• Nenhum resultado encontrado

1. APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO: Teoria da Variação e Mudança

2.3 DATIVIDADE E COMPLEMENTO INDIRETO EM PORTUGUÊS: HERDEIROS DO

2.3.1 Predicação verbal e o argumento interno indireto

Complemento verbal indireto, a nosso ver, é necessariamente argumental e predicado como argumento interno indireto de um núcleo verbal, o qual definiremos mais à frente nesta seção. Todo tema verbal, como predicador que é, seleciona (predica) de zero a três argumentos15, estabelecendo a sua configuração sintática. Essa se realiza por meio de pronomes retos ou oblíquos, sintagmas nominais e/ou sintagmas preposicionais. A predicação, de acordo com a Lógica moderna de Predicados, “desenvolvida no séc. XIX por vários filósofos e matemáticos (entre os quais Gottlob Frege e Sir Bertrand Russell)” (RAPOSO, 2013, p. 357), organiza em volta do núcleo predicador os argumentos necessários para a construção de proposições ou sentenças. Esse recurso da lógica também é conhecido como perspectiva de proposição fregeana de cena: para que uma sentença tenha seu valor de

15 Alguns linguistas e gramáticos, a exemplo de Eduardo B. Paiva Raposo, assumem haver verbos com

“enaridade maior que três” (cf. Raposo, 2013). Isto é, segundo Raposo, verbos que denotam movimento ou

transações, como atirar, levar, transferir, comprar, pagar ou vender, por exemplo, predicam 4 argumentos.

Ex.: O João levou [o carro] [do stand de vendas] [para casa].

A Isabel comprou [um livro] [ao Luís] [por vinte escudos]. (RAPOSO, 30213, p. 363 [grifo nosso]) São os sintagmas sublinhados os argumentos do predicador verbal, sendo os entre colchetes os argumentos internos.

verdade ou falsidade checada no mundo, um predicador deve ser saturado, deve predicar o número necessário de argumentos (cf. CYRINO; NUNES; PAGOTO, 2015) e (MIOTO; KATO, 2009, p. 27). Ainda, segundo Raposo (2013), sobre predicador e argumentos:

na Lógica dos Predicados e nas análises linguísticas que tomam essa teoria como modelo, um predicador é um elemento que se combina – tipicamente de forma obrigatória – com argumentos, ou seja, com expressões que lhe completam o sentido e sem as quais o predicador não poderia formar uma proposição – uma frase – semanticamente coerente e completa. (RAPOSO, 2013, p. 360)

De acordo com a predicação verbal e sua saturação, então, podemos ter verbos zero argumentais, monoargumentais16, biargumentais e triargumentais ou quaternários, como defende Eduardo Raposo. Neste trabalho, em relação à possibilidade de seleção de argumentos por um núcleo predicador, assumimos que a predicação do Português brasileiro é de até três argumentos. Vejamos a seguir a prototipicidade da predicação verbal.

Iniciando pelos zero argumentais, sua semântica se encerra no próprio verbo, não há, por isso, a necessidade de ter seu sentido complementado por argumentos. Esses verbos são conhecidos, segundo a tradição gramatical, como “verbos climáticos”. Raposo (2013, p. 363) chama-os de predicadores de “zero lugares (i.e., que não selecionam qualquer argumento), todos eles verbos que denotam fenómenos que têm a ver com o tempo ou com as partes do dia; [...] Estes predicadores são, pois, “autossuficientes”, podendo constituir, por si só, uma proposição”. Vejamos, no exemplo abaixo, que a “cena” de chuva é construída sem envolver argumentos. O verbo por si só é autossuficiente.

(18) ᴓ Chove forte em Natal.

Em relação aos monoargumentais, como o próprio nome já sugere, predicam apenas um argumento, podendo esse ser o argumento externo e desempenhar o papel de sujeito na sentença, ou o argumento interno, geralmente expressado como complemento objeto, mas que pode ser alçado à posição de sujeito da sentença. São conhecidos, por meio das GTs, como verbos intransitivos.

