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O CAMERALISMO E O GESAMTSTAAT PRUSSIANO DA PRIMEIRA METADE DO

No documento DICIONÁRIO DE POLÍTICA VOL. 1 (páginas 148-151)

AUTORIDADE 93 da crença na legitimidade do poder do pai Pode

III. O CAMERALISMO E O GESAMTSTAAT PRUSSIANO DA PRIMEIRA METADE DO

SÉCULO XVIII. — Entretanto, na Prússia, estava em andamento um rápido processo de racionalização do Estado. Após a luta vitoriosa do Grande Eleitor contra as castas territoriais, e graças à criação de um exército estável, à gestão direta de uma parte considerável dos tributos, principalmente indiretos, e à incipiente organização de uma burocracia profissional e centralizada (oriunda precisamente de dois setores diretamente dependentes do príncipe, o exército e os impostos indiretos), o segundo grande Hohenzollem, o rei Frederico Guilherme I, estava prestes a dar outro passo, o da fusão das diversas atividades do Estado numa estrutura unitária encabeçada por um órgão central (o General-Direktorium, instituído em 1723), e, em

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última instância, pelo próprio príncipe que guiava e orientava externamente as decisões do Direktorium (sistema de Governo denominado Regierung aus dem

Kabinett). A situação constitucional permitia pois que, à volta da figura do príncipe, se fosse cristalizando uma estrutura institucional unitária e centralizada, dele dependente, mas potencialmente dotada de dinamismo e justificação próprios. Desta maneira, ao interesse privado do príncipe (também entendido em seu aspecto público, político-religioso, de monarca, daquele que governa) se vinha contrapondo e substituindo um interesse mais amplo, mas também mais genérico, mais indiscriminado, mas também mais necessitado de justificação objetiva e sistemática: o do aparelho institucional do Estado. Além disso, as diversas atividades do Governo, que apoiavam tradicionalmente sua unidade na pessoa do príncipe autocrático, tendiam agora a uma coerência mais explícita e direta, mais representativa da participação comum, mais articulada e unitária, a um plano sistemático e previsível da vida do Estado.

A esta transformação da realidade política e social corresponde, a nível do pensamento, mas também, em parte, da prática, a experiência came-ralista que, da própria ambigüidade das situações em que se origina, tira as inevitáveis incertezas e contradições (entre velho e novo) que a caracterizam. Deste modo, já não bastava o estudo setorial do problema financeiro que, ligado à pessoa do príncipe, se reduzia inevitavelmente a mero fiscalismo (da juristische

Steuerliteratur e da Akzisenstreit do século XVII); já não bastava o interesse relevante pela administração e a genérica procura de bons funcionários e de boas práticas burocráticas (como em Seckendorff); já não bastava a simples aceitação das teorias mercanti-listas, desvinculadas de uma clara opção no campo político (como nos mercantilistas austrc-impe-riais). Tudo isso continuava a ser importante, mais ainda, adquiria cada vez maior valor, mas numa visão unitária em que se buscava ligar entre si as diversas peças do mosaico, tornando-as reciprocamente funcionais dentro do plano unitário da vida do Estado em que se inspirava a prática constitucional do momento.

O Cameralismo foi a resposta: uma resposta que se deu dentro de certos limites cronológicos e com as necessárias aplicações práticas. Uma resposta decerto insuficiente sob muitos aspectos, contraditória, mas autêntica e, sobretudo, funcional. Uma resposta que facilitou, na Alemanha, a transição da arte de governar às modernas ciências do Estado.

