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Normas de contabilidade e características qualitativas

IV. A Qualidade da Informação

IV.2. A qualidade da informação financeira

IV.2.2. Normas de contabilidade e características qualitativas

A primeira referência sobre a qualidade da informação financeira, ou das demonstrações financeiras, pode ser encontrada nas normas nacionais e internacionais de contabilidade e de relato financeiro, onde são definidas um conjunto de características qualitativas que a informação financeira e as demostrações financeiras devem possuir para que possa ser

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considerada informação de qualidade. A necessidade de atribuir qualidade à informação financeira resulta da importância de os stakeholders e dos shareholders disporem de informação financeira de qualidade para suporte de decisões racionais. De acordo com o Sistema de Normalização Contabilística – SNC, “as características qualitativas são atributos que tornam a informação proporcionada nas demonstrações financeiras útil aos utentes” (p 36.299). Segundo Van Beest et al., (2009), a observação das características qualitativas conduz a padrões contabilísticos de elevada qualidade os quais, por sua vez, conduzem a uma elevada qualidade da informação dos relatórios financeiros.

As características qualitativas desejáveis que a informação financeira deve possuir para que tenha qualidade são definidas pelas instituições responsáveis pela emissão de normas contabilísticas internacionais: o International Accounting Standards Board (IASB), que emite as International Accounting Standards (IAS) e as Internacional Financial Reporting

Standards (IFRS), e o Financial Accounting Standards Board (FASB), que é o equivalente

para os EUA. O IASB e o FASB encontram-se num processo de convergência das suas normas, trabalhando em conjunto para desenvolver e melhorar uma estrutura conceptual comum que fornecerá a base para o desenvolvimento de normas comuns baseadas em princípios. As características qualitativas da informação foram preparadas em conjunto por estas duas entidades tendo por base a “estrutura conceptual” aprovada pelo então comité internacional de normas de contabilidade (IASC) em abril de 1989 e revista pelo IASB em setembro de 2010. Em Portugal, o SNC é o responsável pela definição das características qualitativas da informação e do relato financeiro.

Para as entidades do sector público estão disponíveis as IPSAS que são normas emitidas e desenvolvidas pelo International Public Sector Accounting Standards Board (IPSASB) com o apoio da IFAC (International Federation of Accounts) tendo por base a constatação de uma premente necessidade de melhoria e uniformização da informação financeira do sector público. O objetivo do IPSASB é servir o interesse público através da definição de normas contabilísticas de elevada qualidade e facilitar a sua adoção e implementação, aumentando a qualidade e a consistência da prática contabilística em todo o mundo, fortalecendo a transparência e a prestação de contas das finanças do sector público. Estas normas têm suporte nas International Financial Reporting Standars (IFRS). O processo de normalização contabilística do sector público dos EUA assenta no FASAB (Federal Accounting Standars

Advisory Board), que emite princípios e normas contabilísticas para as entidades públicas

normalização contabilística para as entidades públicas estaduais e locais. Em Portugal o sector público está abrangido pelo Sistema de Normalização para as Administrações Públicas (SNC- AP), o qual tem suporte nas IPSAS.

O IFAC defende que os governos devem promover as alterações institucionais necessárias para aumentar a transparência da gestão financeira do sector público e a prestação de contas, em que parte essencial destas alterações deve ser no sentido da utilização da contabilidade da base acréscimo através da adoção e implementação das IPSAS, uma vez que estas promovem uma maior transparência e uma melhor prestação de contas e permitem um maior acompanhamento da dívida pública e das responsabilidades do sector público (passivos) e das suas implicações económicas.

O quadro 6 sintetiza e compara das características qualitativas definidas pelas entidades responsáveis pela emissão das normas nacionais e internacionais de contabilidade para o sector privado e para o sector público. Conforme se pode observar, a estrutura das características qualitativas não difere substancialmente entre as normas de contabilidade e, particularmente, as características qualitativas para o sector público apresentam uma estrutura próxima da usada nas empresas do sector privado da economia.

A estrutura conceptual do FASB (Statement of Financial Accounting Concepts n.º 8) identifica a relevância e a fiabilidade (representação fiel) como as características qualitativas fundamentais, ou seja, para ter qualidade, a informação financeira deve possuir as qualidades necessárias para a tomada de decisão: deve ser relevante e representar fielmente o fenómeno económico que tem em vista representar. A informação, no entanto, pode ser relevante mas, se não representar fielmente o fenómeno económico, não tem qualquer utilidade. Por outro lado, a informação tem um valor muito reduzido se não for relevante.

