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1. APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO: Teoria da Variação e Mudança

3.2 AS VARIANTES LINGUÍSTICAS CONCORRENTES

Coletados os dados, o passo seguinte é:

[...] em primeiro lugar, apresente, defina e caracterize detalhadamente cada uma dessas concorrentes. É somente a partir do perfil individual das variantes que você poderá explorar as armas de que cada uma dispõe, bem como avaliar os contextos mais favoráveis à derrota de uma e à vitória de outra. (TARALLO, 2011 [2007], p. 33).

Assim, devemos conduzir uma minuciosa análise qualitativa, detalhando a variável linguística e suas variantes concorrentes. Nesse ponto, contemplando o exemplo citado acima da batalha entre as formas te/ti/lhe/elipse/vos e você preposicionado com a/para/prá/de/em, além de outras formas possíveis, a exemplo do pronome tu preposicionado, investigamos as formas dativas de segunda pessoa singular (P2).

Em relação à variável linguística aqui pesquisada, faz-se imprescindível um extenso corpus, uma vez tratar-se de um contexto que envolve interlocução direta entre um informante

e um receptor destinatário, beneficiário, tema. Isto é, interessa-nos as ocorrências das formas possíveis no emprego de segunda pessoal no singular, envolvendo complemento verbal indireto, seja CI ou CO.

Apenas após a qualificação das variantes, é que podemos quantificá-las para, por meio de percentuais (%) e peso relativo (PR.), observar se as projeções estabelecidas indicam ou apontam a probabilidade de as variantes linguísticas estarem em processo de mudança ou em variação estável. Trata-se de um verdadeiro levantamento estatístico dos dados coletados.

Como já dito, as varintes linguísticas concorrentes na função dativa de segunda pessoa do singular e do plural no PB são os pronomes “acusativo/dativo” TE, TI, LHE, VOS, VÓS, a elipse (ᴓ) e os pronomes “fortes” VOCÊ e TU precedidos pelas preposições A/PARA/PRA/DE/EM, para o singular. Vejamo-las por meio de recortes retirados do corpus.

• TE: pronome oblíquo átono de segunda pessoa do singular, segundo a GT, e herdeiro do caso latino acusativo pronominal, como apresentado no quadro 2. Segundo Raposo (2013, p. 368), “pertence à série dativa”, equivalendo ao verdadeiro OI, um complemento indireto. Esse pronome pode desempenhar as funções sintáticas de objeto direto e de objeto indireto, ocasião esta em que assume função dativa na complementação verbal.

(1) ainda não tenho uma resposta pra | te dizer. (Walter a Lucinha, São Paulo 18.10.91).

(2) eu | ate poderia dizer-te que | estou bem. (Walter a Lucinha, São Paulo, 03-10-92).

• TI: pronome oblíquo tônico de segunda pessoa do singular, segundo a GT, e herdeiro do caso latino dativo, como apresentado no quadro 2. Segundo Raposo (2013, p. 368), pertence à série oblíqua, não se tratando de OD ou de OI, mas sim de complemento oblíquo. Interessante essa distinção, haja vista que a forma morfológica dativa herdada do latim (responsável por representar o OI), como visto no quadro 2, é o pronome Tibi, o qual nos chegou com a morfologia pronominal TI. No entanto, herança e prescrição nem sempre caminham juntas.

(3) este que é capaz de dar a vida [fol. 1 r] | por ti caso fosse preciso. (Walter a Lucinha, São Paulo, 08-12-1992).

(4) já estou com tanta| saudade de ti. (Ruzinete a Lourival, Patu, 1-6- 1947).

• LHE: pronome oblíquo átono de terceira pessoa do singular. Esse pronome, segundo a GT, é o pronome correspondente ao OI de terceira pessoa. No entanto, ele já compõe o paradigma de segunda pessoa do VOCÊ como afirmam Galves et al (2016, p. 129), “o clítico dativo original de você – a forma lhe”.

(5) || Lucinha, não mee sinto | pequeno demais ou muito infe- | rior ao lhe dizer do grande | amor e admiração que sinto por | voce. (Walter a Lucinha, São Paulo, 22-05-93).

