A MATEMÁTICA EM UMA ESCOLA
ORGANIZADA POR CICLOS DE FORMAÇÃO
HUMANA
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Sheila Maris Gomes Goulart
A MATEMÁTICA EM UMA ESCOLA
ORGANIZADA POR CICLOS DE FORMAÇÃO
HUMANA
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, para
obtenção do título de Mestre em Educação.
Linha de pesquisa: Espaços educativos, produção e apropriação de
conhecimento.
Orientadora: Professora Doutora Maria Manuela Martins Soares
David
Belo Horizonte
Faculdade de Educação da UFMG
“Olhar apenas para fora ou para dentro seria dolorosamente insuportável. Se tivéssemos apenas olhos para o que existe — não veríamos o que não existe e cegaríamos para as utopias. Se víssemos apenas o que não existe — regressaríamos rapidamente a uma imensa caverna de sombras e cegaríamos para a contemporaneidade. Em ambos os casos, perderíamos a capacidade de ver pelos nossos próprios olhos...”
Ao meu pai, que se estivesse presente estaria do meu lado como
AGRADECIMENTOS
A todos que cruzaram meu caminho enquanto realizava este trabalho e que me fizeram melhor
profissional e pessoalmente.
À Manuela Maria David, minha orientadora, que, com muita competência e seriedade, sempre me
mostrou caminhos por mim nunca trilhados.
Ao Vieira, meu marido, meu primeiro incentivador desta jornada e companheiro do início ao fim,
pela sua paciência, suas opiniões e pela digitação cuidadosa de cada palavra deste texto.
À Tânia Margarida Lima por me fazer crer que seria possível.
Agradeço também à Jurema, Roberto, Luiza Lage, Marli e Joel, funcionários do Centro
Pedagógico e da Faculdade de Educação, sempre solícitos em resolver minhas dificuldades e
necessidades.
Aos colegas e professores do Programa da Pós-Graduação da Faculdade de Educação, pelos
momentos de debate e crescimento profissional.
Às minhas filhas, Andréia e Mariana, e à minha mãe, pela compreensão das ausências e nãos
constantes.
Ao Núcleo de Matemática, que me permitiu uma entrega total ao trabalho durante grande parte da
elaboração.
Minha especial gratidão à professora Wânia e aos alunos do GTD de matemática que
RESUMO
Este trabalho pretende trazer uma contribuição para as discussões que se fazem, no campo da
educação, a respeito do ensino de matemática em escolas organizadas por ciclos de formação
humana. Ele investiga como uma escola de ensino fundamental se organiza para atender às
demandas apresentadas pelos alunos em relação à aprendizagem de matemática. Para tanto, foi
observado o trabalho realizado com um grupo de alunos que apresentava dificuldades com a
operação de multiplicação. Durante a observação foram aplicados pré-testes e pós-teste e feitas
entrevistas individuais com os alunos e professora envolvidos. Os dados coletados são analisados
buscando responder como as alternativas propostas pela escola atenderam às demandas dos
alunos em relação à compreensão do algoritmo da multiplicação. As entrevistas buscaram
compreender o significado que o trabalho teve para os alunos e para a professora. Apoiamo-nos
em Vergnaud e em Nunes e Bryant na descrição dos processos e significados que foram
considerados como necessários à compreensão da operação de multiplicação nesta pesquisa.
Utilizamos os referenciais de análise de Mortimer e Scott e de David para caracterizar o tipo de
interações observadas no trabalho com esse grupo e para discutir a sua contribuição para os
avanços percebidos nos alunos. Esses avanços foram identificados através das interações em sala
de aula e dos resultados nos testes. Os resultados desta pesquisa apontam para a importância: de
novas organizações dos tempos e espaços escolares, ao verificar que as características daescola
contribuíram para um melhor desenvolvimento e uma melhor compreensão do algoritmo da
multiplicação por parte dos alunos; das interações em sala de aula para uma melhor performance
dos alunos ao final dos trabalhos; dos olhares em relação às dificuldades apresentadas pelos
ABSTRACT
The objective of this work is to contribute to the discussions, in the field of education, of the
teaching of mathematics in schools organized in human formation cycles. It investigates how a
high school is organized to meet the students’ demands in learning mathematics. In this way, the
work carried out with a group of students who presented difficulties with multiplication was
observed. During this observation, pre-tests and post-test were applied, as well as individual
interviews with the students and the teacher involved. The data collected was analyzed in order to
answer how the alternatives proposed by the school satisfied the students’ requirements. The
interviews sought to understand better the significance of the work for both teacher and pupils.
The descriptions of the processes and significations, considered as necessary to the
comprehension of the multiplication operation in this work, were based on Vergnaud, Nunes and
Bryant. Mortimer, Scott and David’s analysis references were used to characterize the type of
interactions observed in the work carried out with this group, and also to discuss its contribution
to the students’ progress. This progress was identified through the classroom interactions and the
results of the tests. The results of this research point to the importance of: new ways of
organizing school space and time, as they verified that the school’s organization contributed to
the students’ progress and better understanding of the multiplication operation; the interactions in
the classroom towards the students’ improved performance at the end of activities; the views
related to the students’ difficulties in facing problems in a shared process in the school
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - Grade de horário das aulas do 3º ano... 66
FIGURA 2 - Tipos de erros da Questão A... 100
FIGURA 3 - Tipos de erros da Questão B... 101
FIGURA 4 - Tipos de erros da Questão C... 102
FIGURA 5 - Tipos de erros da Questão D... 104
FIGURA 6 - Tipos de erros da Questão E... 106
FIGURA 7 - Tipos de erros da Questão F... 111
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - Trânsito dos alunos – GTD de matemática do II Ciclo... 23
TABELA 2 - GTD de multiplicação – 2º semestre... 67
TABELA 3 - Freqüência de atendimentos durante as observações feitas no GTD... 79
TABELA 4 - Número de acertos e porcentagem de acertos por aluno... 98
TABELA 5 - Comparação do número de acertos do pós-teste... 119
TABELA 6 - Resultado do pós-teste dos alunos do GTD de matemática... 120
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO... 12
CAPÍTULO I – Justificativa e objetivos da pesquisa... 14
1.1. Escola Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG e sua organização... 16
1.2. Dificuldades de aprendizagem... 24
1.2.1. De diferentes lugares, diferentes olhares e diferentes explicações?... 25
1.2.2. Dificuldades de aprendizagem e a educação matemática... 31
1.2.3. O olhar do C P para as dificuldades de aprendizagem... 33
1.3. O algoritmo da multiplicação: sua importância escolar... 37
1.4. Objetivos da pesquisa... 42
CAPÍTULO II – A construção teórico/metodológica ... 43
2.1. O processo de aprendizagem na visão sócio-histórica ... 43
2.2. Implicações da visão sócio-histórica no ensino de matemática... 47
2.3. Referenciais de análise para as interações na aula de matemática... 50
2.4. O aprendizado da operação de multiplicação... 56
CAPÍTULO III – O contexto do trabalho... 63
3.1. A Escola ... 63
3.2. O II Ciclo... 64
3.2.1. O GTD e a formação do grupo de multiplicação... 65
3.3. Os participantes da pesquisa... 67
3.3.1. A professora... 67
3.3.2. Os alunos... 68
3.3.3. Os ajudantes/funcionários da Escola... 68
CAPÍTULO IV –A análise dos dados... 70
4.1. Procedimentos de pesquisa adotados... 70
4.3. A dinâmica e as interações em sala de aula... 77
4.4. A análise comparativa dos testes... 90
4.4.1. Os resultados das questões do pré-teste e do pós-teste... 93
4.4.1.1. Acertos nas questões... 94
4.4.1.2. As soluções apresentadas pelos alunos ao resolver cada questão... 98
4.4.2. Comparação dos resultados da aplicação do pós-teste em diferentes momentos.... 118
4.4.3. O desempenho dos alunos do GTD em relação à turma regular... 119
CONSIDERAÇÕES FINAIS... 122
REFERÊNCIAS... 126
INTRODUÇÃO
A pesquisa em educação matemática tem propiciado novas perspectivas de análise das
práticas pedagógicas, em particular no que diz respeito a questões relacionadas ao
desenvolvimento e à aprendizagem. Ela tem influenciado mudanças de postura em relação ao
ensino de matemática, provocadas pelas demandas que o desenvolvimento da sociedade lhe tem
apresentado. Por exemplo, a priorização do trabalho em equipe, e do desenvolvimento de
habilidades de análise e síntese, dentre tantos outros. A escola e os professores têm buscado se
organizar sob uma nova ótica que pressupõe que os fatores socioculturais influenciam no
desenvolvimento e aprendizagem dos alunos.
