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6. O primeiro ano de docência

6.2. O choque com a realidade

A transição de aluno a professor está marcada pela assunção de um conjunto de normas e valores característicos da profissão docente. A escola e a sala de aula são o cenário e o palco de actuação do novo professor (Flores, 2000).

Veenman (1988) popularizou o conceito de “choque da realidade” (p.143) para se referir à situação por que passam muitos professores no seu primeiro ano de docência. Segundo este autor, o primeiro ano caracteriza-se por um processo de intensa aprendizagem, quase sempre do tipo ensaio-erro, marcado por uma lógica de sobrevivência.

De facto, o professor em início de carreira, tem de enfrentar papéis, situações e exigências inerentes à sua nova posição, assumindo responsabilidades numa realidade que lhe é, simultaneamente, familiar e estranha. Johnston (1994, citado por Marcelo 1994) refere-se a este professor como um “estrangeiro num mundo estranho, um mundo que lhe é, ao mesmo tempo, conhecido e desconhecido” (p.286).

Com efeito, o professor neófito já foi aluno durante vários anos e viu actuar muitos professores que lhes proporcionaram o contacto com múltiplos métodos de ensino e que, muitas vezes, de algum modo os marcaram. O aluno/professor tem, assim, apenas a visão parcial do funcionamento da escola, isto é, na perspectiva de aluno (Marcelo, 1994).

_______________________________________________ Universidade do Algarve

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Escola Superior de Educação Mestrado em Supervisão

69 Ryan (1980, citado por Arens, 1995), sugere que é precisamente na familiaridade, e não na estranheza da situação da sala de aula, que reside a origem de grande parte dos problemas do professor principiante, na medida em que este:

“acha que conhece aquilo em que se vai meter (…). O choque surge quando o professor principiante deixa de ser a audiência e passa a ser o autor. O papel que vira ser interpretado vezes sem conta é agora seu. A cena familiar da sala de aula é invertida e encontra-se numa situação nova surpreendente” (p. 486).

O contacto anterior e prolongado com a realidade da sala de aula pode provocar no neófito uma falsa segurança. Como refere Bullough (1989) “os professores principiantes são muitas vezes seduzidos por uma falsa segurança em virtude da familiaridade do ensino, descobrindo mais tarde que nem tudo é como parece” (pp.143- 144).

O período de iniciação no ensino, sobretudo o primeiro ano, é considerado por alguns autores, como Huberman (1991), Thomas e Kiley (1994) e Lacey (1977), o mais difícil da carreira de um professor, visto que, como já referimos anteriormente, o neófito, tem que desempenhar funções e demonstrar destrezas e habilidades (que ainda não possui) de um profissional, sendo-lhe exigido o mesmo que a um professor experiente.

Os primeiros tempos de profissão são marcados pelo entusiasmo e pela euforia, características inerentes a um jovem professor que se encontra no início da carreira. Imbuído de idealismo, o professor neófito encara as suas novas responsabilidades com optimismo, procurando imprimir à sua prática docente atitudes e valores mais ou menos progressistas interiorizados durante a formação inicial. Encontra-se numa fase de

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descoberta e de exploração da sua nova situação profissional e a sua actuação pauta-se por regras ideais e inovadoras (Huberman, 1992).

Se, por um lado, é um período de descoberta e de aventura marcada pelo idealismo energético, por outro, é também uma fase de dúvidas, de tensões e de conflitos.

A percepção da complexidade da situação da sala de aula e a constatação de que as suas concepções idealistas chocam com o papel que lhe é exigido na prática determinam uma fase de questionamento constante e de algum mal-estar.

O professor em início de carreira possui um optimismo e expectativas irrealistas (Huling-Austin,1992; Schaffer, Stringfield & Wolf, 1992) em relação ao ensino, à educação e ao papel que vai desempenhar, expectativas essas que, inevitavelmente, se desmoronarão quando confrontados com a dura realidade escolar.

A discrepância entre a imagem idealizada que o novo professor faz de si próprio e da sua profissão, e a realidade escolar com a qual se depara, a clivagem entre a formação inicial, essencialmente teórica e “idealista”, caracterizada pelo conhecimento proporcional e a realidade escolar em que o neófito se insere e actua, traduzem, no fundo, as contradições entre teoria e prática, entre o aluno e o professor (Vonk, 1985).

As causas deste choque são diversas. Segundo Veenmam (1988), factores de ordem pessoal e contextual convergem para a emergência deste choque. Segundo Müller (1978, citado por Veenman, 1988) os principais indícios do choque da realidade são: a percepção de problemas (dificuldades e queixas relacionadas com o trabalho), as mudanças de comportamento em sentido contrário às suas crenças e convicções em virtude de pressões externas, e o abandono da profissão (a desilusão pode desembocar num abandono prematuro da profissão).

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71 Estudos feitos por vários autores (Jordell, 1985; Marcelo, 1992; Veenman, 1988; Vonk, 1985) demonstram que as principais dificuldades sentidas pelo professor em início de carreira se situam, fundamentalmente, no plano didáctico, sendo as mais frequentes o controlo disciplinar, a gestão da aula, a motivação dos alunos, o tratamento das diferenças individuais, a avaliação e as dificuldades relativas à escassez ou inexistência de materiais didácticos.

Utilizando a terminologia de Vonk (1985), podemos dizer que as dificuldades dos professores em início de carreira se situam em dois níveis distintos: um “nível micro” – que se reporta aos problemas relacionados com o contacto directo com os alunos e com o clima da sala de aula e um “nível macro/meso” – onde se inserem os problemas resultantes da relação com os colegas, com os órgãos de direcção, com os pais dos alunos e com a própria estrutura organizativa da escola.

O estado de choque advém do desconhecimento de um conjunto de regras, normas e rituais, o que determina o paradoxo do professor principiante: por um lado, sobrevive profissionalmente com um sentimento de insegurança e de incerteza perante aquilo que não sabe e a tentativa de superar as dificuldades encontradas, por outro, sente a necessidade de agir decididamente e dominar a situação, pois a sua imagem, perante os colegas e as escola, está em jogo e tem de mostrar-se confiante (Corcoran, 1995).

Os primeiros anos estão, por isso, marcados pela contínua luta pela identidade pessoal e profissional.