(6) também não creio es- | tar pedindo-lhe nada demais. (Walter a Lucinha, São Paulo, 22-05-93).

• Elipse (ᴓ). Recurso de retomada anafórica ou dêitica (recuperada na interlocução – emissor/receptor – nas cartas), marcada pela supressão do referente de segunda pessoa (podendo ocorrer referindo-se tanto com a segunda pessoa do singular quanto com a do plural).

(7) Lucinha, peço (ᴓ) que se possível | mim ligue domingo. (Walter a Lucinha, São Paulo, 20-11-92).

(8) |Mando tambem separata do | seu prefacio “Morão – Rosa - Pi- |menta”. Na 4ª feira, enviarei | - conforme promessa da Imprensa Oficial – exemplares de “Companhia |de operários” do G. Auler. (João Emerenciano a Gilberto Freyre, Pernambuco, 1959).

• VOCÊ: pronome de segunda pessoa do singular. Essa forma entra no quadro pronominal no paradigma de segunda pessoa do singular e plural (VOCÊS), como um pronome forte, um pronome reto. No entanto, ele passa a ocorrer com grande produtividade em outras funções sintáticas, a exemplo de OI,

CO, adjunto adverbial, em todo o ambiente de datividade, como atestam Galves et al (2016).

(9) um homem que con | tinha muito apaixonado por | você (Walter a Lucinha, São Paulo, 22-05-93).

(10) Lucinha, na minha solidão | no mundo dos pensamentos, todos vol- | tados a você. (Walter a Lucinha, São Paulo, 22-05-93).

(11) Gosto muito de você. (Walter a Lucinha, São Paulo, 22-05-93). (12) Meu amor mil felicidades | pra você e que acredite no | amor que sinto

por você. (Walter a Lucinha, São Paulo, 08-12-92).

(13) eu estou morrendo | de saudades de você, lembro todo dia | em você principalmente na hora | em que estou fazendo amor. (Lourival a Ruzinete, Belém, 24-01-1965).

• TU: pronome reto de segunda pessoa do singular. Segundo a GT, este pronome deve ser empregado apenas nas funções de sujeito gramatical e predicativo do sujeito. Também é chamado de pronome nominal ou pronome forte. No entanto, passa a ocorrer como mais uma alternativa dativa.

(14) o passado nêgro não quero ja | mais, apelo para tu, para o | futuro para que o meu sonho | sêja realizado. (Lourival a Ruzinete, Mumbaça, 17-02-1946).

• VOS: pronome oblíquo átono de segunda pessoa do plural, segundo a GT, herdeiro do caso latino acusativo pronominal, como apresentado no quadro 2. Segundo Raposo (2013, p. 368), “pertence à série dativa”, equivalendo ao verdadeiro OI, um complemento indireto. Esse pronome pode desempenhar as funções sintáticas de objeto direto e de objeto indireto, ocasião esta em que assume função dativa na complementação verbal. Nos dados encontrados no corpus analisado, ocorre como P2, como exemplificado abaixo.

(15) Com os mais attenciosos cumprime-|ntos vos apresento o XI volume dos “Archi-|vos do Museu (Alipio de Miranda Ribeiro ao

Excelentissimo Sr. Governador do Estado da Bahia , Feira de Santana, 17-12-1901).

(16) Esta, Excelentissimo Senhor, tem por fim pedir-vos| encarecidamente que acceitais a minha| cooperação em prol da candidatura do| Dr. Rodriguez Alves (Anna Autran ao Ilustríssimo e Excelentissimo Senhor Dr. Severino Vieira , Rio de Janeiro, 05-10-1901).

• VÓS: Pronome oblíquo de segunda pessoa do plural. Esse pronome ocorre preposicionado na função de complemento indireto. Alguns gramáticos, a exemplo de Raposo (2013), chamam-no de complemento oblíquo, distinguindo-o do OI. Interessante essa distinção, haja vista que a forma morfológica dativa herdada do latim, como visto no quadro 2, é o pronome Vobis, o qual nos chegou VÓS.

(17) Entregarei a encomenda a vós, logo que chegue. (exemplo criado para este trabalho).