As situações didáticas precisam ser analisadas de acordo com essa nova ótica para
compreendermos melhor como acontecem, quais suas características e como contribuem para a
aquisição e evolução dos conhecimentos dos alunos ou os dificultam. Dos professores, espera-se
que saibam respeitar os ritmos diferentes, isto é, que saibam agir de acordo com e o que cada
criança pode fazer e entender e com o que elas ainda não dão conta de compreender sozinhas.
Pesquisadores em educação matemática vêm tentando responder a questões como: quais
as condições essenciais para que se possa propiciar a apropriação do saber por parte dos alunos?
Como os professores estão se preparando para estabelecer relações que propiciem avanços
cognitivos aos alunos? Que interações estão se estabelecendo em sala de aula e como estão
contribuindo para o significado que os alunos estão atribuindo ao conhecimento escolar?
Partindo dessas mesmas questões, esta dissertação desenvolve-se na Escola Fundamental
do Centro Pedagógico da UFMG — CP —, em Belo Horizonte (MG), em uma turma com um
trabalho diferenciado. Esse trabalho diferenciado faz parte de um projeto de ensino da Escola que
procura atender demandas dos alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem específicas.
Vou investigar o que está ocorrendo com o desempenho e compreensão do algoritmo1 da
multiplicação em crianças que têm dificuldades na construção desse conceito, nessa Escola, que é
organizada por ciclos. A Escola tem proporcionado aos alunos diferentes experiências, por meio
de um projeto que busca novas organizações do tempo e espaços escolares, agrupando crianças
1 Algoritmo “é um conjunto de regras para a obtenção de um determinado resultado a partir de dados específicos e
através de passos descritos com tal precisão que poderiam ser executados por máquina”, como diz Knuth (1977)
que apresentam as mesmas dificuldades, com a proposta de contribuir para a construção do seu
conhecimento.
Focalizarei o estudo do algoritmo da multiplicação que foi trabalhado com um grupo de
alunos do 3º ano escolar (I ano do II Ciclo) em um espaço diferenciado denominado Grupos de
Trabalho Diferenciado – GTD. Todos os alunos já tinham estudado o assunto anteriormente, em
aulas regulares, apresentaram alguma dificuldade, identificada pelos seus professores, e foram
encaminhados para um trabalho adicional, que ocorreu durante duas aulas semanais, no 2º
semestre de 2003.
O trabalho está dividido em quatro capítulos. No Capítulo I, delimitei o problema de
pesquisa e justifiquei o meu interesse em aprofundar o tema escolhido. Busquei identificar como
as dificuldades de aprendizagem são vistas por diferentes áreas do conhecimento em geral e pela
educação matemática, em especial. Apresentei o olhar da escola onde a pesquisa foi realizada
diante das dificuldades de aprendizagem. E, finalmente, explicitei a concepção de dificuldades de
aprendizagem que adotei durante a pesquisa.
No Capítulo II, apresento os referenciais teórico-metodológicos que fundamentam as
análises realizadas.
No Capítulo III, apresento o contexto da pesquisa e, no Capítulo IV, discuto os
procedimentos metodológicos utilizados — testes, entrevistas e observações — e analiso como
foi desenvolvida a compreensão do algoritmo da multiplicação em crianças que apresentaram
dificuldades na construção desse conceito.
Nas Considerações Finais, faço uma apreciação dos resultados obtidos, procurando
apontar suas principais contribuições para as práticas educativas no ensino do algoritmo da
CAPÍTULO I
Justificativa e objetivos da pesquisa
Justificar o meu trabalho de pesquisa me obriga prazerosamente a voltar no tempo, ao momento em que iniciei minha carreira profissional. Buscava, já naquela época, respostas para as
dificuldades dos alunos — primeiros alunos —, mas sem o amadurecimento necessário sobre o que via acontecer e sobre como buscar essas respostas.
O grupo de alunos que hoje faz parte desta pesquisa tem um perfil parecido com aqueles
de vinte anos atrás: dificuldades de aprendizagem que, mesmo que façam parte do
desenvolvimento, mas que antes os impediam de avançar nas suas vidas escolares. Toda a lógica escolar daquela época contribuía para a exclusão e repetência desses alunos: uma escola seletiva,
classificatória e que tinha como objetivo maior fazer com que todos aprendessem a mesma coisa,
no mesmo tempo.
Meus primeiros alunos estariam com uma professora inexperiente. À época, o bom senso
me fazia discordar da minha indicação para assumir uma turma de alunos que, de acordo com a
avaliação da Escola, apresentavam dificuldades de aprendizagem. Parecia-me mais sensato deixar
essas crianças com professores experientes. No entanto, percebi que essa não era a lógica ali
presente.
Nessa experiência, que durou oito anos, o diálogo cotidiano com os alunos despertava-me
para novas e diferentes perspectivas. As necessidades dos alunos eram diferentes das opções que
a Escola oferecia e desafiavam-me a mudar, a rever, a repensar meu trabalho e a função da
escola.
Tive o prazer de trabalhar com uma supervisora — Marina Vieira —, que partilhava dos
meus sentimentos e desejos. Nessa Escola, alfabetizamos várias crianças de diversas turmas com
o mesmo perfil, com um material produzido por ela, fruto da nossa vivência, e por nós
organizado de acordo com a demanda de cada turma. Ainda me preocupava pouco com as
diferenças de cada um, meu olhar era voltado para a turma.
Paralelamente a essa experiência, comecei a fazer o curso de Psicologia, o que permitiu
ver os alunos com outros olhares, além da visão de professora. Suas histórias de vida, seus
problemas sociais e afetivos, a dificuldade da inserção social e os seus problemas econômicos
Hoje, percebo que essa emocionante experiência pedagógica muito influenciou a minha
vida como professora e a decisão de produzir materiais pedagógicos adequados à clientela com a
qual trabalhei como escritora.
Em 1984, passei no concurso para seleção de professores do Estado de Minas Gerais e
tive que escolher uma escola para lecionar. Percebi que, apesar de ser a 90ª professora
classificada, ninguém ainda havia escolhido a Escola Estadual Hermenegildo Chaves, localizada
em um bairro próximo ao centro, que atendia, nesse período, somente crianças que já tinham
acumulado vários insucessos em outras escolas. Para mim, aquela era uma situação provocativa,
inquietante e estimulante, que desejava enfrentar. Considerei um desafio e uma oportunidade de
crescimento profissional participar de um trabalho em que todo o grupo de alunos se apresentava
em situação de desvantagem.
Naquela ocasião, acreditava que a inclusão escolar daqueles alunos poderia se dar apenas
com o desejo, a coragem e o trabalho de um pequeno grupo de professores. Ao longo dos anos,
percebi como leituras ingênuas da realidade social são instrumentos perversos de manutenção do
status quo.
A direção da Escola parecia não acreditar que as crianças pudessem avançar em seus
conhecimentos em um ritmo normal, isto é, um ano para cada série escolar. Ao final de um ano, quando todos os meus alunos foram aprovados, foi determinado que eu continuasse com eles.
Prêmio ou castigo?
Trabalhei quase dois anos nessa Escola, com uma mesma turma, e pude vivenciar uma
oportunidade diferente, única. Um ano a mais juntos, alunos e professora, mudou tudo. Já nos
conhecíamos mutuamente. Ao longo do tempo, poderíamos superar dificuldades e limitações
presentes. As crianças compreenderam a oportunidade e se mostravam felizes. Partilhamos juntos
nossas angústias e receios.
