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1. APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO: Teoria da Variação e Mudança

2.2 OS PRONOMES DATIVOS E SUAS DIFERENTES VARIANTES EM PB PARA A

Como língua viva que foi, até chegar ao PB (passando por diversas fases – do galego-português ao PB), o latim vulgar, a partir da influência da romanização em contato com as línguas estrangeiras durante as invasões bárbaras, passou por diversas e profundas transformações, desde mudanças fonético/fonológicas até mudanças em sua estrutura gramatical. Da evolução desse contato multilinguístico, até tornar-se PB, o português passou por diferentes fases ao longo dos séculos: galego-português, português arcaico, português clássico e PB. Nesse sentido, de acordo com Ribeiro (2015), a consolidação do PB teria ocorrido por volta da virada do século XVIII ao século XIX, a qual ocorrera em relação à gramática do português clássico dos séculos XVI a XVII, as quais nos serviram de input linguístico (cf. RIBEIRO, 2015).

Uma dessas evoluções/transformações linguísticas foi a que ocorreu com o caso dativo, que era um caso morfológico bem delimitado e tornou-se uma noção morfossintática e semântica mais complexa, como veremos mais à frente, o que lhe atribuiu grande flexibilidade funcional. O caso dativo, inicialmente, ocorria por meio do caso morfológico responsável por marcar um DP ou de se materializar por meio de pronome complemento, com a função de marcar o emprego sintático de objeto indireto. No entanto, ainda no latim vulgar, a distinção sonora que havia entre os seis casos morfológicos foi-se perdendo, o que ocasionou a simplificação de seis casos morfológicos para três casos sintáticos: de nominativo, genitivo, ablativo, vocativo, dativo e acusativo, para nominativo, acusativo e oblíquo. Após esse enxugamento nesse paradigma, o caso dativo chegou-nos morfologicamente apenas por meio de resquícios no quadro pronominal, ainda responsável por representar o OI. Como resultado dessa simplificação nos casos morfológicos, no PB, predominou, mesmo perante os pronomes, o Caso abstrato. Com a flexibilização funcional por que passaram e passam os dativos, concordamos com a Concepción Company (2002) sobre o que autora define por datividade12, como sendo um ambiente em que pronomes dativos desempenham a função sintática de OI, mas perpassam outras funções sintáticas, sobre as quais discutiremos mais à frente neste capítulo (cf. COMPANY, 2002).

Vejamos, no quadro abaixo, como se dava essa marcação morfológica dos casos latinos nos DPs e suas diferentes funções sintáticas associadas às formas assumidas pelo substantivo “rosa” em latim rosa:

Casos Singular Plural Função sintática

Nom. Gen. Dat. Ac. Voc. Abl. Ros-a ᴓ a rosa Ros-ae da rosa Ros-ae à rosa Ros-am a rosa Ros-a ᴓ ó rosa Ros-a ᴓ pela rosa

Ros-ae as rosas Ros-árum das rosas Ros-is às rosas Ros-as as rosas Ros-ae ó rosas Ros-is pelas rosas

Sujeito ou predicat. do sujeito Adjunto restritivo

Objeto indireto Objeto direto Vocativo

Agente da passiva e outros adjuntos

Quadro 1. Caso morfológico, adaptado do livro Programa de Latim (COMBA, 2002, p. 44).

Observemos, por meio do quadro acima, que, no singular, nos casos nominativo, vocativo e ablativo, a marca casual dá-se com o morfema zero -ᴓ. A distinção entre esses,

12 Como, a nosso ver, o dativo representa mais relações semânticas do que propriamente sintáticas no PB

vernacular, utilizaremos o termo datividade por acreditarmos abranger uma gama maior de possibilidades, ao contrário do termo dativo que remete apenas aos pronomes, deixando de fora as diversas outras formas linguísticas possíveis de ocorrer em seu lugar. Assim, passamos a chamar esse “ambiente” em que pode ocorrer o pronome dativo ou uma das variantes concorrentes (apresentadas mais à frente) de datividade.

