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5 MOVIMENTO PASSE LIVRE E O ATIVISMO EM REDE

5.6 O novo espaço público

Observou-se anteriormente que Szwako e Dowbor (2013) se apropriaram das teorias de Goffman, Tarrow e Tilly que tratam também do confronto político e do empoderamento dos movimentos. Pode-se, grosso modo, fazer uma relação com os autores otimistas da cibercultura aqui já mencionados, no que tange ao empoderamento ou empowerment que a mesma, em tese, proporcionaria.

Através da cibercultura e da combinação entre as redes sociais ou de relacionamento e mídias digitais e a ocupação simbólica do espaço das cidades, constituiu-se um terceiro espaço, um novo espaço público conforme mencionado por García Canclini, Castells, Lemos, entre outros.

Num primeiro instante, há certa aproximação entre o conceito habermasiano de agir comunicativo e de esfera pública, com os quais observar certa intersecção com as potencialidades das TICs, enquanto canais que, até certo modo, relacionam-se com a questão do poder e ampliam as formas de diálogo entre sociedade e governo. Apesar de não focar seus estudos em redes sociais digitais permeou-se o conceito de esfera pública, o frankfurtiano Jünger Habermas já havia preconizado que as novas tecnologias trariam em si grande potencial. O conceito original de esfera pública foi revisto em 1962, em Mudança estrutural

da Esfera Pública, pelo próprio autor, ganhou novas formulações anos mais tarde. Com o

advento das novas tecnologias, a esfera pública parece ganhar novos contornos. Desse modo, para o teórico que defendia que toda ação política era uma ação comunicacional, a esfera pública seria o espaço onde pessoas, enquanto cidadãs, articulam suas visões de mundo, suas opiniões e organizam-se para tentar influenciar ou questionar as instituições políticas.

O conceito de esfera pública na terminologia é de orientação francesa. Segundo Brittes (2010, p. 470-471), “trata-se uma instância simbólica na qual a sociedade civil forma e expressa suas opiniões, retratando seu modo de atuação em relação ao Estado”. Assim, a esfera pública pode assumir diversas configurações conforme o modelo comunicativo utilizado pela comunidade implicada no processo.

Desde sua gênese, enquanto objeto de investigação acadêmica, o tema mobiliza diversas matrizes analíticas, iniciadas pelos estudos filosóficos da modernidade. Fecunda preocupações contemporâneas em diversas áreas das ciências sociais, tais como a teoria política, o direito, a antropologia e a psicologia social. No âmbito da comunicação social é uma das temáticas mais polêmicas. Aparece na esteira das interrogações sobre a relação que a sociedade civil desenvolve com os meios de comunicação de massa, formuladas a partir dos anos 1940. (BRITTES, 2010, p. 470-471).

Entre os fundadores do quadro referencial teórico estão Kant, Hegel, Marx, Stuart Mill, Tocqueville, Gabriel Tarde, Ortega y Gasset e John Dewey. Entretanto, aquele que mais se destaca ao tratar do tema é Jürgen Habermas, autor de Mudança Estrutural da Esfera

Pública, de 1960. Brittes (2010, p. 470-471) afirma que enquanto modelo, de caráter

normativo, tal conceito precisa ser construído em determinadas condições para que a comunicação seja eficaz e as opiniões do público atinjam o “patamar de força política”. Caso contrário, o que prevaleceria, como na atualidade, “seria o modelo estratégico, calcado na barganha, na troca e na negociação”, inclusive entre governo e imprensa. A mídia, que em tese teria de desempenhar esse papel de contraponto, contudo, afastou-se deste papel de se tornar um espaço de conversação dando voz aos anseios dos cidadãos e por questões

econômicas passou a ser mais um meio a serviço dos interesses de governos e classes políticas dominantes.