Em 1987, minha vida profissional mudou radicalmente, fui trabalhar como professora na
Escola Fundamental do Centro Pedagógico – CP. Meus novos alunos eram muito diferentes dos
primeiros. Poucos eram excluídos depois que entravam para a escola, porque, antes, participavam
de uma seleção que classificava os inscritos em três classes socioeconômicas: alta, média e baixa,
de acordo com a renda familiar apresentada. Somente os melhores alunos classificados nas três
classes socioeconômicas tinham o direito de estudar na Escola. Nesse período, tínhamos poucas
crianças que mostravam dificuldades sempre recebiam ajuda de casa ou de professores
particulares. Tínhamos um ensino voltado para uma elite social.
Durante o período de 1987 até 1992, a Escola promoveu discussões a respeito de sua
função, dentro de uma Universidade, e seus deveres com a sociedade. Nessas discussões
apareciam a necessidade de rever o seu papel social e o desejo de garantir a igualdade de direito
de ingressar na Escola.
Após várias discussões internas e uma pesquisa na Universidade como um todo, a Escola
resolveu adotar novas medidas de ingresso para os alunos. Essas medidas resultaram em uma
mudança radical do perfil dos alunos, o que me motivou, mais uma vez, a querer contribuir para
sanar suas dificuldades escolares.
1.1. Escola Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG e sua organização
Em 1993, o CP mudou a forma de ingresso dos alunos porque acreditava que, se tivesse
seu corpo discente em condições parecidas com a de qualquer outra escola pública, poderia
cumprir melhor um de seus papéis fundamentais, dentro da Universidade, que é ser um núcleo de
renovação educacional, contribuindo para a melhoria do ensino fundamental. E, também,
queria-se possibilitar a todos, que o dequeria-sejasqueria-sem, estudar no CP. A partir dessa data, a Escola optou por
sorteio entre os candidatos inscritos.
Os novos alunos passaram a representar mais fielmente a clientela da escola pública.
Tivemos dificuldades em nos adequar à nova realidade que se apresentava:
• crianças com níveis de aprendizagem, em relação à leitura, muito variados — alfabetizadas, alfabéticas e não alfabéticas;
• crianças que nunca tinham freqüentado escolas;
• crianças que apresentavam dificuldades relativas ao processo de construção do conhecimento, de maneira bastante diferenciada da maior parte do grupo.
Pessoalmente, enfrentei, de novo, desafios parecidos com aqueles do meu início de
carreira. Mas já conseguia vislumbrar novas perspectivas porque, como já foi dito, trabalhara
antes de ingressar para o CP com crianças que, ao longo de sua vida escolar, tinham acumulado
vários insucessos e apresentavam-se, quase sempre, em situação de desvantagem em relação à
Percebemos2 que algumas ações poderiam facilitar a superação de nossas dificuldades.
Como diz Gimeno (2001, p. 27),
é preciso que as escolas sejam facilitadoras e tolerantes para que cada sujeito encontre possibilidades de ser respeitado e possa realizar-se com um certo grau de autonomia, reconhecendo-se sua capacidade e o seu direito de elaborar e perseguir projetos pessoais, além de seu direito à privacidade, à liberdade de expressar-se e à possibilidade de afirmar sua identidade e sentir-se semelhante a que quiser.
Buscamos novas estratégias de ensino-aprendizagem que nos ajudassem a entender e
superar as dificuldades dos alunos relativas ao processo de construção do conhecimento. Por isso,
a partir de 1996, a organização da prática pedagógica do CP sofreu alterações significativas,
enfrentando desafios relativos a “pontos polêmicos: [...], como, por exemplo: a organização atual
dos tempos escolares, a fragmentação do ensino e o isolamento das disciplinas que compõem o
currículo, a avaliação reduzida à medida e a própria nota como expressão de um aprendizado”
(UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 1995, p. 3).
O grupo de professores do CP estudou experiências pedagógicas que vinham ao encontro
das questões citadas acima e se inspirou em propostas como a da Rede Municipal de Ensino de
Belo Horizonte e da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, dentre outras.
A Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte iniciou o seu processo de implantação da
Escola Plural, em 1994, tomando dentro de sua proposta uma nova lógica para a organização dos tempos e espaços de formação:
Os conteúdos escolares, a distribuição dos tempos e espaços se submetem a um objetivo central mais plural: a formação e vivência sociocultural própria de cada idade ou ciclo de formação dos educandos. A lógica do ensino e aprendizado de habilidades e saberes básicos não é esquecida, mas é condicionada à lógica mais global e determinante: a lógica da formação de identidades equilibradas, da vivência da cultura e da socialização apropriada a cada idade homogênea de formação.[...]. A organização por ciclos de idade visa conceder mais tempo para o aprendizado dos alunos, construindo conceitos, valores etc. Assim, há que se definir para cada Ciclo de Formação o que se deseja construir, quais os componentes cognitivos, afetivos, as vivências e convivências. O educando terá um tempo mais longo e flexível que a organização atual, respeitando-se os ritmos diferenciados e diversos do desenvolvimento dos seres humanos (BELO HORIZONTE, 2004, p. 14, grifo da autora da dissertação).
2
A Secretaria Municipal de Porto Alegre (PORTO ALEGRE,1996) organizou o ensino
fundamental em ciclos de formação, como explica em seus Cadernos Pedagógicos (PORTO
ALEGRE,1996), porque encarou a aprendizagem como um direito da cidadania e, também,
porque
respeitar o ritmo de aprendizagem das alunas e alunos significa possibilitar mais tempo de estudo na escola, com atendimentos específicos às suas necessidades ou atividades diferenciadas. [E ainda:] tem na flexibilidade de seus conteúdos, tempos e espaços um instrumento para contemplar as necessidades específicas dos usuários da escola pública; [...] aposta nas relações democráticas, baseadas no diálogo e no convencimento como instrumentos de construção da auto-organização e da autonomia (KRUG, 2001, p. 71, 112).
Nessa organização, os estudantes da Rede Municipal de Porto Alegre foram agrupados
pelas suas fases de formação: infância (seis a oito anos); pré-adolescência (nove a 11 anos) e
adolescência (12 a 14 anos) e sempre avançavam com sua turma durante os nove anos do ensino
fundamental. Os avanços, dentro dessa nova perspectiva, poderiam ser feitos de acordo com três
formas de progressão, variando de acordo com as necessidades de tempos e espaços educativos
de cada aluno.
Progressão Simples: forma de progressão (avanço para o ano seguinte) indicativa de que a criança ou adolescente não apresentou dificuldades durante o ano letivo que se encerra.
Progressão com Plano Didático de Apoio: forma de progressão que inclui algumas atividades extras a serem oportunizadas ao aluno ou aluna pela escola, próximo ano letivo, tendo em vista algumas dificuldades específicas apresentadas.
Progressão com Avaliação Especializada: forma de progressão que inclui atendimentos especializados, inclusive fora da escola, para o trabalho com as dificuldades de ensino-aprendizagem das alunas e alunos (KRUG, 2001, p. 20).
Os alunos e alunas contavam com o apoio de professores itinerantes que os atendiam de
acordo com as demandas apontadas pelas professoras e professores que eram referências da
turma.
Nessa proposta, tornam-se claras as rupturas com a escola seriada:
• reconhecimento de que o respeito à idade de formação é necessário para que a aprendizagem escolar ocorra, não significando que seja suficiente;
• reconhecimento de que é preciso respeitar o repertório comportamental da criança e seus propósitos;
• possibilitar a todas as crianças, igualmente, o acesso ao conhecimento formal.
A exemplo dessas iniciativas, a Escola Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG, em
1996, apresentou também a sua proposta de implantação dos Ciclos de Formação Humana, em
que afirma a urgência de reestruturar os tempos escolares.
A discussão das obras de Wallon e de Vygotsky tem mostrado a necessidade de formações mais interativas, práticas mais voltadas para o desenvolvimento que efetivamente ocorre nas relações sociais, incentivando e referendando práticas que facilitem na escola, momentos de intercâmbio, reflexões e tomadas de decisões coletivas. [...] Para isso, é necessário ir desenvolvendo situações educativas adequadas às situações vividas e não apenas constatando nossos insucessos (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 1996, p. 31).