O termo Cameralismo está ligado evidentemente a uma instituição característica do Estado

patrimonial e do período de luta do príncipe centra as forças intermediárias e locais na fase principal do Estado de castas: a "Câmara", órgão privado do Governo, pelo qual o príncipe, coadjuvado por homens experientes que lhe eram subordinados e fiéis, administrava os próprios negócios. Mais diretamente, porém, o Cameralismo reflete um momento subseqüente, aquele em que a expansão das atribuições e dos poderes do príncipe, pouco a pouco vencedor da resistência das castas, conduz à oposição, dentro da atividade do Estado, entre os negócios "camarários" e os "tributários". Estes indicavam a preeminência — mormente no campo financeiro, mas também no administrativo — da posição do príncipe em ordem à construção do Gesamtstaat; aqueles acentuavam a persistência de uma estrutura descentralizada e articulada do poder, baseada na participação das castas territoriais nos principais negócios do Governo, e a prevalência da antiga sociedade de castas sobre o Estado centralizado e institucional moderno. Em realidade, estes não são senão os termos basilares do conflito constitucional ocorrido nos principais Estados territoriais alemães entre os séculos XVII e XVIII. O fato de que na Prússia tal conflito se tenha resolvido a favor da solução cameralista nos moldes acima sucintamente descritos constitui a explicação mais simples de que o Cameralismo tenha tido, ali, propriamente sua origem, mesmo no meio da ação centralizadora e racionalizante da máquina do Estado prussiano, levada a cabo por Frederico Guilherme I.

Há de resto uma data que deve ser considerada como a data do nascimento do Cameralismo propriamente dito: 1727, ano em que o rei da Prússia instituiu, nas duas universidades de Halle e Frankfurt junto ao Oder, as primeiras cátedras de "ciências cameralísticas".

Isto permite descobrir uma das características peculiares do fenômeno que estudamos, a sua oficialidade, que se revela na relação de dependência institucional (através do ensino universitário específico), em face do Estado, de que era expressão histórica. É assim que, após a definição exata de Cameralismo e sua distinção dos movimentos que o precederam (preparação) ou o seguiram (dissolução), ele há de ser chamado com propriedade "Cameralismo acadêmico".

Os próprios motivos da iniciativa do rei da Prússia revelam mais uma vez a real importância "institucional" do Cameralismo desde a sua origem. O ensino específico das ciências "cameralísticas, econômicas e de polícia" era, com efeito, visto como instrumento indispensável à formação de funcionários competentes, modernos e preparados, "echten Kameralisten", que correspondes-

sem dignamente às exigências do novo Estado, substituindo os já superados juristas. Como se vê, a ligação estabelecida desde o início entre o Cameralismo e a forma histórica do Estado de polícia da Prússia não carece de razões, nem no plano das justificações teóricas e da história do pensamento, nem no das aplicações práticas e da história constitucional.

Mas em que é que se concretizou de fato a experiência cameralista? Substancialmente na resposta teórica, de fundo político, às instâncias concretas que a mesma experiência havia formulado. Da obra dos primeiros professores de Halle e Frankfurt, Gasser e Dithmar, à do último expoente do "Cameralismo acadêmico", Zincke, apenas trinta anos mais tarde, se assiste, de fato, a um rapidíssimo processo de sistematização e organização conceituai da complexa e retalhada matéria cameralista. O motivo condutor de tal processo não foi tanto a introdução de novas temáticas, a proposta de soluções originais, a abertura de novos campos de pesquisa, quanto a adoção de uma perspectiva até então ainda não explorada: a que visava à unificação das diversas ramificações "técnicas" do pensamento político moderno (economia, ciência da administração, ciência financeira, tecnologia produtiva, etc.) num corpo integrado e dotado de uma significação própria. Com isso se pretendia dar uma explicação "mecânica", a partir de dentro, do funcionamento da coisa pública, tomada esta na sua dimensão histórica, concreta, de Estado de polícia, centralizado e unitário, cada vez mais institucionalizado e superior à figura do soberano, tal qual se efetivou na Prússia, na primeira metade do século XVIII.

Não foi por acaso que, dos diversos ramos que constituíam as ciências cameralistas, foi o da ciência de polícia (Polizeiwissenschajt) que assumiu o papel- chave como fulcro de todo o sistema, como síntese da complexa transformação que o nascimento do Estado moderno havia provocado. Apoiada nesta ciência e mantendo um delicado equilíbrio entre a ciência das finanças e a da economia (em sua dimensão tanto privada como pública), a cameralística tornou-se, em conjunto, na obra de Zincke, a verdadeira, a própria doutrina do Estado de polícia prussiano daquela época. Deste Estado ele nos deixou, já não a teorização abstrata e metafísica (quer esta se desenvolvesse em termos teocrático-escolásticos, quer nos termos mais recentes do direito natural racionalista), mas uma explicação das forças concretas empiricamente observáveis e teoricamente mensuráveis: uma explicação "científica", portanto.