Há basicamente duas correntes que estudam Habermas e ambas são demasiadamente complexas e até hoje geram discussões. Aqueles que estudam o teórico ligado à chamada Escola de Frankfurt65, transmitem como consenso a ideia de que, de acordo com seus estudos,

a grosso modo, esta esfera pública seria um espaço de deliberação democrática através do qual o indivíduo teria condições de, por meio da livre expressão, da comunicação e da manifestação, expressar seu direito à cidadania e, consequentemente fazer parte efetivamente da sociedade. Habermas supunha que o interesse coletivo deveria sobrepor-se ao interesse individual, aspecto que fez com que seus críticos mais ferrenhos associassem aos seus pensamentos o substantivo utopia.

Entretanto, na comunicação, suas ideias ainda fomentam pesquisas, principalmente no contemporâneo com as novas tecnologias. Lara Haje (2007, p. 127), por exemplo, afirma que o modelo de esfera pública é um modelo que valoriza a importância da comunicação no mundo contemporâneo, pois implica no conceito de democracia centrado no discurso e baseado na mobilização social e na força comunicativa de seus participantes.

A esfera pública denota as condições de comunicação nas quais é possível formação, por meio do discurso racional, de opinião pública sobre questões relevantes para a sociedade. A construção de esferas públicas autônomas e capazes de ressonância no governo, na mídia e no mercado, é essencial, portanto, para que os processos democráticos sejam dirigidos pelo poder comunicativo da sociedade civil (HAJE, 2007, p. 128).

Acredita-se que o conceito de esfera pública possa ser revisto com as novas tecnologias e não precise ficar restrito à questão deliberativa mais próxima das consultas públicas, forma como ele vem sendo empregado mais comumente. O próprio Habermas vem fazendo revisões sistemáticas de seus escritos. Nesse sentido, é possível que tal conceito se desprenda apenas da questão deliberacionista dos canais estabelecidos pelo governo. Vê-se eclodir diante do contemporâneo novas formas discussão e de deliberação, como serão apontadas no presente trabalho ao tratar-se dos protestos.

65Corrente da comunicação originada no Instituto de Pesquisas Sociais (Institut für Sozialforschung, Frankfurt), Alemanha,

fundado em 1923. Na década de 30, por causa do nazismo, seus representantes se transferem para Genebra, Paris e depois para os Estados Unidos. Os frankfurtianos foram responsáveis pelo estabelecimento da chamada Teoria Crítica e receberam influências de Kant e Marx e concentravam parte dos seus estudos com relação à Comunicação de Massa e aproximações entre comunicação e política. Para aprofundar sobre tal corrente recomenda-se tais obras: DE FLEUR, Melvin L. e ROKEACH, Sandra Ball. Teorias da Comunicação de Massa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993; FRANÇA, Vera; HOHLFELDT, Antônio; MARTINO, Luiz C. Teorias da Comunicação. Conceitos, escolas e tendências, 2001; LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, 7ª. Edição; TEMER, Ana Carolina Rocha Pessoa; NERY, Vanda Cunha Albieri. Para entender as teorias da comunicação. Uberlândia; EDFU, 2009 e; WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Manuel Castells e Pierre Lévy, entre outros aqui já mencionados, aceitam a noção de esfera pública virtual que, sob uma perspectiva otimista, devolve à esfera civil o poder de formulação da agenda pública. O próprio Castells, ao longo de sua obra, analisa questões como a interatividade, a identidade e o impacto das tecnologias sobre a sociedade trata da esfera pública, da interatividade na rede, da comunicação na era digital e da questão do poder neste ambiente. Para Castells, a esfera pública é o espaço de comunicação de ideias e projetos que emergem da sociedade e são dirigidas àqueles que tomam a decisão nas instituições da sociedade. Castells (2008, p. 78-79) se baseia na definição de Habermas de que a esfera pública se encontra entre o Estado e a sociedade como “uma rede de comunicação de informações e pontos de vista”, um componente essencial da organização sociopolítica, porque é o espaço onde as pessoas se reúnem como cidadãos e para articular as suas opiniões autônomas para influenciar as instituições políticas da sociedade. Castells afirma (2008, p. 79) que a expressão material da esfera pública varia com o contexto, a história e a tecnologia, mas na sua prática atual, é certamente diferente do tipo ideal de século XVIII - burguesa esfera pública em torno do qual Habermas formulou sua teoria. Neste sentido, o espanhol (2008, p. 79-80) acrescenta que a esfera pública não é apenas a mídia ou os locais socioespaciais de interação com o público, mas o repositório cultural / informacional dos ideais e projetos que alimentam o debate público. Ele defende que as redes sociais digitais oferecem a possibilidade de “deliberar sobre” e coordenar ações de forma “amplamente desimpedida” (CASTELLS, 2013, p. 14).

