• Nenhum resultado encontrado

O Abandono da Finalidade Restrita à Ordem Pública

3 O PODER DE POLÍCIA ESTATAL

3.4 Finalidades do Poder de Polícia

3.4.1 O Abandono da Finalidade Restrita à Ordem Pública

Como visto, é muito comum observar na doutrina confusões entre a finalidade e o objeto do poder de polícia. Parece-nos mais consentâneo, como já nos manifestamos, que a ordem pública seja considerada como sua finalidade.

Com efeito, muitos autores consideram a ordem pública como o maior objetivo do poder de polícia, mormente os mais clássicos. Contudo, grandes ponderações foram (e ainda são) realizadas no sentido de seu abandono, em substituição pela finalidade de assegurar o interesse público.

Em magistral dissertação acerca do poder de polícia administrativa, Germana de Oliveira Moraes traça uma análise detalhada dos maiores expoentes doutrinários estrangeiros, cujas reflexões acabaram por influenciar o pensamento brasileiro sobre o poder de polícia.

No aludido estudo, a autora aponta que na doutrina francesa clássica, o manifesto objetivo do poder de polícia é o de manutenção da ordem pública, esta entendida como o que a legislação tem em conta como tranqüilidade, segurança e salubridade. Assim, A. Laubadére resume que sua finalidade é a de “assegurar a tranqüilidade (ausência de risco de desordem), a segurança (ausência de riscos de acidentes) ou a salubridade pública (ausência de risco de epidemias)” 111.

Com a mesma tríplice noção de ordem pública (tranqüilidade, segurança e salubridade), a autora aponta Maurice Hauriou e R. Rolland.

Com concepções diversas daquela doutrina francesa mais clássica, destaca Georges Vedel (para quem a polícia reparte-se em geral, destinada à tranqüilidade, segurança e salubridade; e especial, destinada às demais atividades com exclusão das gerais) e Jean Rivero (o qual não demarca as áreas de intervenção estatal).

111 MORAES, Germana de Oliveira. O poder de polícia administrativa. Dissertação (Mestrado em

Ainda com base no valioso estudo de Germana de Oliveira Moraes, podem-se identificar dois posicionamentos que muito divergem do objetivo de manutenção da ordem pública desenvolvido na França.

O primeiro decorre da jurisprudência norte-americana, criadora de uma concepção ampla de poder de polícia, de modo a envolver o Legislativo e a possuir ampla finalidade. Importa reproduzir as palavras do Juiz Cooley:

A polícia de um Estado, em seu sentido amplo, compreende o sistema de regulação interior, pelo qual o Estado busca não somente preservar a ordem pública e prevenir as ofensas contra o Estado, mas também estabelecer para a vida de relação dos cidadãos, aquelas regras de boas maneiras e de boa vizinhança que se supõem suficientes para prevenir um conflito de direitos e para assegurar a cada um o gozo ininterrupto de seu próprio (direito), hasta do que é [sic] razoavelmente compatível com igual gozo dos direitos dos demais.112

No mesmo sentido de amplitude, Willoughby afirma que “na doutrina norte-americana os fins da polícia são não apenas aqueles que tendem a proteger a segurança, a saúde e a moralidade pública, mas também os que perseguem a conveniência e a prosperidade geral” 113.

Como observa Bielsa, o “police power” norte-americano tem uma extensão considerável “[...] compreendendo também normas protetoras da condição econômica e social dos indivíduos, esse poder visa o fomento do bem-estar geral e a regulação de sua vida econômica.”114

Ainda no âmbito de sua retromencionada obra, Germana de Oliveira Moraes aponta a doutrina desenvolvida por Augustín Gordillo como exemplo que diverge da vinculação da finalidade do poder de polícia à ordem pública.