Nessa época, as principais inovações introduzidas foram a implantação de Ciclos De
Formação Humana, a organização de ensino por meio de projeto coletivo a ser desenvolvido em
cada turma e avaliação do processo de ensino e de aprendizagem.
Os Ciclos de Formação Humana foram organizados, em 1996, em quatro períodos com a
duração de dois anos escolares cada um e, a partir de 2003, em três períodos, com a duração de
dois anos escolares o primeiro período, e, de três anos escolares, o segundo e o terceiro períodos,
denominados ciclos, abrangendo os oito anos escolares do ensino fundamental. Eles agrupam os
alunos de acordo com a idade, objetivando possibilitar condições de desenvolvimento a cada
idade ou fase de formação, propondo uma superação da escola tradicional, que regula o
aprendizado pela cronologia do calendário. Os períodos de formação são definidos, como diz
Lima (2002a, p. 11),
pelo crescimento físico, os processos de maturação biológica e desenvolvimento psicológico que o acompanham, as formas de comunicação, de construção de significado, de expressão, o desenvolvimento das funções psicológicas, tais como a atenção, a memória, a percepção, a imaginação, as formas de pensamento.
Os Ciclos de Formação Humana pressupõem um tempo maior e mais flexível em sua
alguns princípios dos quais tem buscado não se distanciar ao longo do trabalho desenvolvido até
hoje, que são explicitados do seguinte modo:
Rompendo com a referência em anos/séries seqüenciais preestabelecidas, abre-se para buscar garantir, num espaço de formação maior e mais flexível um continuum de aprendizagens, vivências culturais, interações importantes para o grupo social enturmado para compartilhar suas experiências educativas na escola. Trabalha-se, portanto com outro parâmetro — tempo maior e mais flexível; [...]. Podemos reorganizar esses tempos, tendo, num tempo maior, maior possibilidade de concretização da finalidade pretendida (SANTOS, 1996, p. 19, grifo da autora da dissertação).
O projeto coletivo de ensino para uma turma constituiu-se numa organização partilhada e
compartilhada da prática pedagógica, sendo elaborado pelo grupo de professores que nela atuam.
A organização do projeto define temas comuns de ensino, formas de trabalho, as mudanças dos
tempos e espaços escolares em função das necessidades pedagógicas dos alunos e do projeto, e a
elaboração de sistemas comuns de avaliação qualitativa do trabalho pedagógico realizado. Em
relação à avaliação do processo de ensino e de aprendizagem, foi adotada a avaliação qualitativa
descritiva, em que se realiza o registro continuado do desenvolvimento dos alunos nos aspectos
social/afetivo/formação pessoal e cognitivo.
Apesar das inovações introduzidas na implantação dos Ciclos de Formação Humana,
continuamos nos deparando, ainda, com alunos que não conseguiam acompanhar o trabalho
proposto em sala de aula. Buscamos, então, assegurar condições para que a aprendizagem
pudesse ocorrer, por meio de uma nova organização do espaço e dotempo escolar. Procuramos
garantir:
• atividades e ações em novas situações de aprendizagem;
• criação de espaços para a manifestação e aproveitamento da diversidade cultural;
• o respeito aos diferentes ritmos, às formas de aprendizagem dos alunos.
Para atender os alunos que não estavam acompanhando o trabalho em sala de aula, os
professores do II Ciclo (composto pelo 3º e 4º ano escolar e no qual atuo) buscam alternativas de
novas organizações dos tempos e espaços escolares, por entenderem que, nos ciclos, o tempo
escolar toma uma dimensão pedagógica diferenciada, permitindo uma flexibilização da grade
curricular. Baseando-se nessa concepção, organizamos nosso tempo com um horário especial,
garantir o respeito aos diferentes ritmos e formas de aprendizagem e atender às demandas
específicas de cada aluno.
O GTD tem, segundo o Projeto de Ensino do II Ciclo, buscado:
• estabelecer um acompanhamento específico para cada aluno do II Ciclo de Formação Humana;
• superar e/ou amenizar os problemas enfrentados pelos alunos no processo de construção dos conhecimentos nas áreas de língua portuguesa e matemática, basicamente, sem excluir as demais áreas;
• respeitar o ritmo, o tempo e as experiências de cada educando, facilitando a organização coletiva e o desenvolvimento das demais áreas de conhecimento que compõem o currículo do II Ciclo;
• proporcionar um tempo e espaço escolar onde os educandos possam
melhor trabalhar habilidades específicas com o objetivo de atingir as competências por cada área do conhecimento;
• estabelecer uma nova perspectiva para o fracasso escolar, entendendo e
investigando a aprendizagem do aluno com base nos processos sociocognitivos apresentados pelo mesmo e detectados por cada área de conhecimento e pela equipe de professores (SANTOS; GOULART, 2001, p. 4).
Esse horário especial é planejado segundo os diagnósticos das necessidades e demandas
dos alunos.
Os professores do ciclo identificam os alunos que:
• podem avançar, determinando em que aspectos;
• apresentam aptidões específicas;
• apresentam dificuldades quanto ao relacionamento afetivo/social;
• apresentam ritmo diferenciado do restante do grupo, quanto ao seu
desenvolvimento cognitivo na sua área de conhecimento e/ou em outra área por
ele percebida.
Cada professor do ciclo assume um grupo de trabalho, fazendo um acompanhamento
O aluno permanece em um determinado grupo somente o tempo necessário para avançar
nos aspectos previamente diagnosticados, quando nova avaliação é feita, outras demandas
surgem, e o processo de organização dos grupos recomeça.
A avaliação dos trabalhos e a troca de informações ocorrem em reuniões semanais.
Busca-se avaliar o avanço individual das crianças e de cada uma em relação ao Busca-seu grupo de trabalho.
Procura-se diminuir as diferenças de aprendizagem dando um suporte maior para aqueles alunos
que apresentam mais dificuldades para continuar avançando em seus processos de aprendizagem.
Paralelamente às discussões sobre a criação do GTD, o nosso grupo de professores de
matemática vinha discutindo o trabalho que estávamos desenvolvendo e seus resultados em sala
de aula. Buscávamos trabalhar numa perspectiva em que eram consideradas as idéias dos alunos,
permitindo o desenvolvimento das operações lógico-matemáticas, a participação de forma ativa, a
construção do conhecimento, a exploração de situações do cotidiano e aquisição de competências
para viver em sociedade. Para isso, as atividades eram planejadas com o objetivo de tornar os
alunos mais criativos, com capacidade de julgar, tomar decisões e buscar informações.
Percebemos, assim, que precisávamos de outros espaços para atender a demandas específicas da
matemática que surgiam a cada etapa, como também vinha sendo discutido nos outros ciclos, de
uma forma mais geral. A compreensão dos princípios fundamentais do sistema de numeração
decimal — os agrupamentos de 10 em 10 e o valor posicional dos algarismos — e a compreensão
do algoritmo de multiplicação são exemplos de demandas específicas que surgem freqüentemente
no II Ciclo.
As discussões no ciclo vieram, desse modo, ao encontro dos anseios do Núcleo de
Matemática, porque teríamos outros espaços, outras estratégias, possibilitando os avanços
considerados necessários para alguns alunos que apresentavam dificuldades como as descritas
anteriormente. Tínhamos consciência de que as estratégias utilizadas até então não tinham sido
suficientes para que todos pudessem avançar em seus conhecimentos, como o grupo de
professores de matemática desejava e acreditava ser possível. Esse era, para nós, um caminho real
a ser construído.
A partir de 1998, o trabalho foi implantado em toda a Escola com o nome de Grupos de
Trabalho Diferenciado. Às vezes, temos até 14 grupos de alunos em cada ciclo, trabalhando
segundo os diagnósticos, as necessidades e as demandas do ciclo. Ao propormos esse trabalho,
compreensão mais global do processo ensino-aprendizagem, em que se acreditava nas interações
entre os indivíduos para o desenvolvimento pleno do ser humano (REGO, 2001).