Também para Lévy (2011, p.44), a mídia digital do século estende ou democratiza a liberdade de expressão, por pelo menos três razões: econômica, técnica e institucional. Econômica, porque se pode publicar textos, imagens e dados em geral a custo muito baixo. Técnica, porque o uso das ferramentas digitais de comunicação envolve domínio de linguagens de programação. Institucional, pois a publicação não passa mais crivo de conselhos editoriais, redatores, produtores, e diretores que controlavam as velhas mídias.

Como mencionado, hoje na literatura, percebe-se que a noção de esfera pública está muito mais ligada à questão da deliberação, enquanto o conceito de espaço público se relaciona às manifestações mais espontâneas e criação de espaços de discussão na sociedade, como os que foram observados durante os protestos de 2013. Por este motivo, adota-se aqui essa noção de espaço público como a mais adequada para dar conta da problemática do objeto do presente estudo. Contudo, também há de se considerar, pelo que também foi abordado, que o espaço público da contemporaneidade é construído pelas dimensões da estética, do entretenimento, em função do imaginário social, do “ethos sensorial” e do “subjetivismo

privado”. “Profundamente afetada pela esfera do espetáculo, a vida comum torna-se médium publicitário e transforma a cidadania política em performance tecnonarcísica”. (SODRÉ, 2013, p.40). Esse novo espaço, trouxe à tona a discussão de algumas temáticas e, sobretudo comunicou o descontentamento da população.

Buscou-se até aqui apresentar considerações que permitissem a compreensão geral do que foram os protestos de junho de 2013, com os mesmos foram articulados, os principais atores envolvidos, aspectos relacionados à comunicação e a constituição de uma ágora ou espaço público de discussão e até uma tentativa ou exercício de cidadania.

São Paulo, que já foi historicamente definida como “capital do capital”, durante o período de protestos passou a emblematizar a capital das reivindicações coletivas. Isto porque, espaços públicos que foram erigidos para servir ao capital foram ressignificados mediante às ações coletivas; as praças que de áreas de lazer já a décadas haviam se transformado em frios espaços de passagem metamorfosearam-se em campos de aglutinação de milhares de pessoas que bradavam com emoção por múltiplas reivindicações.

Nesse contexto, os protestos de junho de 2013 na capital paulista favoreceram a reocupação urbana, deixando claro que espaços citadinos e críticas sociais coletivas amoldaram-se mutuamente.

A amplidão dos espaços não só favoreceu a concentração humana, mas também abriu oportunidades para o amplo clamor público. Áreas estratégicas do território urbano ao terem suas funções redefinidas para além do esperado ou do proposto pelas instituições oficiais transformaram-se em metáforas concretas da ânsia de liberdade e participação social. Mais do que isso, acredita-se que a tomada do espaço urbano pela população está diretamente articulada com o direito à cidade, entendendo-se por isto, que esta mesma população, a arquiteta do território urbano passou a percebê-lo como o terreno propício para reivindicações dos seus direitos cidadãos. Lembra-se ainda que, mesmo pautado pela espontaneidade, as redes sociais e a ampla cobertura da mídia dos protestos de 2013 incitaram uma atuação espetacularizada do tecido coletivo. Assim, protestos populares, cultura de massa e seus desdobramentos espetaculares deram uma forma e um sentido a tudo que então aconteceu.