(18) Dizei a vós o que se passou na reunião. (exemplo criado para este trabalho).

3.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS DO CAPÍTULO

Neste capítulo, conduzimos uma apresentação detalhada, mas não exaustiva da composição do corpus. Reunimos 248 (duzentos e quarenta e oito) correspondências disponíveis no site do PHPB, dos Estados do RN, do PE e da BA. O quantitativo disponível de cada Estado é diferente. Assim, para manter o equilíbrio quantitativo, com base no número de palavras redigidas, entre os três Estados, selecionamos todas as 144 cartas norte-rio- grandenses disponíveis, todas as 36 cartas pernambucanas disponíveis e apenas 78 do número total disponível do Estado bahiano. Apesar da divisão metodológica em grupos, a nálise deu- se de forma integrada, apresentando-se um padrão genérico do Nordeste do Brasil, atestado por meio dos 3 estados representantes.

Além do corpus, qualificamos todas as varintes linguísticas concorrentes na função dativa de segunda pessoa do singular e do plural no PB: os pronomes “acusativo/dativo” TE,

TI, LHE, a elipse (ᴓ) e os pronomes “fortes” VOCÊ e TU precedidos pelas preposições A/PARA/PRA/DE/EM, para o singular.

No próximo capítulo, fazemos a análise dos 610 (seiscentos e dez) dados encontrados nas cartas que estão em contexto gramatical de complementação verbal indireta, levando em conta na análise algumas variáveis independentes linguísticas e sociais, submetendo-as ao GoldVarb 2001, como parte da metodologia variacionista empregada na pesquisa.

Capítulo 4

DATIVIDADE NA ESCRITA NORDESTINA: analisando os dados

4.0 PALAVRAS INICIAIS

Apresentadas as bases teóricas que fundamentam a presente pesquisa e delimitado o objeto, podemos, de fato, analisar os dados encontrados nas missivas, buscando responder as perguntas elencadas como norteadoras deste estudo, abaixo recuperadas.

1. Na diacronia do Português escrito no Brasil do século XX (a partir de cartas de 3 Estados do NE), são produtivas ainda, de fato, formas pronominais de P2 e P5 com caso morfológico, no que se refere às formas dativas de segunda pessoa; ou, dito de outro modo, qual a produtividade das formas pronominais dativas com caso morfológico te/ti e vos/vós?

2. Qual o percurso diacrônico seguido pelas formas dativas de 2ª pessoa no português escrito no NE do Brasil do século XX? Como se dá tal transição? 3. A análise dessa variável linguística apontará para mudança em curso ou para

variação estável ao longo do século XX?

4. As ocorrências do lhe podem estar associadas à hierarquia social, semelhante ao uso do tu/você na sincronia do PB falado no Brasil?

5. A relação gramatical de complemento indireto (CI), “verdadeiro objeto indireto”, ou de complementação oblíqua (CO) ocorre como fator (contexto) de resistência dos pronomes dativos de tu P2 ou como favorecedor da variante preposicionada preposição + você, no NE brasileiro?

Buscando responder esses questionamentos, os contextos linguísticos e as categorias de análise foram teorizados e interpretados de acordo com a Teoria formal dos P&P; assim como, as variáveis independentes linguísticas e sociais foram levadas em conta de acordo com

a TVM. Estamos em consonância, portanto, com Martins, Coelho e Cavalcante (2015, p.307), quando afirmam que

nossa perspectiva de análise leva, portanto, em conta resultados estatísticos de alguns trabalhos empíricos mediados por uma interpretação teórica e se justifica por dois pontos de vista: (i) o estudo de uma teoria formal servirá para levantar hipóteses internas sobre os fenômenos em variação sintática e interpretá-los; (ii) a discussão sobre a variação dos fenômenos linguísticos escolhidos poderá mostrar resultados estatísticos capazes de atestar as hipóteses teóricas levantadas ou de predizer novas hipóteses a partir das propriedades sintáticas atestadas nas análises empíricas.