Há indícios de que o GTD é um espaço privilegiado para a aquisição de conhecimentos,
em demandas específicas. Um dos sinais são as mudanças freqüentes, em curtos espaços de
tempo, de alunos nos GTD de matemática, indicando que as dificuldades por eles sentidas
inicialmente foram sanadas, já que eles só permanecem em um determinado GTD enquanto suas
dificuldades não forem vencidas, sugerindo que o tipo das interações verbais nesse espaço pode
ser diferente daquele usual em sala de aula.
Durante o ano de 2002, por exemplo, as crianças transitaram pelos grupos, conforme suas
necessidades e demandas, e a Tabela 1 mostra o movimento ocorrido nos grupos da área de
matemática com os quais estivemos mais diretamente envolvidos até o mês de julho. Esses dados
foram retirados dos relatórios e das tabelas que são organizados pelo grupo de professores, ao
longo do ano, e mostram o número de alunos que participaram dos GTDs de matemática do II
Ciclo, naquele ano.3 Essa tabela nos dá apenas a freqüência de cada GTD de matemática em cada
momento, mas não nos mostra uma informação mais completa sobre o percurso de cada aluno,
por exemplo, de qual GTD ele participou antes (linguagem, ciências, educação física, dentre
outros) e para qual ele foi encaminhado após sair de um determinado GTD de matemática.
TABELA 1
Trânsito dos alunos – GTD de matemática do II Ciclo
Grupo Início dos trabalhos (Março) Entrada durante o semestre Saída durante o semestre Término do semestre (Julho)
Subtração 1* 14 14 28 -
Subtração 2 15 11 25 1
Multiplicação 14 38 40 12
*Término: julho de 2002.
Fonte: Relatórios e tabelas dos grupos de trabalho em matemática.
A Tabela 1 mostra que, no grupo de multiplicação, por exemplo, houve uma entrada de 52
alunos e uma saída de 40, no semestre. Esses 52 alunos apresentaram dificuldades nesse conteúdo
específico durante o semestre, por isso, foram incluídos no grupo de matemática, mas aqueles que
3 Desde o início do projeto até hoje, existe uma demanda pela formação de grupos de matemática, em todos os
apresentaram avanços em relação às suas dificuldades foram para outros grupos de trabalho,
demonstrando que a maior parte das crianças que freqüentou esse GTD teve a oportunidade de
trabalhar um assunto em que apresentava dificuldade de avançar em seus conhecimentos.
Portanto, tais dados reforçam a idéia de que o GTD pode ser uma alternativa importante no
processo ensino-aprendizagem.
Para entender como as crianças podem ter avançado em seus conhecimentos matemáticos
por influência do GTD, torna-se necessário esclarecer, primeiramente, o que se entende por
dificuldades de aprendizagem em matemática. Para isso, irei percorrer alguns caminhos da literatura no que se refere às dificuldades de aprendizagem e, posteriormente, às dificuldades de
aprendizagem em matemática.
1.2. Dificuldades de aprendizagem
As dificuldades de aprendizagem apresentadas pelas crianças têm sido alvo de exploração
científica, mas, apesar de não se tratar de uma questão nova, apresenta-se ainda como uma
questão não resolvida, justificando investigações como a que aqui nos propomos fazer.
Ao longo dos anos, têm sido utilizados diversos critérios para caracterizar o que se
entende por dificuldades de aprendizagem. No entanto, o baixo rendimento e/ou o fracasso
escolar têm sido os indicadores mais comuns para identificar as crianças com dificuldades de
aprendizagem. As conceituações encontradas a esse respeito demonstram que, com o passar do
tempo, os olhares foram se modificando, mas que, na maioria das vezes, continuam voltados para
o mesmo lugar.
Em muitas das perspectivas encontradas, o aluno é o único responsável por suas
dificuldades, como teremos oportunidade de verificar ao longo do texto. Poucas vezes a escola, a
sociedade ou a família são incluídas como contribuintes para as dificuldades do aluno.
Carvalho (1997, p. 12) diz que a dificuldade em aprender é normalmente associada aos
erros cometidos em realizações escolares, unindo-se à idéia de fracasso, como se fossem causa e
Encontrei diferentes perspectivas, termos e expressões na literatura acadêmica para
expressar as dificuldades de aprendizagem apresentadas pelas crianças na escola. De acordo com
as áreas de especialização, vão aparecer termos como fracasso/sucesso, erro, distúrbios de
aprendizagem. Os termos são direcionados para um ou outro aspecto, de acordo com o contexto
ou o momento histórico. Ao tentar entender as diferentes perspectivas, todos os termos, cada um
com a sua especificidade, serão considerados de alguma forma como representações das
dificuldades de aprendizagem.
A medicina, a psiconeurologia, a psicologia, e a sociologia, dentre outras, como a própria
pedagogia, dão contribuições valiosas que me permitem uma reflexão, ainda que com caráter
exploratório, do percurso histórico das diferentes perspectivas sobre dificuldades de
aprendizagem. Essa reflexão tem por objetivo uma melhor compreensão dessas diferentes
perspectivas e das mudanças/avanços científicos no campo da cognição, considerando a
complexidade do processo de aprendizagem, para então buscar responder algumas das
indagações que tenho feito ao longo da minha vida profissional a respeito dessa questão.
A seguir, irei percorrer alguns desses caminhos da literatura sobre as dificuldades de
aprendizagem, iniciando no século XIX até os dias de hoje, no Brasil.
1.2.1. De diferentes lugares, diferentes olhares e diferentes explicações?
Iniciarei o breve percurso pela área médica, em que a questão foi, em determinado
momento, tratada como uma anomalia ou o resultado da subnutrição, passando pela psicologia, e
a preocupação com a psicometria, e pela psicanálise, tratando os alunos como problemáticos, até
a sociologia, abordando a questão do ponto de vista da idéia da carência/deficit cultural. Nos dias de hoje, encontram-se na literatura importantes contribuições de educadores4 com um novo olhar
sobre as dificuldades de aprendizagem, mostrando a complexidade da questão e das relações
entre aprendizagem e erro/fracasso escolar.
Voltando ao final do século XIX e início do século XX, quando as dificuldades de
aprendizagem e o fracasso escolar eram denominados distúrbios de aprendizagem, os médicos
eram as autoridades responsáveis pela prescrição de normas de conduta aos cidadãos, e eles
sugeriam ser a escola pública o melhor lugar para “domesticar os ímpetosselvagens e rebeldes
4
das crianças” (CORRÊA, 2000, p. 30). Patto (1990, p. 78) afirma que “nessa época alguns
médicos-psicólogos realizaram uma trajetória institucional decisiva para os rumos que tomou a
explicação do insucesso escolar e o tratamento que passou a ser-lhe dispensado”, porque, dos
hospitais psiquiátricos, os médicos chegaram às coordenações de equipes de atendimento escolar
das secretarias de educação, onde coordenavam os trabalhos de atendimento escolar. A criança
que não conseguia aprender era considerada como “anormal. A explicação para o fracasso escolar é, então, atribuída a anomalias genéticas e orgânicas” (CORRÊA, 2000, p. 31, grifo da
autora da dissertação). Acreditava-se que elas eram produzidas no início do desenvolvimento das
pessoas, sendo difíceis de ser modificadas posteriormente, com poucas possibilidades de
intervenção, tendo, assim, uma “concepção determinista do desenvolvimento, sobre a qual se
baseava qualquer tipo de aprendizagem” (MARCHESI; MÁRTIN, 1995, p. 7).
Nessa época, na área médica, por meio da psiconeurologia, surgem expressões como
dislexia, discalculia, Disfunção Cerebral Mínima – DCM, dentre outras. Se a dificuldade era
centrada na leitura chamava-se dislexia. A não-aprendizagem de uma habilidade ou deficiência
na área da matemática denominava-se discalculia. A DCM era identificada inicialmente como
uma lesão cerebral cujos sintomas incluíam desatenção, dificuldades de coordenação motora,
hiperatividade e desordem da memória e do pensamento. Uma grande parte dos alunos que
apresentavam alguma queixa escolar era vista como DCM. Cyppel5apud Corrêa (2000) comenta que parecia que convivíamos com uma população de anormais, já que 40% das crianças em idade
escolar eram rotuladas de DCM.
