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NORMA E VALOR

No documento In dubio pro contribuinte (páginas 48-52)

Os valores estão totalmente relacionados ao direito e esta relação deve ser bem compreendida sob pena de gerar inúmeros problemas no estudo deste66. Os valores são os anseios da sociedade, representam as vontades, os princípios, do ser humano. Eles estão, portanto, claramente ligados à sua ideologia. Os valores de um ser humano refletem as idéias que este tem do mundo, pois valor está vinculado àquilo que é bom para o sujeito. Segundo Alexy, “os conceitos axiológicos são caracterizados pelo fato de que seu conceito básico não é o de dever ou de dever-ser, mas o conceito de bom.”67

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“Também isso seria, evidentemente possível; em última análise, cada Ordem Jurídica se baseia em alguns valores superiores, cuja proteção ela serve” (CANARIS, Claus-Wilhelm.

Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. 3 ed. Trad. de A.

Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 86).

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Alexy continua explicando que “a diversidade de conceitos axiológicos decorre da diversidade de critérios por meio dos quais algo pode ser qualificado como bom. Assim, conceito axiológicos são utilizados quando algo é classificado como bonito, corajoso, seguro,

Miguel Reale é um dos grandes estudiosos dos valores e da sua relação com o direito. Ele afirma que “cada homem é guiado em sua existência pelo primado de determinado valor, pela supremacia de um foco de estimativa que dá sentido à sua concepção da vida”68. Para uma maior correspondência da assertiva com a realidade, parece-nos melhor afirmar que cada homem é guiado por certos valores, e não somente por um determinado. Cada indivíduo prima por um conjunto de valores, os quais vão se sobrepondo em suas relações intersubjetivas.

O direito, como regulador de condutas humanas, estará revelando valores de diferentes formas. Do mesmo modo que o homem sopesa valores durante as suas tomadas de posição no seu dia a dia, o operador do direito sopesa valores quando realiza as suas tomadas de posição pela aplicação de uma ou outra norma, tendo em vista que qualquer decisão acerca de fatos da realidade envolverá necessariamente uma valoração em torno das possibilidades.

A teoria tridimensional, de Miguel Reale, nos parece ser, inicialmente, interessante para a compreensão do direito, pois revela os seus principais aspectos, não priorizando, nem esquecendo, nenhum deles69. O direito é entendido como um sistema de normas jurídicas, porém estas são construídas a partir dos textos normativos e dos fatos jurídicos, de modo que, como visto, os fatos servem de matéria-prima para a norma. Os valores, por outro lado, são as razões justificantes das normas jurídicas70. Elas existem para realizar algum valor no plano fático. É inegável, portanto, que o direito lida, a todo o tempo, com normas, fatos e valores. Mas não existiriam outros fatores determinantes do direito? Basta observá-lo em três dimensões? Veremos isto em seguida.

Miguel Reale foi apenas um dos diversos autores a estabelecerem uma teoria tridimensional econômico, democrático, social, liberal, ou compatível com o Estado de Direito” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 145).

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REALE, Miguel. Filosofia do direito. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 37.

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“Esta discriminação assinala, todavia, apenas um predomínio ou prevalência de sentido, e não toma uma tripartição rígida e hermética de campos de pesquisa. A norma, por exemplo, representa para o jurista uma integração de fatos segundo valores, ou, por outras palavras, é expressão de valores que vão se concretizando na condicionalidade dos fatos histórico-

sociais” (REALE, Miguel. Op. cit., p. 510). 70

“Um fim outra coisa não é senão um valor posto e reconhecido como motivo de conduta. Quando reputamos algo valioso e nos orientamos em seu sentido, o valioso apresenta-se como fim que determina como deve ser o nosso comportamento. Não existe possibilidade de qualquer fenômeno jurídico sem que se manifeste este elemento de natureza axiológica, conversível em elemento teleológico” (REALE, Miguel. Filosofia do direito. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 544).

do direito. Em todo o mundo, inúmeros autores defenderam que o melhor modo de conhecer o direito seria o tridimensional. Variavam apenas alguns aspectos dessas teorias. Por exemplo, alguns autores não viam os três elementos como uma só estrutura, o que ficou chamado de tridimensionalismo genérico. O específico foi aquele cunhado por Miguel Reale, que vê fato, valor e norma como elementos de uma mesma estrutura71.