então, era realizada de acordo com a pronúncia, uma maior ou menor extensão da vogal final, por exemplo, o que lhes conferia uma função sintática distinta. Em relação aos casos genitivo e dativo, a cada um desses casos é acrescido o morfema vocálico -e, sendo a distinção realizada também por meio da maior ou menor extensão na pronúncia do morfema final da palavra. No que diz respeito ao caso acusativo, acrescenta-se ao vocábulo o morfema -m. No latim, para cada função sintática, há então um desses casos associado. Dessa maneira, uma única palavra, no caso morfológico, pode assumir/ou se declinar em seis formas (com terminações diferentes) distintas de acordo com sua função sintática na sentença. Isso lhes assegura uma relativa autonomia distribucional, pois independentemente da posição que o constituinte ocupe na oração, seu caso estará explícito.

No que diz respeito à realização do caso morfológico nos pronomes, vejamos, no quadro a seguir, as formas do latim:

Caso reto Casos oblíquos

Pessoas Nom. Voc. Gen. Dat. Abl. Ac.

Prima Ego - Mei Mihi Me Me

Secunda Tu Tu Tui Tibi Te Te

Tertia - - Sui sibi Se Se

Sese

Prima Nos - Nostrum

Nostri

Nobis Nobis Vos

Secunda Vos Vos Vestrum

Vestri

Vobis Vobis Vos

Tertia - - Sui Sibi Se Se

Sese

Quadro 2. Herança Latina. Fonte: Latim clássico. NANDÉ. Disponível em: http://auladelatim.blogspot.com.br/p/pronomes.html Acessado em 14.10.2014. Destaque nosso.

Lembremos de que, nesse paradigma, cada forma representa um caso distinto e cada caso representa uma função sintática diferente: os pronomes nominativos correspondem às funções sintáticas de sujeito ou predicativo do sujeito; os vocativos à função de vocativo; os do genitivo à função de adjunto restritivo; os dativos à função de objeto indireto; os ablativos às de agente da passiva e de outros adjuntos; e os acusativos à de objeto direto.

De um modo geral, esse quadro pronominal foi evoluindo com o passar do tempo, chegando ao PB de forma bem mais simplificada, haja vista ter ocorrido uma redução no paradigma, passando de seis para três casos. Essa redução refletiu nas gramáticas escolares e

normativas, as quais apresentam os pronomes em dois grupos sob os rótulos de pronomes pessoais do “caso reto” e os pronomes pessoais do caso “oblíquo” – “átonos ou tônicos”. O primeiro grupo abarca os casos morfológicos latinos nominativo e vocativo, ambos se realizando sob a mesma forma pronominal (pronome reto). O segundo grupo reúne, sob o rótulo de oblíquos, os outros quatro casos morfológicos: genitivo, dativo, ablativo e acusativo, dividindo-os em átonos e tônicos. Sob essa divisão, átonos dos tônicos, os primeiros são os que estamos chamando de caso acusativo e os tônicos (preposicionados) os que estamos chamando de caso oblíquo. Essa redução desses quatro casos morfológicos para os dois casos sintáticos pode ter deteriorado a relação da função sintática restrita à forma, à morfologia dos pronomes. Isso é percebido quando vemos pronomes com morfologia acusativa em função sintática de oblíquo, por exemplo.

Como já vimos, o português não chegou a dispor do caso morfológico, marcando Sintagmas Nominais. Em relação aos pronomes, observa-se que o emprego de grande parte deles já não mais se restringe, na gramática vernacular do PB, às funções sintáticas marcadas morfologicamente, cabendo à escola e às ferramentas pedagógicas tentar preservar/recuperar tais empregos pronominais. Sistematizando, a GT apresenta as formas eu, tu, ele, ela, nós, vós, eles, elas, como “retas”, formas marcadas como sujeito ou predicativo do sujeito e ressalta, ainda, que para cada um desses pronomes pessoais retos corresponde um pronome pessoal oblíquo marcado como complemento verbal que pode se apresentar em forma átona ou em forma tônica. Vejamos o seguinte quadro:

Pronomes Pessoais Retos Pronomes Pessoais Oblíquos

Número Pessoa Átonos (sem prep.) Tônicos (prep.)