A informação financeira tem relevância se for capaz de fazer a diferença nas decisões tomadas pelos utilizadores. A informação financeira deve ser capaz de fazer a diferença numa determinada decisão, mesmo que alguns utilizadores optem por não a aproveitar. A informação financeira é capaz de fazer a diferença nas decisões se tiver valor preditivo, valor confirmatório ou ambos. A informação financeira tem valor preditivo se ela puder ser usada pelos utilizadores para prever resultados futuros. Não precisa de ser ela mesma uma previsão para ter valor preditivo. Terá valor preditivo se for utilizada pelos utilizadores para fazer as suas próprias previsões. A informação financeira tem valor confirmatório se ela fornece

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A materialidade está associada à relevância da informação. A estrutura conceptual do FASB considera que a informação financeira é material se a sua omissão influenciar decisões que os utilizadores possam tomar com base em informação financeira de um relato específico de uma entidade. A materialidade é um aspeto relevante com base na natureza ou magnitude dos elementos aos quais a informação se refere no contexto específico de um relatório financeiro de uma entidade individual. Por essa razão, não pode ser especificado um limite quantitativo uniforme para materialidade ou predeterminar o que poderia ser material numa dada situação particular.

Relativamente à representação fiel, a estrutura conceptual do FASB refere que os relatórios financeiros representam fenómenos económicos em palavras e números. Para ser útil, a informação financeira não deve representar apenas fenómenos relevantes, mas também deve representar fielmente os fenómenos que se propõe a representar. Para ser uma representação perfeitamente fiel, deve assumir três características: deve ser completa, neutra e livre de erros. Embora se reconheça que a perfeição é raramente, ou nunca, alcançável, o objetivo FASB é o de maximizar a qualidade dessas características qualitativas. A representação fiel não significa precisão em todos os aspetos. Livre de erro significa que não há erros ou omissões na descrição do fenómeno e o processo utilizado para produzir a informação reportada foi selecionado e aplicado sem erros. Por exemplo, uma estimativa de um preço observável, ou um valor, pode não ser determinado para ser preciso ou impreciso. No entanto, a representação dessa estimativa pode ser fiel, se o montante é descrito com clareza e precisão como sendo uma estimativa, a natureza e as limitações do processo de estimativa são explicadas e não foram cometidos erros na seleção e aplicação de um processo adequado para fazer a estimativa. Conjuntamente, a relevância e a representação fiel significam que nem uma representação fiel de um fenómeno irrelevante, ou a representação infiel de um fenómeno relevante, ajuda os utilizadores a tomar boas decisões.

Quadro 6. Características qualitativas da informação

Compreensibilidade Compreensibilidade Compreensibilidade Compreensibilidade Relevância Relevância Materialidade Relevância Materialidade Relevância Materialidade Relevância Relevância Fiabilidade Fiabilidade Repres. Fidedigna Fiabilidade/Repres

entação Fiel Fiabilidade (Reliability) Representação fiel Representação fiel Fiabilidade (Reliability) Substância s/ a forma Substância s/ a forma

Neutralidade Neutralidade

Prudência Prudência

Plenitude Plenitude

Comparabilidade Comparabilidade Comparabilidade Comparabilidade Comparabilidade

Tempestividade Tempestividade Materialidade

Eq.º entre Custos e Benef.ºs

Eq.º entre Custos e Benef.ºs

Eq.º entre Custos e Benef.ºs

Eq.º entre Carac.Quali. Eq.º entre Carac.Quali. Eq.º entre Carac.Quali. Comparabilidade Verificabilidade Tempestividade Compreensibilidade Oportunidade Oportunidade Verificabilidade Consistência

Nota: Recolhido a partir das normas de contabilidade emitidas pelas diversas entidades (IASB, FASB, IPSASB, FASAB, Comissão de Normalização Contabilística)

Constrangimentos à informação relevante e fiável Constrangimentos à informação relevante e fiável Constrangimentos à informação

Caract. Qualit. que podem melhorar a qualidade…

Sector privado da economia Sector Público

POC SNC IASB (=FASB) IPSASB FASAB

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O IASB/FASB identificam, ainda, um conjunto de outras características qualitativas como a comparabilidade, a verificabilidade, a tempestividade e a compreensibilidade que melhoram a utilidade da informação relevante e fielmente representada. Estas características qualitativas também podem ajudar a determinar qual das duas formas deve ser usada para descrever um fenómeno se o fenómeno for considerado igualmente relevante e fielmente representado. Em Portugal, o SNC identifica como principais características qualitativas a compreensibilidade, a relevância, a fiabilidade e a comparabilidade. Estas características qualitativas são acompanhadas por outras características como a materialidade, a representação fidedigna, a substância sobre a forma, a neutralidade, a prudência e a plenitude. Estas características e o seu significado inspiram-se na Estrutura Conceptual do IASB, pelo que a relevância, fiabilidade e comparabilidade apresentam um conteúdo idêntico ao do IASB/FASB.