A doutrina72 sustenta que Miguel Reale73 começou a construção dessa teoria ainda na década de 1950, mesmo período em que surgiu o trabalho de Carlos Cossio acima comentado, o qual mantém conexão com a teoria de Reale em diversos pontos74. No próximo capítulo, veremos que a argumentação jurídica também floresceu na Europa durante essa época, nos levando a crer que foi aí que se iniciou com maior clareza a ruptura dos modelos anteriores e que as novas concepções terminam por se complementar muitas vezes, fazendo parte de um mesmo movimento pós-positivista.

A maior parte da doutrina, atualmente, parece aceitar a influência dos valores sobre o direito, apesar de reconhecer que eles não se encontram inseridos originariamente no plano jurídico, chamado de deontológico. Os valores estão em um plano axiológico, das valorações. Eles “ingressam” no ordenamento jurídico por meio das categorias normativas, que têm finalidades perante as relações intersubjetivas75. O direito existe para reger estas relações, para solucionar

71 Sobre as diversas teorias tridimensionalistas, ver ADEODATO, João Maurício. Ética & retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 315-319. 72 “O fato é que o pensamento original do Prof. Miguel Reale, que foi elaborado na década de

1950, permanece irretocável e continua a ser uma excelente chave para a compreensão do fenômeno jurídico, daí a pertinência do seu estudo e, inclusive, dessa publicação” (CELLA, José Renato Gaziero. Teoria tridimensional do direito de Miguel Reale. Curitiba: Juruá, 2006, p. 12).

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O próprio Reale afirma que já estudava o assunto e escreveu sobre o mesmo no ano de 1940. “Essa forma de compreensão da matéria veio se constituindo, a partir de 1940, coincidindo, nesse ponto, as contribuições de Sauer com as nossas, muito embora obedecendo a pressupostos metodológicos autônomos e distintos. Consoante se verá, nossa teoria culminará na precisa determinação da tridimensionalidade como sendo uma das notas essenciais e características da experiência jurídica, ponto de vista este depois compartilhado por Luis Recaséns Siches” (REALE, Miguel. Op. cit., p. 513).

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Cossio firmou também uma teoria tridimensional, porém de modo mais implícito, como bem destaca João Maurício Adeodato. “Carlos Cossio apresenta uma tridimensionalidade implícita ao situar o conhecimento do direito como um conceito (norma) a incidir sobre um fato eivado de valorações” (ADEODATO, João Maurício. Op. cit., p. 317).

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“Na verdade, a passagem do valor para o princípio é extraordinariamente fluida; poder-se-ia dizer, quando se quisesse introduzir uma diferenciação de algum modo praticável, que o princípio está já num grau de concretização maior do que o valor: ao contrário deste, ele já compreende a bipartição, característica da proposição de Direito em previsão e conseqüência jurídica” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na

conflitos etc. As normas jurídicas existem para realizar objetivos da sociedade, que estão vinculados aos seus valores. Assim entende uma boa parte da doutrina alemã e da doutrina anglo-americana, esta que costuma utilizar a expressão “razões justificantes” para representar os valores que fundamentam a existência de uma norma jurídica.

A importância dos valores é tanta que muitos autores falam que vivemos uma fase da jurisprudência dos valores76. No Brasil, Paulo Bonavides é um dos que destacam a importância de compreender que o direito tem o objetivo de realizar ao máximo determinados valores em voga na sociedade77. A interpretação do direito, que significa construção, tem nos valores um ponto crucial, pois eles determinam a medida de conteúdo desta construção. Se a norma que se pretende construir realiza um valor importante para a sociedade, consequentemente ela terá maior força, o seu conteúdo será estendido.