Nos anos 1960 e 1970, no Brasil, abrem-se espaços para o surgimento de várias
concepções a respeito das dificuldades escolares dos alunos, ligados à implantação da política de
universalização do ensino. Um grande número de alunos das chamadas camadas populares
começou a freqüentar as escolas públicas, e parte deles não acompanhava o processo de
alfabetização. Aparece, na década de 1970, também entre os médicos, a discussão da
interferência da nutrição no sucesso/fracasso escolar. A desnutrição é apontada como sendo um
fator de fracasso escolar, com alterações orgânicas quando ocorridas principalmente no período
pré-natal e nos seis primeiros anos de vida. Hoje, pesquisas têm mostrado que a desnutrição não
5
explica o fracasso escolar. Leite6apud Correa (2000, p. 34) afirma que a literatura demonstra não ser possível estabelecer uma relação direta entre subnutrição e rendimento escolar.
Paralelamente, a psicologia vem apresentar uma explicação do fracasso escolar via testes
de habilidade mental, os chamados testes de QI – Coeficiente de Inteligência, que verificavam a
presença ou ausência de determinadas habilidades no aluno. O teste de QI buscava substituir a
visão médica e neurológica por um instrumento de caráter quantitativo, cujas mensurações
delimitavam os diferentes níveis de atraso.
Desse modo, a psicologia continuou contribuindo para a promoção da desigualdade entre
os alunos, pois identificava e promovia os mais capazes, isto é, aqueles que apresentavam as
habilidades necessárias ao aprendizado, de acordo com os testes. Ela procurava explicar o
fracasso escolar do aluno sem discutir o seu processo de aprendizagem, numa tentativa de
satisfazer as demandas escolares e familiares, que queriam soluções para as dificuldades de seus
alunos/filhos. Nessa época, foi introduzido o período preparatório, no início da vida escolar,
quando eram treinadas habilidades para que o aluno ficasse pronto para ser alfabetizado.7
Carraher (1989), mais tarde, ao estudar os resultados dos testes de QI refere-se a eles
dizendo que
não há evidência de que o nível de QI possa ser tomado como uma medida de um traço que causa melhor desempenho escolar [..], há estudos que indicam claramente que a maior exposição à escola resulta em melhor desempenho nos testes de QI [...], a variância comum entre QI e desempenho escolar não é explicada simplesmente pela classe social e pela educação materna (CARRAHER, 1989, p. 28).
Isto é, a medida de QI de uma pessoa é passível de ser melhorada, não tem um valor prefixado e,
portanto, nunca poderá ser tomada como determinante do seu sucesso escolar.
A psicanálise, difundida inicialmente entre os médicos, também trouxe sua contribuição
mudando algumas concepções sobre as dificuldades de aprendizagem, quando passa a considerar
que
o comportamento do aluno e seus desvios são influenciados pelo afeto e foge ao controle consciente. [...] O fracasso escolar é tomado como manifestação sintomática do aluno. [...] O aluno que fracassa na escola, antes visto como
6 LEITE. Alfabetização e fracasso escolar. 7
anormal e doente, a partir da contribuição da psicanálise é visto como
problemático (CORRÊA, 2000, p. 44, grifos da autora da dissertação).
Por sua vez, a sociologia tem forte penetração no país, na década de 1970, dando sua
contribuição ao considerar as diferentes culturas a que os indivíduos pertencem para explicar o
fracasso escolar. Nessa perspectiva, a privação cultural é apresentada como uma das possíveis
explicações para o fracasso escolar.
A partir dos resultados de centenas de pesquisas, em sua maioria fiéis ao modelo experimental, [...] esta “teoria” afirmou, em sua primeira formulação, que a pobreza ambiental nas classes baixas produz deficiências no desenvolvimento psicológico infantil que seriam a causa das suas dificuldades de aprendizagem e de adaptação escolar (PATTO, 1990, p. 94).
Consegue-se perceber que muitas das práticas escolares hoje ainda refletem as
perspectivas acima, lidando com as dificuldades de aprendizagem com o olhar voltado para o
fracasso escolar como sendo um problema do aluno.
No entanto, é imprescindível considerar a influência de outros fatores, que provêm de
campos muitos diferentes, que impulsionaram novas modificações na concepção da deficiência.
Marchesi e Mártin (1995) apontam para a importância do entendimento colocado por diferentes
concepções quando diz que “a distinção entre causas endógenas e exógenas para explicar os atrasos detectados foi, sem dúvida, um passo além na revisão definitiva da incurabilidade como critério básico de todo tipo de deficiências” (MARCHESI; MÁRTIN, 1995, p. 9, grifos do autor).
Até determinado momento podia-se dizer que as concepções apresentadas tinham olhares
diferentes, mas em uma só direção: o aluno como principal responsável pelo seu fracasso. A
partir daí, a literatura passou a nos alertar sobre a importância de rever práticas escolares
refletindo sobre a influência de diversos fatores nessas práticas e sobre novas formas de encarar
as dificuldadesdeaprendizagem que encontramos em sala de aula.
No entanto, segundo Carraher, Carraher e Schliemann (1988), explicar o fracasso tem se
tornado sempre uma
Eles insistem que os educadores não precisam buscar os culpados e, sim, encontrar formas
eficientes de ensino e de aprendizagem. Isto significaria deixar de “tornar natural aquilo que é
historicamente constituído” (CARRAHER; CARRAHER; SCHLIEMANN, 1988, p. 73),
mudando nossas perguntas e formulando nossos problemas sobre as relações e as práticas
envolvidas no processo educacional e não somente sobre os sujeitos, como era considerado
anteriormente.
Carraher (1989) aprofunda a discussão sobre a questão do fracasso escolar, propondo
repensar a maneira de entender as crianças subnutridas e vindas de ambientes culturalmente
desfavorecidos, que aprendem a matemática da rua e fracassam na escola.
E Carraher, Carraher e Schliemann (1989) apresentam a seguinte questão, que mostra bem a complexidade de fatores que intervêm na definição do fracasso/sucesso em determinada situação:
Quando uma solução matemática é negociada na rua [...] ela reflete os rituais da cultura para a situação, não apenas as estruturas matemáticas subjacentes. Mas como é que os indivíduos aprendem esses rituais, cheios de lógica e matemática sem os benefícios da instrução sistemática ministrada por um professor especialmente preparado para tal fim? E que explicações teremos para o fracasso da criança em sala de aula se ela for bem-sucedida nas tarefas cotidianas, que envolvem estruturas lógico-matemáticas? (CARRAHER; CARRAHER; SCHLIEMANN, 1988, p. 20, grifo da autora da dissertação).
Corrêa (2000, p. 55), concordando com eles, quanto à complexidade de fatores que
influenciam no desempenho dos alunos, afirma que o fracasso escolar atribuído a fatores
orgânicos e culturais não considerando outros fatores envolvidos no processo
ensino-aprendizagem, contribui para uma “visão unilateral, preconceituosa e patológica do aprender”.
O fracasso escolar, de acordo com Carraher (1989) e Corrêa (2000), não seria mais do
aluno e, sim, da escola que seria incapaz de identificar as capacidades da criança, de conhecer os
processos naturais que a levam a adquirir o conhecimento, e de estabelecer uma ponte entre o
conhecimento formal e o conhecimento de que ela já dispõe.
Carvalho (1997) aponta determinadas práticas escolares, que atribuem o fracasso àqueles
a quem ensinamos, como responsáveis por não ter havido mudanças no olhar sobre as
dificuldades de aprendizagem dos alunos durante muito tempo. Ele afirma, também, que é
necessário considerar três grandes blocos de variáveis envolvidos no processo de ensino e
são: “alguém que ensina, no caso das instituições escolares, o professor, algo que é ensinado, uma disciplina ou habilidade constante do currículo escolar, e alguém a quem se ensina, os alunos” (p. 22). Se ensinar, para Carvalho (1997), envolve esses três elementos é razoável
considerar a possibilidade de que, quando não há aprendizagem, a causa pode igualmente
encontrar-se em qualquer um dos três ou na combinação de qualquer um deles. Ele acredita que
essas reflexões podem contribuir para que questionemos “preceitos que identificam automática e
inequivocamente erro e fracasso” (CARVALHO, 1997, p. 23).