A história do "Cameralismo acadêmico" é assaz breve, não porque fossem eliminadas as cátedras

de cameralística das universidades alemãs (aumentaram até em número e perduraram até meados do século XIX), mas porque esmoreceu o significado peculiar da cameralística como ciência global do Estado. Ela não pôde resistir ao esforço de especialização a que foram sujeitas igualmente e em primeiro lugar as diversas ramificações técnicas que abrangia em seu âmbito; cada uma delas se foi desenvolvendo de forma autônoma até se transformar em ciência. À tentativa exaltada e ingênua de aprontar uma ciência unitária do Estado, capaz de abarcar e explicar todas as suas variadíssimas atividades, seguiu-se a proliferação de numerosas e diferentes ciências do Estado, cada uma das quais se limitou a aprofundar um dos aspectos da antiga disciplina unitária.

Por outro lado, isto corresponde, como não podia deixar de ser, a uma certa mudança na ordem constitucional, verificada na Prússia durante a segunda metade do século XVIII, com o advento de Frederico, o Grande, e, na Áustria, na mesma época, após as reformas de Maria Teresa, que se aproveitaram da experiência até então adquirida pelo Estado prussiano. Esta mudança consistiu no ulterior fortalecimento do aparelho estatal, não no sentido de uma centralização das funções e atividades por via da necessidade política de reprimir as resistências locais, mas no sentido de uma descentralização dos órgãos, que são sempre unitários, mas diversificados, e das atividades, sempre movidas do vértice, mas conduzidas por canais diferentes, em virtude da necessidade de tornar cada vez mais eficiente a administração de um Estado cuja estrutura e dimensão unitária fundamental já não eram questionadas, nem precisavam por isso ser defendidas. Assim, depois de separada a justiça da administração, bem depressa se subdividiu o Ceneral-direktorium em vários departamentos, cada um deles competente num tipo de assunto respeitante às diversas atividades do Estado. A necessidade de dar uma explicação unitária e integrada do Estado global, baseada na atividade de polícia, o verdadeiro suporte de toda a estrutura do Estado alemão em determinada fase da sua história, sucede a necessidade de tornar cada vez mais exeqüíveis e funcionais as diversas atividades de um Estado que encontrou agora noutro lugar a sua legitimação. Ao Estado de polícia sucede o Estado de direito. A grande codificação "iluminada", que, após a sua morte, coroará a obra de Frederico, o Grande, é uma confirmação disso.

Em seus limites, a história do Cameralismo é um reflexo desta grande transformação. Adequan-do-se ao novo curso das coisas e às novas exigências, vai decaindo, conquanto perdure sua etiqueta nos livros e nas cátedras universitárias. Justi,

CAPITALISMO 14! considerado o mais eminente cameralista alemão,

Sonnenfels, e iodos aqueles que lhes sucederam, já não são cameralistas em sentido estrito: neles assumiu relevo determinante o interesse monodis-ciplinar. Concentram-se ainda de preferência na ciência de polícia que já não é vista, no entanto, como síntese de toda a experiência cameralista (juntamente com a economia e còm a ciência financeira), mas como momento privilegiado, autônomo, da complexa vida do Estado, como momento digno de estudo, mesmo prescindindo dos seus demais aspectos; quer ela seja estudada como "política econômica", quer como "ciência da administração", quer como verdadeiro e específico "direito policial" em sentido moderno, a via onde se entrou é agora totalmente outra. O "Camera- lismo acadêmico" como pretensão exaustiva de engenharia social acabou: podia (poderia) existir apenas como referência a uma forma de organização da vida pública mecânica, integrada, compacta, como o Estado de polícia.

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