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O aprendizado da operação de multiplicação

CAPÍTULO II – A construção teórico/metodológica

2.4. O aprendizado da operação de multiplicação

O ensino da multiplicação costuma ocorrer posteriormente ao da adição porque existe a concepção de que a multiplicação é somente uma adição repetida, concepção que é, inclusive, alimentada pela orientação de alguns livros didáticos. Essa é uma concepção simplificadora da relação existente entre as duas operações porque, na verdade, o aprendizado da multiplicação representa uma mudança no pensamento da criança em relação à operação de adição. Existem “descontinuidades e continuidades [importantes que precisam ser investigadas] para que possamos entender os muitos passos que cada criança tem que dar em direção a uma compreensão plena da multiplicação” (NUNES; BRYANT, 1997, p. 141).

Na literatura, encontrei inúmeras pesquisas na área de educação matemática, especificamente relacionadas com a operação da multiplicação. As pesquisas aqui descritas me levaram a refletir sobre as diferentes idéias envolvidas no aprendizado em questão.

O programa de pesquisa Concepts in Secondary Mathematics – CSMS apresenta níveis de compreensão dos alunos em vários aspectos da matemática, descrevendo, em cada caso, os tipos de questões em que os alunos encontravam maior ou menor dificuldade. Investigaram diversos aspectos, como operações, medidas, frações, números positivos e negativos, álgebra, gráficos, vetores, dentre outros. Interessou-me, particularmente, o trabalho descrito por uma das pesquisadoras do grupo, Margaret Brown (1981), que investigou a compreensão das crianças inglesas a respeito das quatro operações básicas (adição, subtração, multiplicação e divisão) e se

elas conseguiriam identificar, dentre as várias opções que lhes foram apresentadas, qual a operação a ser utilizada para resolver um determinado word-problem.24

Ao analisar as respostas dadas pelas crianças, em um grande número de questões que envolviam as operações, ficou comprovado que muitas usavam a adição como estratégia para resolver problemas que envolviam uma operação de subtração e usavam a adição repetida para resolver problemas que poderiam ser resolvidos pela multiplicação. O mesmo aconteceu com os problemas que envolviam a divisão, os alunos buscavam respostas através da multiplicação. Encontraram, também, crianças que sabiam qual a operação a ser usada nos problemas, mas tinham dificuldades na realização dos algoritmos.

Carraher, Carraher e Schliemann (1988) relatam pesquisas que procuraram estudar o desempenho de crianças de camadas populares em situações da vida cotidiana e, posteriormente, em situações formais, do tipo escolar. O trabalho foi realizado inicialmente com as crianças fora do contexto escolar, onde lhes foi proposto um Teste Informal com problemas de matemática do seu cotidiano. Foi utilizado um método de estudo no Teste Informal que se aproxima do método clínico piagetiano. Posteriormente, as crianças resolviam um Teste Formal utilizando lápis e papel, onde os problemas anteriores eram representados matematicamente25.

As crianças apresentaram uma performance nitidamente superior no Teste Informal, onde as operações estavam inseridas em situações reais. As crianças recorriam a “estratégias naturais”, isto é, próprias, para resolverem os problemas do Teste Informal, não utilizando, portanto, os procedimentos escolares e, na escola, recorriam aos algoritmos para resolverem as operações e as tarefas do Teste Formal, que apareciam de forma descontextualizada, e cometiam erros que não faziam na vida real.

Lesh e Landau (1983) organizaram várias pesquisas que envolvem a aquisição dos conceitos de adição e subtração, números racionais, espaço, geometria, dentre outros aspectos, com a intenção de abordar os conhecimentos matemáticos e a resolução de problemas sob a perspectiva da psicologia. Em um dos capítulos, Vergnaud apresenta suas idéias a respeito da aquisição da operação de multiplicação, como parte de uma estrutura mais complexa, de campo conceitual, que nesse caso ele chamou de “estrutura multiplicativa”. Vergnaud, com sua teoria

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Por exemplo: Uma família tem que dirigir 261 km para chegar à casa. Depois de andarem 87 km, eles pararam para lanchar. Quantos km ainda faltam para eles chegarem à casa? Escolha a operação que traduz esse problema. 87x3 261+ 87 87: 261 261- 87 261x 87 261: 87 87- 261 87+ 174

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dos campos conceituais, é uma referência obrigatória para as pesquisas sobre a aprendizagem das operações.