Souza (1977) diz, que ao olharmos como a escola está organizada e estruturada, em seu
conjunto de relações e interações, podemos compreender a que prática educacional está servindo.
O contexto escolar envolve relações amplas do aluno e seu desempenho, que interferem na
formação do sujeito e na construção do seu conhecimento, por isso,
é necessário constituir-se uma prática sistemática de avaliação dos diversos sujeitos e componentes da organização (escolar) como a atuação do professor e de outros profissionais; os conteúdos e processos de ensino; as condições, dinâmicas e relações de trabalho; os recursos físicos e materiais disponíveis; a articulação da escola com a comunidade, e até a própria sistemática de avaliação. Com tal abrangência, a avaliação escolar possibilita a identificação das dificuldades, dos sucessos e fracassos, apoiando encaminhamentos e decisões sobre as ações necessárias, sejam elas de natureza pedagógica, administrativa ou estrutural (SOUZA, 1997, p. 127).
A prática sistemática de avaliação do contexto escolar visa as
posições, crenças, visões de mundo e práticas sociais de quem os concebe, mas emergem da perspectiva filosófica, social, política de quem faz o julgamento e que dela são expressão. Assim, os enfoques e critérios assumidos em um processo avaliativo revelam as opções axiológicas dos que dele participam (SOUZA, 1997, p. 127).
Assim, é importante ter claras as opções assumidas nos projetos pedagógicos de cada
escola, que poderá manter ou romper com uma concepção educacional classificatória,
discriminatória e seletiva e com uma avaliação que serve de instrumento de controle.
Aquino (1997) também aponta para essa questão do papel da avaliação afirmando que
como instituição. Estão fundados, num só golpe, a avaliação escolar e o aluno-problema — salvação e danação dos educadores (AQUINO, 1997, p. 103, grifo da autora da dissertação).
A educação matemática caminhou, em alguns aspectos e em alguns momentos,
paralelamente às explorações científicas de outras áreas, procurando explicar como as
dificuldades são inseridas no contexto da aprendizagem matemática.
1.2.2. Dificuldades de aprendizagem e a educação matemática
Percebo que as dificuldades escolares na área da matemática sempre estiveram e ainda
estão muito associadas aos erros que o aluno apresenta em seus trabalhos escolares. Entretanto, a
educação matemática tem apresentado mudanças na perspectiva adotada ao analisar as
dificuldades mostradas pelas crianças.
O desempenho revelado pelo aluno tem sido apresentado de forma diferente de professor
para professor, porque, a maneira conforme ele irá analisar os resultados apresentados pelos
alunos vai ao encontro de suas concepções e crenças a respeito da
natureza da Matemática, sobre a melhor forma de ensiná-la e sobre o que significa aprender Matemática [...] alguns estão preocupados, unicamente, em detectar os erros, sem discuti-los com os alunos; outros aproveitam os erros encontrados e retomam o conteúdo em questão, permitindo que os alunos identifiquem suas dificuldades e tentem superá-las; outros, ainda, exploram os erros com os alunos, questionando os limites de validade da resposta dada ou, mesmo, tentando entender como os alunos raciocinam ao resolver a questão (CURY, 1995, p. 40).
Farei um breve relato sobre algumas formas de a educação matemática encarar os erros,
apontando perspectivas do behaviorismo, do processamento de informação e do construtivismo,
com início no século XX até os dias de hoje, perspectivas essas diretamente relacionadas com as
concepções de avaliação utilizadas pela escola.
No início do século XX, o behaviorismo influenciou pesquisas na área da matemática, que
buscavam investigar os erros cometidos em aritmética. A análise era quantitativa, baseada no
número de erros apresentados pelos alunos em determinadas questões. Um exemplo é a pesquisa
que os colaboradores de E. L. Thorndike fizeram classificando os erros cometidos pelos alunos e
organizando escalas de dificuldades que poderiam auxiliar os professores a estruturar atividades
Nos anos 1950, com as pesquisas baseadas no processamento de informação, sugeriam
novos métodos e novas abordagens para as dificuldades apresentadas pelos alunos. As teorias de
processamento de informação baseavam-se na crença de que a mente humana apresentava uma
estrutura semelhante a um computador. Gardner (1996), um estudioso das ciências cognitivas,
concordando com a idéia de que existiam demonstrações de pensamento (grifo do autor) no computador, como afirmavam os estudiosos do processamento da informação, diz:
Se é possível que uma máquina feita pelo homem raciocina, tem objetivos, revisa o seu comportamento, transforma informação e coisas semelhantes, os seres humanos certamente merecem ser caracterizados das mesmas maneiras. Não há dúvida de que a invenção dos computadores nos anos 1930 e 1940 e demonstrações de “pensamento” no computador nos anos de 1950 foram extremamente liberadores para os estudiosos interessados em explicar a mente humana (GARDNER, 1996, p. 8).
O uso do computador, tanto como modelo quanto ferramenta, passou a funcionar como
um suporte para a análise de dados e simulação dos processos cognitivos vividos pelos alunos.
Os procedimentos feitos de maneira incorreta em diferentes atividades eram catalogados
no computador e ajudavam a caracterizar o desempenho dos alunos. Brown e Burton (1978), por
exemplo, foram pesquisadores que desenvolveram um programa de computador — denominado
Buggy — que estudava os erros cometidos pelos alunos, buscando padrão de erros.
Abordagens inspiradas no behaviorismo e no processamento de informação consideravam
os erros com o objetivo de orientar os professores para mudarem as estratégias do ensino,
tornando-as mais eficazes, evitando, assim, os erros dos alunos.
Já a abordagem construtivista, vê o erro como uma possibilidade para o aluno construir o
seu conhecimento. A partir de então a “preocupação com os aspectos culturais, com o papel da
cultura na formação dos conceitos matemáticos e com a influência dos professores e dos colegas
em interação com o aluno” (CURY, 1995, p. 45) passa a estar presente nas novas concepções,
sobre as dificuldades de aprendizagem, que começam a surgir. Ao analisar os erros, posso
explorá-los; considerando-os um estágio necessário natural no processo de aprendizagem, isto é,
eles podem ser considerados como um instrumento para a compreensão dos processos cognitivos
dos alunos.
As mudanças apresentadas pelas pesquisas em educação e em educação matemática têm
influenciado a prática do CP. A Escola mudou o seu olhar em relação às dificuldades que seus
A seguir, buscamos identificar essas novas posturas e suas conseqüências para as práticas
escolares.
1.2.3. O olhar do CP para as dificuldades de aprendizagem
Diversas práticas escolares têm buscado mudanças que consideram como fundamentais
para transformar a tradicional associação entre erro e fracasso, substituindo-a por outras
associações com um sentido mais positivo como: “erro e conhecimento, erro e êxito [...], erro e
verdade, erro e aprendizagem” (CARVALHO, 1997, p. 12). O CP tem demonstrado mudanças
por meio de sua prática e de seus documentos internos e tem considerado novas perspectivas para
encarar as dificuldades apresentadas pelos alunos, considerando que “o sucesso e o fracasso na
escola estão apenas parcialmente associados à aprendizagem dos conteúdos escolares”
(CORRÊA, 2000, p. 55). A ênfase no fracasso vem sendo substituída pelo realce no sucesso a
partir de novas práticas avaliativas. O CP tem buscado organizar e estruturar sua prática
avaliativa de forma aberta a uma diversidade de caminhos e a múltiplas trajetórias. A avaliação
toma dimensões diferentes daquela de classificar os alunos como se explica em documento
interno da Escola.
Num movimento cotidiano vem sendo construída uma concepção participativa, em que as finalidades diagnóstica e formativa vêm se destacando da somativa. [...]o movimento dos ciclos de formação tem sido de construir um referencial não classificatório, visando um acompanhamento do processo educativo, com alternativas diferenciadas de intervenção (GRIFFO; JEBER, 1999, p. 13).