No que diz respeito ao sector público, a IPSAS 1 identifica as seguintes quatro principais características qualitativas: compreensibilidade, relevância, fiabilidade (reliability) e comparabilidade, bem como um conjunto de constrangimentos aplicáveis à informação relevante e fiável. Embora o alcance e o conteúdo destas características qualitativas seja idêntico ao das características qualitativas do IASB/FASB existem pequenas nuances que ajudam a aprofundar o sentido e o alcance destas características qualitativas, designadamente tendo em conta as características específicas da atividade das entidades públicas e a existência de um orçamento aprovado politicamente. De acordo com a IPSAS 1, a informação é compreensível quando os seus utilizadores razoavelmente compreendem seu significado. Para este efeito, assume-se que os utilizadores tenham um razoável conhecimento das atividades da entidade e do ambiente em que ela exerce a sua atividade, e que esteja disposto a estudar a informação. Informações sobre assuntos complexos não devem ser excluídas das demonstrações financeiras pelo simples facto de que pode ser de difícil compreensão para certos utilizadores. A informação é relevante para os utilizadores se ela puder ser utilizada para ajudar a avaliar os acontecimentos passados, presentes ou futuros ou confirmar, ou corrigir, as avaliações passadas. Para ser relevante, a informação também deve ser oportuna. Tal como no caso do IASB/FASB, a relevância da informação é afetada pela sua natureza e materialidade. A informação é materialmente relevante se a sua omissão ou distorção puder influenciar as decisões dos utilizadores ou avaliações feitas com base nas demonstrações financeiras. A materialidade depende da natureza ou tamanho do elemento ou do erro, julgado nas circunstâncias específicas da sua omissão ou distorção.

A informação é fiável (reliability) se for livre de erros materiais e de enviesamentos, e puder ser entendida pelos utilizadores como representando fielmente aquilo que se pretende representar ou pode razoavelmente esperar que represente. A fiabilidade da informação, ou representação fiel, impõe a substância sobre a forma no registo das operações. Para uma informação representar fielmente as transações e outros eventos, ela deve ser apresentada de acordo com a substância das transações e outros eventos, e não meramente conforme a sua forma legal. Se a informação é para representar fielmente as transações e outros eventos que ela se propõe a representar, é necessário que eles sejam contabilizados e apresentados de acordo com a sua substância e realidade económica e não meramente de acordo com a sua forma legal. A substância das transações ou outros eventos nem sempre é consistente com a sua forma legal.

A informação é neutra se for livre de preconceitos. As demonstrações financeiras não são neutras se a informação que contêm for selecionada ou apresentada de uma forma concebida para influenciar a tomada de uma decisão ou sentença, a fim de alcançar um certo resultado ou um resultado pré-determinado. A prudência consiste na inclusão de um grau de precaução no exercício dos juízos necessários ao fazer as estimativas em condições de incerteza, de modo que os ativos ou receitas não sejam exageradas e os passivos ou despesas não sejam subestimados. O exercício da prudência não permite, por exemplo: 1) a criação de reservas ocultas ou provisões excessivas; 2) a subavaliação deliberada de ativos ou de receitas, ou; 3) sobreavaliação deliberada de passivos ou despesas, pois as demonstrações financeiras não seriam neutras e, portanto, não possuiriam a qualidade da fiabilidade. Finalmente, a plenitude da informação constante das demonstrações financeiras exige que a informação deve ser completa, dentro dos limites de materialidade e custo.

A informação das demonstrações financeiras é comparável quando os utilizadores são capazes de identificar semelhanças e diferenças entre essas informações e as informações de outros relatórios. A comparabilidade deve ser possível na comparação das demonstrações financeiras de diferentes entidades e na comparação das demonstrações financeiras da mesma entidade em sucessivos períodos de tempo. Uma implicação importante da característica da comparabilidade é que os utilizadores da informação devem ser informados das políticas contabilísticas utilizadas na preparação das demonstrações financeiras, de alterações nessas políticas e dos efeitos nos registos das operações dessas alterações. As demonstrações financeiras devem divulgar informação correspondente a períodos anteriores de modo a que os utilizadores possam comparar o desempenho de uma entidade ao longo do tempo.