Como já se disse, Gerard Vergnaud (1983) pesquisou a estrutura multiplicativa tendo em vista a idéia de Campo Conceitual porque acreditava que as dificuldades de uma criança não eram as mesmas de um campo para outro e afirmava ser necessário compreender a aquisição e o desenvolvimento de conhecimentos específicos no interior de um mesmo campo de conhecimento. Isso implicou estudá-la envolvendo uma série de idéias e situações com ela relacionadas, como: a estrutura aditiva, as operações de multiplicação e divisão, frações, raízes, números racionais, função linear e não-linear, análise dimensional e espaço vetorial, e sugeriu que todas essas idéias devem estar presentes nos problemas a serem dados aos alunos.

De acordo com essa teoria, o conhecimento é organizado em campos conceituais que podem ser considerados em primeiro lugar como um conjunto de situações que dão sentido aos conceitos e os tornam significativos para o sujeito. O sentido é traduzido via conjunto de esquemas que o sujeito utilizará para lidar com as situações que, no nosso caso, implicam a idéia de multiplicação. Quanto aos algoritmos, Vergnaud diz que: “Os algoritmos são esquemas, porque os algoritmos matemáticos são a forma de organização da atividade, mas a maior parte dos esquemas não é algoritmos” (VERGNAUD, 1996, p. 16).

Vergnaud (1983) classificou os problemas de multiplicação em três diferentes subtipos: 1)

Isomorfismo de Medidas – consiste na simples proporção direta entre duas medidas: divisões

iguais (p. ex., pessoas e objetos), preço constante (p. ex., mercadorias e preços), velocidade uniforme (p. ex., duração e distância) etc; 2) Produto de Medidas – consiste na composição cartesiana de duas grandezas26 em uma terceira grandeza: cálculo de área (largura e comprimento), volume (área e altura) dentre outros e 3) Proporção Múltipla – similar ao produto de medida do ponto de vista das relações aritméticas: uma grandeza é proporcional a duas grandezas independentes, como, por exemplo, a produção de leite de uma fazenda é proporcional ao número de vacas e ao número de dias do período considerado.

Apoiado em sua idéia de campo conceitual da estrutura multiplicativa, Vergnaud (1983) realizou alguns experimentos didáticos aplicando problemas dos três subtipos e apresentada a dificuldade das crianças em cada um deles. Verificou-se, por exemplo, grande dificuldade com o procedimento que envolve inversão das funções diretas das operações para a resolução de alguns

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tipos de problemas27 e o fracasso dos alunos nos problemas envolvendo a composição cartesiana de duas medidas. O pesquisador concluiu que existe a necessidade de se trabalhar com resolução de problemas em diversas situações que envolvam conceitos significativos (já descritos anteriormente) para que os alunos possam avançar na construção da idéia multiplicativa.

Grossi (2003) realizou seus trabalhos baseando-se na idéia dos Campos Conceituais de Vergnaud (1983) e investigou a aprendizagem do conceito de múltiplo, que engloba os aspectos da estrutura multiplicativa dos números naturais. Ela apresenta sete níveis da psicogênese do campo conceitual existentes na estrutura multiplicativa: 1) adição repetida – soma de parcelas iguais;28 2) potência;29 3) tabuada como referência para verificar se um número é múltiplo de outro; 4) multiplicação; 5) divisão, 6) divisão e multiplicação como sendo uma inversa da outra, e 7) fatoração – quando o aluno descobre que um número é múltiplo de outro através da fatoração.

Além disso, [afirma que] a estrutura multiplicativa dos números compreende desde a noção de partição de conjuntos discretos, o que gera as noções de números primos e compostos, a questão das classes residuais, que trata dos restos possíveis quando se divide por um número, a simetria das relações múltiplo e divisor, que culmina com a riqueza dos reticulados dos divisores de cada número natural, cujos ínfimo e supremo são, respectivamente, o máximo divisor comum e o menor múltiplo comum (GROSSI, 2003, p. 110).