16 Os verbos monoargumentais, segundo a Teoria Gerativa, ainda podem ser classificados, pertinentemente,

como inergativos e inacusativos. Não discorreremos uma discussão sobre tal diferenciação por não ser necessária aos objetivos deste trabalho. O leitor pode conferir tal distinção em A Construção da Sentença, de Mary A. Kato e Milton do Nascimento (Orgs.), mais precisamente nos capítulos Complementação e Predicação, de Cyrino, Nunes e Pagotto, e Berlinck, Duarte e Oliveira, respectivamente.

(19) a) (ᴓ) chegou [a encomenda]. b) [O menino] dormiu (ᴓ).

Por sua vez, há os biargumentais, aqueles que necessitam de/predicam sobre um argumento/complemento interno para completarem seu sentido, ocorrendo de forma direta ou indireta – preposicionada, além de predicar o sujeito. Esses verbos são os mais numerosos no PB e são chamados pelas gramáticas normativas e descritivas, geralmente, por verbos transitivos, os quais podem ser diretos ou indiretos – de acordo com a natureza categorial do complemento.

(20) a) Os alunos amam [estudar]. b) Os alunos gostam [de estudar].

Já os triargumentais17 predicam um argumento externo e dois argumentos internos,

sendo que um dos argumentos internos estabelece uma relação mais direta com o predicador verbal, não necessitando de preposição e recebendo caso acusativo do verbo; enquanto que o segundo argumento interno, obrigatoriamente, necessita de um núcleo preposicional (PP) para atribuir-lhe o caso oblíquo ou manifesta-se por meio de pronomes oblíquos, geralmente ocorrem os antigos pronomes dativos. São chamados pela tradição gramatical como verbos transitivos diretos e indiretos.

(21) Os alunos enviaram flores à professora. (22) Os alunos enviaram-lhe flores.

Todos esses argumentos internos podem realizar-se por meio dos pronomes “objetos”, pronomes oblíquos átonos e tônicos, segundo a GT, respectivamente, pronomes acusativos (resquício do caso morfológico acusativo), a exemplo de me, te, o, a, vos ou nos,

17 Toda essa discussão sobre predicação verbal pode ser conferida em obras alinhadas à Teoria linguística

os, as18, e pronomes oblíquos (resquício dos casos latinos: dativo, ablativo e genitivo), a exemplo de mim, ti, ele (a), vós ou nós19 (preposicionados). Desempenhando a função de complemento indireto, temos, ainda, o pronome oblíquo átono lhe. Além desses pronomes oblíquos tônicos, representantes principalmente do caso latino morfológico dativo, os oblíquos átonos também podem desempenhar essa conotação dativa, a exemplo de me ou te, em “dê-me ou Me dê” (dê a mim) e “falei-te ou Te falei” (falei a ti), o que reforça nossa assunção sobre o Caso abstrato prevalecer diante do caso morfológico nos pronomes. A função sobressai-se sobre a forma.

Apresentada uma muito breve noção de predicação verbal e seus argumentos, ratificamos que todo OI é antes um argumento interno preposicionado ou pronominal, um complemento objeto indireto. No entanto, como assume Raposo (2013) a divisão realizada antes por Mateus et al (1983), nem todo argumento interno é um OI, também podendo manifestar-se como complemento oblíquo. A divisão de argumento interno indireto (preposicionado) em objeto indireto e em complemento oblíquo pode auxiliar-nos a analisar as regras variáveis da variável linguística aqui estudada. Isto é, será que, nas ocorrências de complementação verbal indireta em que ocorre um OI, a presença de um pronome dativo será favorecida em detrimento das ocorrências com complemento oblíquo? Quanto a este, configura-se como um favorecedor das ocorrências das variantes concorrentes?