Neste capítulo, conduzimos nossa análise, investigando se no Português Brasileiro nordestino, ainda há, de fato, caso morfológico, no que se refere às formas dativas de segunda pessoa; ou, dito de outro modo, qual a produtividade das formas pronominais dativas com caso morfológico te/ti e vos/vós. Além disso, interessa-nos saber qual o percurso diacrônico seguido pelas formas dativas de 2ª pessoa no português escrito no Nordeste brasileiro do século XX e como se deu a entrada da concorrente preposição + você na relação sintática de OI, investigando se as relações gramaticais de CI ou de CO exercem algum condicionamento sobre as variantes linguísticas concorrentes.

Acreditamos que a análise dessa variável linguística apontará para mudança em curso, com as formas pronominais dativas do paradigma do pronome tu cedendo lugar à variante concorrente inovadora você preposicionada.

Para checar essa hipótese, investigamos 10 (dez) variáveis independentes, linguísticas e sociais. Levamos em conta a forma variante linguística concorrente realizada (te/ti/vos/vós, pronome lhe, elipse (ᴓ), você/tu preposicionados); o tipo do complemento verbal (complemento indireto (CI) ou complemento oblíquo (CO)); a forma de tratamento na posição de sujeito (uso exclusivo de tu, uso exclusivo de você, ou uso misto); o item lexical; o tipo de preposição (a/para/de/em); a relação social entre escrevente e destinatário das cartas; o sexo do escrevente; o conteúdo temático das cartas; a localidade (RN/PE ou BA); e a periodização (tempo I, tempo II e tempo III).

Mantivemos o cuidado, ainda, de observar se “fórmulas fixas”, frases cristalizadas no gênero carta, exerceram alguma influência na realziação da variante preposição + você, como ressaltado por Lopes (2011, p. 365),

em um estudo feito com base nas cartas da família de Cupertino produzidas entre 1870 e 1890 no Rio de Janeiro, Lopes (2009) verificou que dos raros dados de você localizados nas missivas repletas de tu como sujeito nulo, a maior parte estava presente em fórmulas fixas para captação de benevolência típicas do modelo de escrita do gênero carta (“Desejo que.../Estimara que...eu vou passando bem/continuando a passar bem”) [grifo do autor] (LOPES, 2011, p. 365).

De fato, constatamos, no corpus aqui analisado, que essas partes da carta favorecem o emprego do pronome você preposicionado. No entanto, nesta pesquisa, a maioria das ocorrências que se encaixam nessas fórmulas da carta privada já haviam sido desprezadas, por não ocorrerem na relação gramatical de complementação verbal indireta. Ocorrem como exemplificado abaixo, quase sempre na primeira linha ou entre as duas últimas. Em muitas correspondências, estas frases cristalizadas ocorrem na abertura e no fechamento da missiva, a exemplo de, (3) e (4), ocorridos na mesma carta, (3) no início e (4) ao final.

(1) Meu amor trilhões de bei | jos infinito prá você20. (Walter a Lucinha,

São Paulo, 01-12-93).

(2) || Lembranças, Ozilene, Zilmar e Boboze | e prá você todos os beijos possíveis. (Walter a Lucinha, São Paulo, 08-12-93).

(3) Meu amor trilhões de beijos | prá você. (Walter a Lucinha, São Paulo, 20- 11-92).

(4) Milhões de beijos prá | você meu amôr. (Walter a Lucinha, São Paulo, 20-11-92).

Uma vez realizada a análise dos dados nordestinos, fiemos um comparativo com resultados encontrados em pesquisas que levaram em conta cartas privadas de 2 (duas) outras localidades do Brasil, representantes de outras regiões do país, a exemplo de Rio de Janeiro (RJ) (representante do Sudeste brasileiro) e de Santa Catarina (SC) (representante do Sul do Brasil). Esses comparativos serão apresentados ao longo da pesquisa de acordo com seu grau de relevância.

20 Ressaltamos que estes exemplos acima (de (1) a (4)) são meramente ilustrativos, haja vista que construções

como essas foram descartadas por não ocorrerem em relação gramatical de complementação verbal indireta e, ainda, por se configurarem como fórmulas fixas (cristalizadas) próprias do gênero carta.