Conclui chamando a atenção para a importância da construção, por parte dos alunos, desses níveis, a longo prazo, inclusive para a compreensão do que seja múltiplo. E, que, uma criança começa a construí-los por volta dos três anos e só por volta dos 15, 16 anos chegará ao último nível, se tiver uma orientação adequada.

Nunes e Bryant (1997) realizaram pesquisas que tinham como objetivo entender como as crianças pensavam sobre matemática e a importância do desenvolvimento desse pensamento em suas vidas e apresentaram três facetas que pensam estar no cerne de toda a aprendizagem matemática: as crianças precisam captar um grande número de elementos de conhecimento sobre relações lógicas; elas devem dominar e colocar em uso um conjunto inteiro de sistemas matemáticos convencionais, e aprender determinadas relações matemáticas.

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Veja o exemplo: Papai dirige a 70 km por hora. Quanto tempo gastará para chegar à casa se ainda faltam 350 km para percorrer? (a inversão direta de horas por quilômetros).

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Veja o exemplo: 3+3+3+3 para encontrar o resultado de 3X4. 29

Nos estudos relativos aos conceitos de multiplicação e divisão Nunes e Bryant (1997) buscaram descrever a compreensão das crianças, de forma progressiva, das operações de pensamento, dos sistemas de sinais30 e as situações que estão conectadas a estes conceitos.

Eles distinguiram três situações multiplicativas que envolvem os novos sentidos da

operação (em relação à adição) que uma criança deve aprender e entender:

1. Situações de correspondência um-para-muitos, em que a correspondência é sempre constante como, por exemplo, um carro tem quatro rodas (1-para-4), sendo que “cada vez que acrescentamos um carro para o conjunto de rodas, devemos acrescentar quatro rodas — ou seja, somamos números diferentes de objetos a cada conjunto” (NUNES; BRYANT,1997, p. 143). Os exemplos abaixo ilustram situações de correspondência um-para-muitos:

• Contagem dupla para a aplicação de correspondência um-para-muitos “Temos seis filas e três blocos em cada fila; quantos blocos daria isso?” • Produto cartesiano

“Mary tem três saias e quatro blusas diferentes; quantos trajes diferentes ela pode vestir mudando suas saias e blusas?”

2. Situações que envolvem relações entre variáveis, ou seja, co-variação: as duas (ou mais) variáveis co-variam como conseqüência de uma convenção, isto é, que pode ser alterada por novos acordos,31 ou por uma relação causal32. Nesse caso, a relação entre os conjuntos é “um fator, uma função ou uma terceira variável conectando as duas variáveis” (NUNES; BRYANT, 1997, p. 146). No exemplo a seguir o “preço por quilo” é a terceira variável, que não é o custo real nem o peso real, mas a relação entre elas:

• Um quilo de macarrão custa R$1,10. Qual é o preço de cinco quilos de macarrão?

3. Situações que envolvem distribuições e divisões. Uma série de divisões ou cortes sucessivos mostra uma progressão que difere das situações de

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O sistema de sinais disponíveis exerce um impacto sobre o pensamento delas ao resolver problemas e é preciso estar atento a eles. Por exemplo: a compreensão da área – 5x8cm2, como um produto de medidas.

31 Como no exemplo: um quilo de arroz custa R$2,00, ½ quilo custa R$ 1,00. Essa relação poderá ser mudada. 32

Como no exemplo: um peso de 20 gramas esticará um elástico em 15cm, um peso de 10 gramas esticará 7,5cm. Existe uma relação causal entre as partes.

multiplicação precedentes, e uma diferença da adição se estabelece quando o tamanho das partes deve ser o mesmo para todas as partes.Veja nos exemplos: • 15 doces para dividir entre três crianças;

• Como dividir duas barras de chocolate para quatro crianças?

Nunes e Bryant se referem, também, a um novo conjunto de invariáveis como sendo as exigências lógicas a serem respeitadas ao pensar matematicamente, nesse caso na multiplicação, que inclui “as relações que são introduzidas na matemática por convenções, mas uma vez introduzidas, devem ser mantidas constantes” (NUNES; BRYANT, 1997, p. 24). Exemplos de invariantes seriam a correspondência constante presente nas situações de correspondência um- para-muitos (p. ex., carros e rodas – 1:4) e a relação (p. ex., preço por quilo) que envolve dois tipos diferentes de quantidades como preço e peso.