Por conseguinte, auxilia-nos Raposo (2013, p. 368) quando assim define o complemento interno (“verdadeiro OI”),

o complemento indireto caracteriza-se por ser um sintagma preposicional cujo núcleo é a preposição a. No caso de ser um pronome, realiza-se através das formas que pertencem à série dativa – me, te, nos, vos, lhe(s), se. [...] O complemento indireto usa-se frequentemente em frases transitivas com verbos de transferência, como dar, comprar, entregar, oferecer e vender (entre outros), denotando geralmente um indivíduo a quem se destina a entidade transferida, [...] e ocasionalmente, com alguns (poucos) verbos, o indivíduo que está na origem da transferência. [grifo nosso]

Com tal distinção, poderemos verificar se os pronomes dativos de segunda pessoa ainda ocorrem em consonância com o complemento indireto, segundo a definição de Raposo;

18 No português Brasileiro, todavia, outros pronomes pessoais têm desempenhado tal papel sintático, a exemplo

dos pronomes retos. Ex.: “Encontrei ela no cinema”.

19 No português Brasileiro, todavia, outros pronomes pessoais têm desempenhado tal papel sintático, a exemplo

além de analisarmos se tais pronomes também ocorrem correlacionados aos complementos oblíquos, abaixo definidos.

os complementos oblíquos definem-se pela negativa, como sendo aqueles que não são nem diretos nem indiretos. Tipicamente, são sintagmas preposicionais; quando são pronomes, realizam-se através das formas que pertencem à série oblíqua – mim, ti, nós, vós, ele(s), ela(s), si as quais seguem a preposição. (RAPOSO, 2013, p. 368)

Essa definição de complemento oblíquo realizada por Raposo coincide com a de complemento relativo, realizada pelo gramático Evanildo Bechara (2009), em sua Moderna Gramática Portuguesa, “os argumentos dos verbos ditos locativos, situativos e direcionais”.

Recorrendo a Torres Morais e Berlinck (2017), observamos que as autoras também delimitam o OI de acordo com propriedades comuns ao “português histórico” e ao Português Europeu (PE), segundo elas, de acordo com os critérios morfológico, semântico e sintático (distribucional),

na descrição do objeto indireto (OI) é fundamental reconhecer uma propriedade marcante que o identifica morfologicamente, nos seguintes termos:

(i) O OI é sintaticamente um Sintagma Determinante (DP) introduzido pela preposição a, um marcador de Caso dativo;

(ii) Em sua expressão anafórica, o OI é lexicalizado pelos pronomes clíticos dativos, lhe(s), na referência de 3ª pessoa, sendo esta a única forma de pronome clítico distinta dos pronomes de função acusativa, os clíticos o(s), a(s).

No entanto não só o critério morfológico identifica o OI. Propriedades de natureza sintática e semântica mostram que é possível identificá-lo num amplo conjunto de contextos verbais, os quais englobam verbos transitivos dinâmicos (1-3) e estativos (4); verbos inacusativos (5-7), causativos, (8) incoativos (9) e inergativos (10). Nestes contextos pode ser interpretado como recipiente, fonte, beneficiário, possuidor, locativo, experienciador, afetado, ético. (MORAIS; BERLINCK, 2017, p. 2)

Vejamos que enquanto Raposo delimita a ocorrência de complemento indireto a verbos de transferência, Morais e Berlinck delimita-o por meio de um “amplo conjunto de contextos verbais”, incluindo até mesmo verbos monoargumentais (inacusativos e inergativos), os quais não predicam argumento interno preposicionado em sua grade temática, prototipicamente. Em seus exemplos de sentenças, o uso das possíveis formas em contexto de dativo não coincidem com o OI (aqui assumido como necessariamente argumental), o que reforça nossa assunção sobre o caso dativo, ou datividade, no PB. São exemplos desse uso:

a) verbos inacusativos de mudança ou movimento

Chegou um aviso aos professores/chegou-lhes um aviso (recipiente/locativo).

b) verbos inergativos (ético)

O filho correu-lhe na rua movimentada.

