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O ônus argumentativo

No documento In dubio pro contribuinte (páginas 185-188)

5 AS FUNÇÕES EFICACIAIS DO IN DUBIO PRO CONTRIBUINTE

5.3 A FUNÇÃO EFICACIAL ARGUMENTATIVA

5.3.1 O ônus argumentativo

No segundo capítulo, foi estudada a argumentação jurídica. Dentre outras lições que podemos dela tirar existe a de que, para se tomar determinada decisão no direito, é preciso justificá-la empregando argumentos. Seja o julgador de um processo administrativo, seja o de um processo judicial, seja o estudioso do direito, os argumentos levam à sua tomada de decisão e, após esta, é preciso que aqueles sejam externados, para que a justifiquem. Os argumentos têm, portanto, importantes e diferentes funções dentro do direito.

O que se chama de ônus argumentativo é exatamente essa necessidade de justificar, por argumentação, a decisão. Sem fundamentação suficiente, sem argumentação, a decisão perde a sua base, tornando-se inconstitucional. Do enunciado do art. 93, inc. IX, da CF/88, é possível construir a regra que determina que toda decisão deve ser fundamentada. Trata-se de regra constitucional de extrema importância, pois garante direitos fundamentais, como a ampla defesa e o contraditório. Aqueles que realizam decisões jurídicas devem, portanto, justificá-las, o que leva à conclusão de que todas estas decisões geram um ônus argumentativo.

O estudo da argumentação, que abarca o estudo do ônus argumentativo, é crucial para compreender todo o direito. Nos casos mais difíceis, nos quais há argumentos aceitáveis a

priori para se decidir de dois ou mais modos distintos, o julgador deverá analisar quais

aqueles dotados de maior peso, decidindo por uma das possibilidades admissíveis segundo os critérios fornecidos pelo próprio sistema jurídico. Ele não poderá ter certeza de que a sua decisão é a mais correta, contudo ela deve, ao menos, respeitar a procedimentos e critérios pré-estabelecidos.

Há situações em que o ônus argumentativo pode ser maior ou menor, e o que determina isso é o próprio sistema jurídico. Se a decisão é mais facilmente justificável pelas normas do sistema, o ônus argumentativo é menor; porém, se, por exemplo, a decisão envolve a

limitação de princípios constitucionais, cresce o ônus argumentativo. Pela importância dos princípios e dos direitos fundamentais, em regra o ônus argumentativo para limitá-los é maior do que o normal. A este efeito causado na argumentação pelos princípios, a doutrina tem chamado de função eficacial argumentativa321. A depender do peso dos valores que dão razão à norma, a sua limitação requererá uma argumentação muito mais robusta, daí se falar em um aumento do ônus argumentativo.

Em duas obras distintas, Robert Alexy demonstra a possibilidade de, em certas situações, a força aumentativa recair a priori em favor de determinada norma, o que impõe uma argumentação mais robusta para que outra seja aplicada. Ele afirma que o ônus argumentativo, necessário para que seja legitimada qualquer decisão jurídica, cresce nesses casos. Na “Teoria da argumentação jurídica” ele afirma que a força dos argumentos deve ser maior quando ocorre o afastamento de um precedente judicial. Os casos com circunstâncias principais semelhantes a outros já julgados deverão ter solução também semelhante a que estes tiveram. Em outras palavras, aquele que propuser o afastamento de um precedente terá um maior ônus argumentativo. Alexy aplica o princípio da inércia de Perelman, “que exige que uma decisão só pode ser mudada se se podem apresentar razões suficientes para isso”322. Segundo Alexy, o não afastamento do precedente é a regra, enquanto o julgamento contrário a ele é a exceção, de modo que é possível estabelecer como regra da argumentação o recebimento da carga argumentativa por aquele que busca uma fuga ao precedente.