Em suas conclusões, eles afirmam que as crianças não têm que dominar a adição e subtração antes de começarem a raciocinar de forma multiplicativa e que, a partir de cinco a seis anos, já entendem muito sobre relações multiplicativas. Sugerem, também, que, se fosse explorada mais precocemente, a compreensão das crianças sobre as relações multiplicativas (não somente as situações de correspondência um-para-muitos), mesmo sem quantificação, o seu progresso na compreensão de relações multiplicativas para resolver problemas de quantificação poderia ser diferente.

Para isso, seria necessário que o professor dominasse os conceitos que envolvem o campo conceitual do conhecimento que está em discussão na sala de aula, escolhendo situações apropriadas e levando em consideração o ponto de desenvolvimento já atingido pela criança. Essa questão se justifica porque encontramos professores que têm pouco domínio a respeito do assunto que estão trabalhando em sala de aula, como demonstra a pesquisa realizada por Nehring (1996), quando perguntou a professores de matemática “como se explica/explicam a(s) casa(s) em branco do algoritmo da multiplicação?” 45% deles não sabiam explicar; 31% conseguiram relacionar o resultado da operação com a multiplicação entre os algarismos do multiplicador com os algarismos do multiplicando, mas sem uma explicação lógica; 14% responderam algo sem sentido e somente 10% deram uma resposta com sentido matemático. Esses resultados demonstram que a maioria não sabia justificar a técnica operatória e/ou não compreendia a lógica (regras) do sistema de numeração decimal. A pergunta feita por Nehring (1996) na pesquisa se referia a uma das formas de registro para a resolução do algoritmo da multiplicação que os

professores não conseguiram explicar. Quando resolvemos uma multiplicação, podemos registrar os resultados parciais de duas formas: escrevendo o algarismo zero ou deixando as ordens vazias para indicar o resultado da multiplicação do algarismo das dezenas ou centenas do multiplicador pelo algarismo das unidades do multiplicando, como em 40x2 e 300x2,veja no exemplo abaixo.

Registrando o zero Deixando as ordens vazias

412 x 412 x 342 342 824 + 824 16480 1648 + 123600 1236__ 140.904 140904

Nehring concluiu sobre a importância de o professor conhecer e trabalhar vários registros de representação:

O importante para o sujeito que aprende é o estabelecimento de relações entre os diferentes registros de representações, ou seja, a passagem entre diferentes registros, para isso torna-se importante o professor entender e trabalhar vários registros de representação (NEHRING, 1996, p. 27).

Apoiando-me nesses autores para o meu trabalho específico, em relação à multiplicação, vou considerar a importância dos sentidos e dos significados da idéia multiplicativa em um conjunto variado de situações, para que o aluno possa compreender essa operação.

Além disso, vou considerar que a compreensão do algoritmo dessa operação envolve, por sua vez a aplicação: da base dez — os agrupamentos das quantidades são feitos sempre de dez em dez; do princípio posicional — um mesmo símbolo apresenta valores diferentes dependendo de sua posição; das propriedades da multiplicação,33 mesmo que sua compreensão tenha se dado de maneira informal.

É essa concepção mais ampla da operação de multiplicação que vai nortear a análise do trabalho no GTD e a montagem dos testes que foram utilizados na minha pesquisa.

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As propriedades da multiplicação são: comutativa: o resultado da operação permanece o mesmo quando mudamos a ordem dos fatores; elemento neutro: o resultado da operação permanece o mesmo de um fator quando o zero é o outro fator; associativa: o resultado da operação permanece o mesmo se, em uma operação com três ou mais fatores, multiplicarmos os fatores dois a dois; distributiva: essa propriedade é, normalmente, trabalhada a partir das expressões numéricas, como no exemplo: 4x (2+3) = 4x2 + 4x3; fechamento: o resultado da multiplicação de dois números naturais é sempre um número natural.

CAPÍTULO III