Singular: 1ª Eu Me Mim

Tu Te Ti

Ele, ela Lhe, o, a, se Ele, ela, si

Plural: Nós Nos Nós

Vós Vos Vós

Eles, elas Lhes, os, as, se Eles, elas, si

Quadro 3. Pronomes na GT. Fonte: Bechara, 2009, p. 164. Destaque nosso.

Apesar de os pronomes oblíquos tônicos, herdeiros diretos do caso dativo latino, desempenharem na sentença, como orienta a GT, a função sintática de OI, esse uso tem desfrutado de ampla concorrência com outras variantes linguísticas na diacronia do PB, como

veremos com mais vagar mais adiante. Já que o caso dativo não ocorre mais apenas como OI, ele nos parece hoje mais um caso semântico com a ideia temática de “recipiente, fonte, beneficiário, possuidor, locativo, experienciador, afetado, ético”, como apontam (MORAIS; BERLINCK, 2017, p. 2). Assim, pelo fato de o pronome dativo não se limitar unicamente como responsável por marcar uma função sintática específica, a de OI, e poder aparecer em diversas outras funções, ele nos parece mais uma noção semântica a um caso sintático.

De um modo geral, considerando as formas hoje em uso com maior produtividade no PB, e analisando as formas expostas no quadro 3, constatamos que a GT apresenta um quadro engessado do paradigma pronominal, muitas vezes nem se referindo ao uso concreto da língua e suas diversas variantes linguísticas concorrentes. Sabemos que não é papel das GTs darem conta de todas as variantes possíveis para cada fenômeno linguístico identificado hoje em uso no PB, o que talvez fosse até mesmo impossível dada a dinamicidade da língua. No entanto, acreditamos que diante de alguns fenômenos linguísticos, nos quais as variantes de prestígio têm seus usos cada vez menos produtivos, como no caso da realização do pronome dativo de segunda pessoa, variantes concorrentes deveriam ser contempladas ou pelo menos apresentadas.

O caráter normativo utilizado pela GT é/tem sido de teor imperativo; isto é, norma não como aquilo que é normal, usual, mas sim como regra categórica – norma predicativa, no sentido de Faraco (2015), lei impositiva imposta aos usuários da língua e aos alunos, considerando que é essa a norma ensinada e cobrada na escola, de acordo com o que afirmam Rodolfo Ilari e Renato Basso (2011, p. 206), quando assumem que

a gramática normativa procura estabelecer como a linguagem deve ser. Ao escrever uma gramática normativa, o autor estabelece regras destinadas a orientar o comportamento linguístico de seus leitores. A palavra ‘regra’ tem, nesse caso, o sentido de ‘regulamento’, ‘instrução sobre como agir’, ‘norma de conduta linguística’.

Partindo da perspectiva de “norma” como normal, corrente, esse quadro pronominal não representaria a norma de língua em uso no PB, pois não leva em conta as formas variantes que se mostraram mais produtivas encontradas em diversos estudos, a exemplo do padrão atestado em Galves et al (2016), no tocante à representação do OI, a saber, a elipse e o lhe, pronome átono originário de terceira pessoa. Nesse sentido, apesar de ser considerada pelo próprio autor como gramática normativa e descritiva, a Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara, não descreve por meio do quadro pronominal a norma culta do PB,

preocupando-se, no entanto, em apresentar as formas prestigiadas de acordo com a norma padrão – norma idealizada, validada a partir de construções literárias de autores clássicos.

Visto esse muito breve relato da evolução do caso morfológico dativo, do latim ao português – e ao PB, vejamos, pois, outras possibilidades (variantes linguísticas concorrentes com os pronomes dativos) de representarmos a datividade (melhor definida na próxima seção) no PB, com exemplos extraídos e já apresentados neste trabalho de parte do corpus a ser analisado nesta pesquisa: cartas privadas do RN, PE e BA do século XX do corpus do PHPB:

(10) lhe mandei por | José Carambola, que ja lhe forneci | as listas (João a Thodosio de Paiva, Monte Alegre, 6-06-1917).13.

(11) Não mandei hotem as gallinhas (ᴓ) (João a Theodosio de Paiva, Monte Alegre 8-05-1917) e para remeter o dito algodão (ᴓ). (João a Theodosio de Paiva, Monte Alegre, 4-10-1918).