(MORAIS e BERLINCK, 2017, p. 3)

No decorrer do texto, essas autoras posicionam-se alinhadas ao que prescreve Evanildo Bechara (2009) sobre o OI: “O teste de substituição por lhe permite igualmente distinguir entre OI e PP [...]” (MORAIS; BERLINCK, 2017, p. 3), sendo OI o DP comutável por lhe. Berlinck e Morais, mais a frente, chamam de “complementos oblíquos” (termo idêntico utilizado por Raposo (2013)) as construções sintáticas com as mesmas características que Bechara (2009) chamou de Complemento relativo:

observe-se que os complementos oblíquos podem ser pronominalizados pelas formas tônicas ele/s, ela/s, introduzidas pelas respectivas preposições (12a-f). Igualmente, verbos como chegar, ir, vir, viver, morar, selecionam oblíquos que podem ser comutados por advérbios de lugar. (MORAIS e BERLINCK, 2017, p. 5)

Chama-nos a atenção o fato de as autoras apresentarem exemplos de OI com verbos inacusativos e inergativos, devido ao fato de os sintagmas nominais serem permutáveis por lhe. A nosso ver, OI e dativo foram tratados como sinônimos, fato que não leva em conta o caráter argumental de um OI, segundo a Teoria X-barra, do gerativismo. Se a configuração temática dos inacusativos, de acordo com a Teoria X-Barra, é predicar apenas um argumento interno não preposicionado, o qual pela ausência de um argumento externo pode ser movido à função sintática de sujeito no Espec de IP, local em que recebe o Caso nominativo do núcleo de IP, como é que ele predica um segundo argumento interno (preposicionado), o OI? Os inergativos, de forma semelhante, predicam apenas um argumento, o externo, verbos que são chamados na tradição gramatical de verbos intransitivos. Como um verbo intransitivo predica um OI? Logo, a nosso ver, em ambos os casos, o que ocorre é a relação de adjunção e os pronomes que podem ocorrer nessas construções são os dativos não argumentais, os quais não são OI (apesar de se realizarem sob a forma pronominal do OI), mas sim dativos livres, como assim os veem Concepción Company e Bechara.

Sistematizando, tanto Raposo, Morais e Berlinck quanto Bechara convergem em alguns critérios para delimitar o OI expressado por DP, sendo eles a inserção pela preposição a (preposição marcadora de dativo – segundo eles) e a possibilidade de permuta desses complementos pelos “verdadeiros” pronomes dativos lhe/lhes (para a 3ª pessoa), segundo Morais e Berlinck e Bechara; e permutável pelos átonos me, te, nos, vos, lhe(s), segundo Raposo. Fica claro que para esses quatro autores o dativo realiza-se em contexto de OI, apesar de admitirem a existência de dativos livres ou supérfluos.

Assumimos nesta dissertação, no entanto, que o argumento/complemento interno preposicionado é um termo linguístico predicado (selecionado), por um verbo, quais sejam OI ou complemento oblíquo (distinção não realizada pela Nomenclatura Gramatical Brasileira – NGB (1958), a qual uniformiza com “objeto indireto”, apenas). Isto é, ambos são termos exigidos pela significação verbal, e por isso indispensável à proposição da cena fregeana, sem os quais seria impossível a gramaticalidade de uma sentença, a depender de seu cotexto e/ou contexto de uso. Como tanto a preposição a quanto a preposição para no PB podem nuclear o argumento interno, tomaremos esses dois argumentos [a+ DP e para +DP] como integrantes do ambiente de datividade. Todavia, faremos a distinção desses argumentos, em nossa análise, investigando se os contextos em que são empregados os verbos que predicam o “verdadeiro” OI favorecem a ocorrência dos pronomes dativos. Da mesma forma, observaremos se os contextos em que são empregados os verbos que predicam complementos oblíquos/relativos (CO) atuam como restringidores (desfavorecedores) dos pronomes resquícios do dativo, como se infere a partir da divisão realizada por esses autores.