Pela ótica daquele que deve tomar uma decisão jurídica – que é quem deverá invariavelmente argumentar a sua tomada de posição, seja científica, seja de julgamento – o afastamento do precedente lhe impõe um maior ônus argumentativo do que lhe caberia se ele apenas o seguisse, decidindo o caso novo de acordo com a solução que teve um caso anterior semelhante. O direito possui, portanto, certos parâmetros que possibilitam a redução da

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“Função eficacial argumentativa. Como os princípios constitucionais protegem determinados bens e interesses jurídicos, quanto maior for o efeito direto ou indireto na preservação ou realização desses bens, tanto maior deverá ser a justificação para essa restrição por parte do Poder Público (postulado da justificabilidade crescente). Como se vê, os princípios também possuem uma eficácia que, ademais de interpretativa, também é argumentativa: o Poder Público, se adotar medida que restrinja algum princípio que deve promover, deverá expor razões justificativas para essa restrição, em tanto maior medida quanto maior for a restrição e quanto mais importante for o princípio na ordem constitucional, quer pela sua hierarquia sintática, quer pela sua função de suporte” (ÁVILA, Humberto.

Sistema constitucional tributário. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 51). 322

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2008, p. 265.

subjetividade nas decisões.

Com base no princípio da inércia323, é cabível estabelecer medidas-regras e medidas- exceções, estas últimas requerendo sempre a carga argumentativa, ou seja, o aumento do ônus argumentativo para que sejam tomadas. Este é o caso dos direitos fundamentais, que são direitos de importância central dentro do sistema jurídico. O estado ideal de coisas324 é que eles sejam protegidos ao máximo, ou seja, a normalidade é a sua não-limitação, o que leva à conclusão de que a sua limitação exige motivos fortes, justificação robusta, uma argumentação clara e convincente. Partindo do pressuposto, hoje majoritário, de que o legislador constituinte decidiu por conferir fundamentalidade, maior relevância, a alguns direitos, a limitação destes exige maior ônus argumentativo. Na “Teoria dos direitos fundamentais”, Alexy explica que podem existir normas determinando um maior ônus para a limitação de princípios mais importantes, que é aquilo defendido por nós com relação ao in

dubio pro contribuinte. Ele conclui, fazendo referência a Bernhard Schlink, que a restrição

aos direitos fundamentais exige maior argumentação325.

Nos chamados casos fáceis, a justificação é muito mais simples, não havendo maiores

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“De fato, a inércia permite contar com o normal, o habitual, o real, o atual e valorizá-lo, quer se trate de uma situação existente, de uma opinião admitida ou de um estado de desenvolvimento contínuo e regular. A mudança, em compensação, deve ser justificada; uma decisão, uma vez tomada, só poder ser alterada por razões suficientes” (PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação – a nova retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 120).

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“A inércia pode ser oposta, em princípio, a todos os novos projetos e, a fortiori, a projetos que, da há muito conhecidos, não foram aceitos até esse dia. O que Bentham chama de sofisma do medo da inovação ou também de sofisma do veto universal, que consiste em opor- se a qualquer medida nova, simplesmente por ela ser nova, não é de modo algum um sofisma, mas o efeito da inércia que intervém em favor do estado de coisas existente. Este só deve ser modificado se houver razões a favor da reforma” (PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS- TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação – a nova retórica. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 121).

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“Algo semelhante é o que Schlink tem em vista quando diz que ‘direitos fundamentais [são] regras sobre o ônus argumentativo’. Aqui não interessa ainda investigar se tais regras sobre ônus argumentativo são corretas. O que aqui interessa é somente que a aceitação de uma carga argumentativa em favor de determinados princípios não iguala seu caráter prima facie ao das regras. Mesmo uma regra sobre ônus argumentativo não exclui a necessidade de definir as condições de precedência no caso concreto. Ela tem como conseqüência apenas a necessidade de se dar precedência a um princípio em relação a outro caso haja razões equivalentes em favor de ambos ou em caso de dúvida” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos

fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 106). Mais à

frente, Alexy conclui que “o texto das disposições de direitos fundamentais vinculam a argumentação por meio da criação de um ônus argumentativo a seu favor” (ALEXY, Robert.

problemas para motivar a limitação de um direito fundamental. Se os enunciados são claros e não há maiores discussões fáticas ou valorativas, será mais tranquilo o labor argumentativo. Nos casos difíceis, todavia, a argumentação torna-se mais complicada, e a limitação aos direitos fundamentais somente será possível se, mesmo assim, for viável fornecer fortes motivos para uma restrição à esfera jurídica fundamental do indivíduo.

No documento In dubio pro contribuinte (páginas 185-188)