A partir dessas premissas, caem por terra alguns mitos. Os valores não estão dentro do ordenamento jurídico, como se representassem uma categoria a mais, ao lado das regras e dos princípios. Os valores estão em um plano distinto do ontológico (mundo do ser) e do deontológico (dever ser). Eles estão no plano axiológico (do querer ser).

Os valores não estão apenas representados pelos princípios, mas também pelas regras. Aliás, as regras “carregam” valores tanto quanto os princípios. Pelo fato de estes possuírem função distinta daquela das regras78, funcionando como diretrizes do sistema e por terem a característica de serem menos descritivos, eles transferem uma sensação de maior carga

Ciência do Direito. 3 ed. Trad. de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2002, p. 86).

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Canaris é um dos autores mais festejados no que diz respeito ao estudo dos valores. Ele defende que os ordenamentos jurídicos devem ser compreendidos como sistemas axiológicos, criticando os conceitos de sistema elaborados anteriormente. Para o professor alemão, vivemos atualmente uma fase de jurisprudência dos valores, restando ultrapassadas outras como a da jurisprudência dos conceitos e da jurisprudência dos interesses. “Sendo o ordenamento, de acordo com a sua derivação a partir da regra da justiça, de natureza valorativa, assim também o sistema a ele correspondente só pode ser uma ordenação axiológica ou teleológica – na qual, aqui, teleológico não é utilizado no sentido estrito da pura conexão de meios aos fins, mas sim no sentido mais lato de cada realização de escopos e de valores, portanto no sentido no qual a <<jurisprudência das valorações>>, é equiparada à jurisprudência <<teleológica>>” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit., p. 66-67).

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“A importância jurídico-constitucional do valor assume na época contemporânea uma latitude de normatividade sem precedentes desde que os princípios foram colocados no topo da hierarquia constitucional” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 630).

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Vide ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 7. ed. ampl. atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 78-91.

valorativa, o que é um mito antigo da Ciência do Direito.

O legislador, aquele que cria os textos legais, o faz tendo em vista os seus próprios valores, em função das ideologias que segue. O que se tem por ideal em um regime democrático é a criação de textos que reflitam os valores prevalecentes na sociedade, o que se sabe que dificilmente ocorre por inúmeras questões políticas, econômicas, sociais etc. Muitas vezes, os textos são criados tendo em vista interesses de uma minoria favorecida que faz lobby e pressiona o legislador.

O operador do direito, aquele que constrói sentidos a partir de textos e fatos e que aplica as normas jurídicas a estes, o faz tendo em vista os seus próprios valores, em função das ideologias que o tomam. A influência dos valores sobre as decisões do operador do direito não é necessariamente má. Intencionalmente ou não, aquele que interpreta o direito o faz influenciado pelos seus valores próprios. Aqui recai a subjetividade do sujeito na construção das normas jurídicas, que é algo inevitável, mas controlável até certo ponto, como se verá. Nenhum texto jurídico deve existir sem função. Esta estará sempre, invariavelmente, interligada à realização de algum valor. Cada texto legal, que servirá de suporte à construção da norma, tem um escopo de conferir segurança, ordem, liberdade, igualdade, de realizar algo que é buscado pela sociedade. Surgem, então, grandes questões do direito: até que ponto o legislador emprega nos textos os valores buscados pela maioria da sociedade? Quais seriam os valores buscados pela maioria? Como o operador do direito saberá se está a realizar os valores buscados pela maioria? Como controlar a subjetividade do operador do direito, para que ele não aplique normas que lhe satisfaçam, mas as que satisfariam a sociedade?

Estas são apenas algumas das clássicas questões que atormentam o estudioso do direito. Para responder cada uma delas, é possível escrever um verdadeiro tratado. Iremos, no próximo capítulo, nos ater à última delas. Entendemos que a argumentação jurídica oferece interessantes técnicas para uma tentativa de controle da subjetividade do operador do direito, sendo o que há de mais avançado até hoje para a realização deste fim.

No documento In dubio pro contribuinte (páginas 48-52)