(12) venho | mesmo com a pobreza de minha inte- | ligencia diser-te que/ Hoje destante de ti. (Ruzinete a Lourival, Patu, 26 de-2-1946).

(13) gradeço | tudo isto a você. (Walter a Lucinha, Diadema, 21-07-1994). (14) Lucinha | liguei prá voce no dia de seu aniversario. (Walter a Lucinha,sem

local e data).

(15) Para você milhoes de beijos. (Walter a Lucinha, sem local e data). (16) desejo que esta | chegue até você e lhe encontre. (Walter a Lucinha, São

Paulo, 13-04-1994).

(17) gosto muito de você (Walter a Lucinha, São Paulo, 31-03-93).

Vejamos que, por meio desses exemplos, a gramática de nossa língua, como esperado, é bem mais rica do que prescreve e normatiza a GT. Eles representam o que estamos chamando de datividade, ambiente em que prevalece a noção semântica dativa, perpassando vários contextos linguísticos e relações gramaticais distintas. Em meio à

13 Exemplos retirados de Silva (2014), os quais compõem o conjunto de cartas do RN, disponíveis no site do

heterogeneidade que compõe nosso sistema linguístico, encontramos as variantes linguísticas que compõem a datividade com base em P2.

Tais exemplos nos mostram a expansão do emprego do dativo (OI) para outras funções sintáticas, por isso o antigo caso morfológico dativo parece-nos hoje mais uma noção semântica.

Para a presente pesquisa, fizemos um recorte metodológico, focando nossa lupa apenas nas ocorrências de formas dativas em contexto de complementação verbal indireta, seja por meio de complemento indireto (CI) “verdadeiro objeto indireto” ou por meio de complemento oblíquo (CO). Da grande empregabilidade de formas no ambiente de datividade, acreditamos que apenas nessas relações gramaticais de complementação verbal temos variantes linguísticas concorrendo em um mesmo contexto sintático. Logo, como uma das variáveis linguísticas independentes contempladas nesta pesquisa, será observado se a relação gramatical de OI ou de Oblíquo funciona como um favorecedor a pronomes dativos ou a formas concorrentes. Buscamos respaldo para a delimitação de OI ou complemento oblíquo/relativo, a partir de Morais e Berlinck, (2017), de Bechara, (2009), já apresentados, além do Dicionário Prático de Regência Verbal, de Luft, (2008).

Como vimos nos exemplos acima, além das formas pronominais da norma padrão marcadas morfologicamente com o caso dativo – a forma ti, para segunda pessoa do singular (P2), e vós, para segunda pessoa do plural (P5) – alternativas equivalentes surgem, competindo com as formas dativas prescritas. Um exemplo destas é a função sintática de OI poder ser realizada pelos pronomes acusativos, te e vos, morfologicamente acusativos OD.

Numa primeira análise em cartas do Rio Grande do Norte do século XX, como constatado em Silva (2014), o que ficou evidente foi a grande produtividade das formas variantes lhe, a variante elíptica e as variantes preposicionadas com você, como se pode observar nos exemplos, ocorrendo nas diversas funções sintáticas. Essas formas inovadoras entram no sistema, primeiro coocorrendo e depois concorrendo com as variantes ti e vós, apontados como as formas pronominais marcadas morfologicamente com a função sintática de OI, segundo as GTs, (pronomes hoje apenas associados a uma norma padrão idealizada e recuperada pela escola). Cabe a nós, como objetivo principal desta dissertação, apresentar uma análise empírica e teórica que busque sistematizar toda essa estrutura heterogênea envolvendo o emprego dos dativos e seus concorrentes na diacronia do PB, com base em

cartas nordestinas do século XX, considerando os dados de 3 estados dessa região. Tentaremos nos guiar pela questão basilar da sociolinguística variacionista posta nos Fundamentos empíricos para uma teoria da variação e mudança linguística: “se uma língua tem de ser estruturada, a fim de funcionar eficientemente, como ela funciona enquanto a estrutura muda?” (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006, [1968], p. 35).

2.3 DATIVIDADE E COMPLEMENTO INDIRETO EM PORTUGUÊS: HERDEIROS DO