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A IPSAS 1 identifica também algumas restrições associadas à informação relevante e fiável. Relativamente à oportunidade da informação, reconhece-se que uma demora exagerada no relato da informação, pode fazer com que ela perca a sua relevância. Para fornecer informação em tempo útil, muitas vezes pode ser necessário relatar essa informação antes de todos os aspetos de uma transação serem conhecidos, prejudicando, assim, a característica da confiabilidade. Pelo contrário, se o relato da informação for demorado até que todos os aspetos sejam conhecidos, a informação pode ser altamente confiável, mas é de pouca utilidade para os utilizadores que, entretanto, tiveram de tomar as suas decisões. Para alcançar um equilíbrio entre relevância e fiabilidade, a consideração dominante que deve ser tida em conta é aquela que melhor serve ou satisfaz as necessidades de tomada de decisão dos utilizadores.

Por fim, a IPSAS 1 identifica ainda a existência de constrangimentos relacionados com a informação financeira. Deverá existir um equilíbrio entre o benefício proporcionado pela informação divulgada e o custo que se tem para a sua elaboração e divulgação. O equilíbrio entre o benefício e o custo é uma restrição generalizada. Os benefícios derivados da informação devem exceder o custo da sua prestação. A avaliação dos benefícios e dos custos é uma questão de critério. Os custos nem sempre caem sobre os utilizadores que beneficiam da informação. Os benefícios da informação podem também ser apreciados por utilizadores diferentes daqueles para as quais a informação foi elaborada. Por esta razão, é difícil avaliar o custo-benefício em qualquer caso particular. As entidades de normalização contabilística, bem como os responsáveis pela elaboração das demonstrações financeiras e os utilizadores dessas demonstrações financeiras, devem estar conscientes dessa limitação.

Também deverá estar presente um equilíbrio entre as características qualitativas. Um equilíbrio, ou trade-off, entre características qualitativas é muitas vezes necessário. De um modo geral, o objetivo é atingir um equilíbrio apropriado entre as características qualitativas, tendo em conta os objetivos das demonstrações financeiras. A importância relativa das características qualitativas em casos diferentes é uma questão de julgamento profissional. Por exemplo, a representação fiel da atividade e das operações financeiras subjacentes de uma entidade pública é uma característica qualitativa da informação financeira muito importante no caso da compilação das contas nacionais e das contas públicas. No juízo de quem elabora as contas nacionais, a representação fiel das operações poderá ter um peso diferente em relação a outras características qualitativas das demonstrações financeiras, uma vez que a existência de erros na contabilização das operações das entidades públicas podem conduzir,

nas contas nacionais, por exemplo, a uma subavaliação ou sobreavaliação do valor da produção do sector institucional das Administrações Públicas e, consequentemente, do PIB. Em Portugal, o SNC-AP apresenta como características qualitativas da informação a relevância, a fiabilidade, a compreensibilidade, a oportunidade, a comparabilidade e a verificabilidade” (p. 7593).

A Estrutura Conceptual do IPSASB aplicável às demonstrações financeiras de caracter geral das entidades do sector público discutiu as características qualitativas que devem estar implícitas nos relatórios financeiros das entidades públicas. Essas características qualitativas são a relevância, representação fiel, compreensibilidade, oportunidade, comparabilidade e a verificabilidade e o seu conteúdo é idêntico ao que se discutiu anteriormente no âmbito das características qualitativas da IPSAS 1 - Appendix A. A Estrutura Conceptual também discutiu a existência de constrangimentos à informação, como a materialidade, o equilíbrio entre os custos e os benefícios e o equilíbrio entre características qualitativas, todos com o conteúdo idêntico ao dos constrangimentos identificados no Appendix A da IPSAS 1.

Por fim, o FASAB destaca a compreensibilidade, a relevância, a fiabilidade, a comparabilidade, a oportunidade e a consistência como as características qualitativas que a informação financeira das entidades públicas federais dos EUA deve possuir para ter qualidade. O alcance e a natureza destas características qualitativas não se afastam das características qualitativas definidas pelo IASB/FASB ou IPSASB.

A abordagem através das características qualitativas mostra que a qualidade da informação financeira, tal como a qualidade da informação em geral, é também um conceito multidimensional, onde o utilizador da informação financeira também desempenha um papel relevante na determinação das características qualitativas que melhor se ajustam aos interesses de análise ou que mais se adequam ao fim em vista. São os interesses dos utilizadores da informação financeira que determinam as características qualitativas relevantes. A informação financeira que não tenha em conta os interesses dos utilizadores deixa de ter qualidade se não servir estes interesses (fitness for use).