Os professores do CP têm mudado suas perguntas e formulado questões sobre as relações
e práticas do processo educacional, justificando o espaço do GTD em seu projeto de ensino, do
seguinte modo:
Um movimento pedagógico flexível, voltado para o sucesso dos educandos e não para o seu fracasso. É um período planejado para formação de grupos em que os alunos poderão avançar quanto ao seu desenvolvimento, explorando aptidões, interesses comuns e outros aspectos sugeridos pela equipe de professores, e ainda para a formação de outros grupos, visando atender os alunos nas suas dificuldades por áreas de conhecimento (SANTOS, 2001, p. 3).
Para atender os alunos em suas dificuldades por área de conhecimento, o CP tem
investido na avaliação formativa, com o intuito de regular as aprendizagens tal como sugere
tipo de ensino desde que seja “uma prática de avaliação contínua que pretenda contribuir para
melhorar as aprendizagens em curso” (PERRENOUD, 1999, p. 78). A avaliação formativa não
classifica, não pune, não recompensa, ela ajuda o aluno a aprender. A observação deve ser
constante e individualizada para saber o que fazer e como fazer. É importante saber quando usar
instrumentos como provas, testes, ou quando usar a intuição para esboçar planos de ação. Esses
planos de ação contribuirão para a regulação das aprendizagens porque “ensinar é esforçar-se
para orientar o processo de aprendizagem para o domínio de um currículo definido, o que não
acontece sem um mínimo de regulação dos processos de aprendizagem no decorrer do ano
escolar” (PERRENOUD, 1999, p. 78).
O professor, como aquele que orienta e ensina, preocupado com o efeito de suas ações está
sempre as modificando para melhor atingir seus objetivos, principalmente, à medida que
reconhece a diversidade dos aprendizes (PERRENOUD, 1999). A diversidade dos aprendizes é reconhecida via observação das classes, que, nessa perspectiva, são consideradas todas elas
heterogêneas. São heterogêneas quanto aos níveis de conhecimentos alcançados, em suas culturas
familiares, em seus modos de comunicação, de seus registros de língua e do uso de normas. Por
isso, a orientação do processo de aprendizagem deve sempre estar atenta às diferenças e buscar
estratégias para a organização dos currículos, tempos e espaços escolares para melhor cumprir
seus objetivos.
Para que isso aconteça, segundo André (1999), são necessárias:
algumas disposições como a flexibilidade, a criatividade, a coragem de inovar. É preciso ser flexível para pôr em dúvida formas de organização escolar correntes, soluções e caminhos já percorridos. É preciso ser criativo para inventar novas formas de organização e de ação. É preciso ter coragem de correr riscos, dispor-se a experimentar, rever o que foi feito e mudar o que não deu certo. É também nesse momento que ficam mais evidentes as carências na formação profissional dos docentes, a necessidade da formação em serviço, o papel da orientação pedagógica, o valor do trabalho coletivo da equipe escolar (ANDRÉ, 1999, p. 24).
As ações que buscam atender as diversidades dos aprendizes podem, no entanto, reforçar
as desigualdades. Perrenoud (1999) sugere que devemos estar atentos para elas e fala em
diferenciação intencional e diferenciação involuntária. André (1999) apresenta a diferença entre
a primeira está geralmente voltada para beneficiar os alunos; são as
discriminações positivas que procuram atenuar as desigualdades, criando alternativas para ajudar os alunos mais fracos, com dificuldades, com atraso escolar. A segunda configura-se como uma diferenciação selvagem porque se trata de um processo muito pouco consciente e pouco conhecido, com efeitos bastante negativos, já que reforça as desigualdades e a produção do fracasso escolar (ANDRÉ, 1999, p. 17, grifos da autora).
Nessa tentativa de atender as diversidades, Perrenoud (1999) mostra a necessidade de estarmos sempre atentos, considerando alguns aspectos como:
Nem todos os alunos de uma turma têm a mesma relação com a língua e com a comunicação como instrumento de poder, de integração no grupo, de ação sobre o real; [...] Nem todos os alunos têm as mesmas razões para se envolver nos mesmos debates, para se interessar pelos mesmos romances e pelos mesmos contos, para ter vontade de ler ou de escrever os mesmos tipos de textos; [...] Enfim, não há razão para postular uma única maneira de aprender a ler, argumentar, elaborar um texto; [...] de maneira que indivíduos diferentes não mobilizam os mesmos recursos para resolver os mesmos problemas (PERRENOUD, 1999, p. 95).
Por isso, o CP tem procurado estar atento às diversidades apresentadas pelo grupo de
alunos, por meio de estratégias como a nova organização de seus tempos e espaços escolares,
como: um horário especial para grupos de trabalho diferenciado; as reuniões semanais de ciclo;
as discussões coletivas envolvendo professores do ciclo e do ano escolar a respeito dos alunos —
de grupos de alunos ou individuais, de acordo com a demanda; a aplicação e/ou pesquisas de
práticas que possam contribuir para avanços pedagógicos; os estudos e as discussões visando a
construção de novas estratégias. Os professores envolvidos nos Grupos de Trabalho Diferenciado
de matemática também buscam alternativas na tentativa de atender os alunos em suas
especificidades.
Dentro dessa perspectiva o erro pode ser uma valiosa arma, na medida em que permite compreender os diferentes recursos que cada aluno utiliza para resolver seus problemas e, a partir
daí, configurar uma nova atitude diante do erro na avaliação formativa, passando a “considerar o
erro não como uma falta de conhecimento, um deficit ou uma incapacidade do aluno, mas como um produto histórico, uma possibilidade do aluno real, como construtor de um conhecimento
escolar” (PINTO, 1999, p. 57).
Pinto (1999) propõe ainda
produtiva, como um indicador privilegiado para dar uma ajuda personalizada ao percurso escolar do aluno, seria uma via real para o tratamento das diferenças existentes no grupo-classe (PINTO, 1999, p. 48, grifo da autora da dissertação).
Acredito que os professores do II Ciclo permitem ao aluno a possibilidade de errar, na tentativa de melhores respostas, dando-lhes o controle da atividade. Incentivam a criação de
hipóteses, a socialização dos diferentes raciocínios (PINTO, 1999, p. 57), o confronto de idéias e a definição do que está certo ou do que está errado, naquele contexto, fornecendo a orientação
necessária no momento da realização da tarefa para possibilitar a construção do próprio
conhecimento com a participação do coletivo. Os professores acreditam, concordando com Pinto
(1999), que assim possibilitam ao aluno a ampliação das informações a respeito dos
procedimentos utilizados por ele “sobre o erro, sobre a matemática, sobre diferentes conteúdos, e [possibilitam] principalmente conhecer as relações que o aluno tem com a matemática, com a
escola e com o mundo” (PINTO, 1999, p. 63, grifo da autora da dissertação). Isto é, acreditamos
na importância das interações que participam da regulação das aprendizagens, pois colocam o
aluno em “confronto com seus próprios limites e que o levam, no melhor dos casos, a
ultrapassá-los”(CARDINET,8apud PERRENOUD, 1999, p. 99).
Dada a diversidade de perspectivas sobre dificuldades de aprendizagem que foram
apresentadas, cabe, neste momento, precisar com mais clareza o conceito de dificuldade que será
adotado nesta pesquisa, que é também, como eu vejo, o conceito que fundamenta o olhar do CP
para as dificuldades de aprendizagens dos seus alunos.
Dificuldade de aprendizagem não é um distúrbio, deficiência ou deficit. Os fatores orgânicos, econômicos, sociais e culturais estão associados ao conceito de dificuldade de
aprendizagem, que faz parte natural do processo de aquisição de conhecimentos. O aluno não é o
único responsável pelo seu fracasso escolar como a avaliação tradicional determina. É preciso
mudar de postura em relação a ela, investindo em uma avaliação formativa, orientando o
processo de aprendizagem e os planos de ação que, conseqüentemente, contribuirão para a
regulação das aprendizagens. A regulação das aprendizagens, por meio de suas ações, deverá
estar atenta às diversidades dos aprendizes com acompanhamentos mais individualizados. É indispensável conhecer os processos que levam o aluno a adquirir o conhecimento e estabelecer
uma ponte entre o conhecimento formal e o que ele já dispõe. O erro é visto como uma
8