Segundo a autora, Gordillo afirma que a concepção clássica do poder de polícia, com a “finalidade de salvaguardar a segurança, salubridade e moralidade pública [...] estaria superada pela multiplicação de bens jurídicos que o Estado protege através de limitações e restrições de direitos individuais.”115

Gordillo, então, acrescenta à “segurança, salubridade e moralidade públicas, a tranqüilidade, a confiança, a economia, a estética e o decoro públicos e a

112 Apud. MORAES, Germana de Oliveira. Op. cit., p. 26. 113 Apud. MORAES, Germana de Oliveira. Op. cit., p. 26. 114 Apud. MORAES, Germana de Oliveira. Op. cit., p. 26. 115

seguridade social, elastecendo o objeto do conceito tradicional de poder de polícia.”116

Luis Manuel Fonseca Pires igualmente cita as ponderações de Augustín Gordillo:

‘[...] é impróprio o conceito de ordem pública para determinar a polícia, enquanto atividade administrativa de limitação e controle dos administrados’ uma vez que corresponde a uma concepção liberal de Estado, é, por isto, categórico ‘[...] a ordem pública é um conceito metajurídico incapaz de servir para caracterizar a instituição e seja qual for o conceito de ordem pública que se adote e ainda que se considere que se tem havido modificações fundamentais e sua fisionomia’.117

Acorde Luis Manuel Fonseca Pires, interpretando Gordillo:

a constituição das limitações administrativas aos temas segurança, salubridade e moralidade públicas associa-se ao Estado Liberal no qual a ação estatal devia ser tão somente negativa, isto é, estabelecer proibições e restrições, mas nunca obrigações positivas e [Gordillo] pondera que atualmente os bens jurídicos relacionados com as limitações administrativas multiplicaram-se porque os fins

do Estado contemporâneo também multiplicaram-se.118 (grifo

nosso)

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em esclarecedora retrospectiva histórica, observa que no Estado de Direito Liberal, a regra era o livre exercício dos direitos individuais. A atuação estatal era a exceção, só podendo limitar o exercício dos direitos individuais para assegurar a ordem pública.

A ilustre doutrinadora lembra que a passagem do Estado Liberal para o Intervencionista trouxe a ampliação do poder de polícia. Assim:

[...] o próprio conceito de ordem pública, antes concernente apenas à segurança, passou a abranger a ordem econômica e social, com medidas relativas às relações de emprego, ao mercado dos produtos de primeira necessidade, ao exercício das profissões, às comunicações, aos espetáculos públicos, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e artístico nacional, à saúde e tantas outras;”119

(grifos do original)

Com o mesmo entendimento, Germana de Oliveira Moraes salienta que a ampliação dos fins do Estado trouxe uma inegável dilação da esfera de agir da Polícia Administrativa. “Todavia, o aparecimento dessas dimensões contemporâneas

116 Idem. Ibidem, p. 36.

117 PIRES, Luiz Manuel Fonseca. Op. cit., p. 275. 118 PIRES, Luiz Manuel Fonseca. Ibidem, p.274. 119 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 110.

do Poder de Polícia não afetaram sua substância, consistente no condicionamento do exercício dos direitos individuais.” 120

Neste passo, vale lembrar que o já mencionado artigo 78 do nosso Código Tributário Nacional, expressamente divide o interesse público em várias partes. Dessa forma, infere-se que o Estado brasileiro utiliza seu poder de polícia em diferentes campos de atuação, logo, não restrito apenas à ordem pública. Novamente transcrevendo seu caput:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração

pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.121 (grifo nosso)

Di Pietro esclarece que “pelo conceito moderno, adotado no direito brasileiro, o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público.” 122

Resume-se, então, o que aqui se pretendeu concluir por meio de um breve apanhado histórico: a finalidade de manter a ordem pública é resquício do Estado Liberal absenteísta. Modernamente, no Estado de Direito Democrático, a finalidade do poder de polícia não é outra senão a proteção do interesse público, nos múltiplos setores em que este esteja presente, demandando a disciplina normativa.