem na gramática dessas línguas: sujeito, verbo e objeto (SVO). Vejamos a seguinte sentença:

(9) [[O homem] [beijou [a mulher]]]. SN (DP) VP SN (DP)

Por meio da ordem SVO, torna-se mais fácil de observarmos e identificarmos os papéis temáticos na sentença (9) e qual sintagma é o argumento externo e qual é o argumento interno, predicado de acordo com a seleção semântica e a sintática, realizadas pelos núcleos verbal (a mulher) e flexional (o homem). Assim, deduzimos que o Sintagma Nominal (SN) [o homem] é agente na cena, desempenhando o papel de “beijador”, assim como, o SN [a mulher] pode ser visto como aquele que recebeu a ação praticada pelo agente. Essa interpretação temática só é possível graças aos Casos abstratos – nominativo e acusativo – que asseguraram sua visibilidade.

O parâmetro de marcação de caso coincide de tal forma com a ordem linear dos constituintes na sentença, que uma das regras variáveis identificadas para a presença/ausência de concordância verbal no Português é justamente a anteposição ou posposição do sujeito ao verbo. Quando a ordem linear é quebrada e o sujeito é posposto, tal posposição mostra-se como um condicionador linguístico favorecedor à queda da concordância verbal. Quando isso ocorre, o falante pode confundir o sujeito com o objeto o que favorece a não marcação de concordância, como atestam Coelho et al (2015, p. 79):

no caso em questão, a concordância verbal, é possível prever que no português do Brasil sujeitos pospostos ao verbo tendem a restringir a marcação verbal de concordância; e prever ainda que uma possível mudança seguirá na direção de não marcação verbal de concordância quando o sujeito estiver posposto ao verbo, sendo o sujeito, nesse caso, reinterpretado como objeto. [grifo nosso].

Assim, com base no exposto, assumimos tratar-se o caso dativo de uma noção mais semântica que perpassa diferentes categorias sintáticas, como complemento verbal indireto (OI e CO), complemento nominal, complemento adjetival, assim como de adjuntos – os chamados dativos livres. Assim, tomamos o OI como uma das possibilidades de realização do caso “semântico” dativo. No entanto, gramaticalmente, no PB, os complementos preposicionados recebem a marcação de Caso abstrato oblíquo. Em suma, podemos afirmar que todo OI e parte dos complementos oblíquos coincidem com o caso dativo, mas nem todo dativo coincide com um OI ou com um complemento oblíquo (CO), e que a marcação de Caso no Português Brasileiro dá-se de acordo com o Caso abstrato, caso sintático, o qual é mais facilmente observado e inferido de acordo com o critério distribucional (distribuição linear na sentença), apesar de a sua marcação ocorrer de acordo com a hierarquia estrutural dos sintagmas.

2.2 OS PRONOMES DATIVOS E SUAS DIFERENTES VARIANTES EM PB PARA A