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1 CAPÍTULO

2.3 O consequencialismo na doutrina brasileira: Schuartz e Piscitelli

2.3.1 O consequencialismo sob a ótica de Luis Fernando Schuartz

Para os objetivos deste trabalho, reputa-se assaz pertinente a noção ampla de consequencialismo, tal como assentada por Luis Fernando Schuartz no artigo “Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem”255, representando “(...) qualquer programa teórico que se proponha a condicionar, ou qualquer atitude que condicione explícita ou implicitamente a adequação jurídica de uma determinada decisão judicante à valoração das consequências associadas à mesma e às suas alternativas.” 256.

(...) Nesses termos, denominar-se-á de “consequencialista” não apenas a posição segundo a qual uma decisão D é correta se e somente se não se encontra, com relação a ela, alguma decisão alternativa a que se associem consequências preferíveis àquelas associadas a D. Esse tipo de consequencialismo que será denominado de “forte”, é somente um dos extremos de um conjunto de tipos ordenado de acordo com a prioridade atribuída à valoração de consequências no juízo de adequação de uma determinada decisão judicante, ou, alternativamente, com a exclusividade atribuída a essa forma de valoração na formulação desse juízo.257

Sem maiores divagações teóricas ou resgates de pensamentos anteriores, tampouco fazendo referências aos autores aqui mencionados (Posner e MacCormick), Schuartz ordena diversas espécies de consequencialismo conforme o grau de valoração das consequências. Refere-se à existência de um consequencialismo “forte”, quando

presente em alguns casos, mas vai tratar-se de persuasão através de retórica, e não das modalidades mais moderadas de exposição motivada. (...)” (POSNER, Richard. A. Problemas de filosofia do direito.

São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 199-200.).

255 SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem.

Revista de Direito Administrativo – RDA, n. 248, maio/ago. 2008, pp. 130-158.

256 Idem, ibidem, pp. 130-1. 257 Idem, ibidem, p. 131.

existe prioridade ou exclusividade na ponderação de consequências como determinante para a decisão; e menciona uma modalidade de consequencialismo “fraco”, quando tal valoração tem papel residual.

Defende Schuartz uma concepção particular no sentido de considerar a valoração de consequências um dos elementos constitutivos da fundamentação das decisões, de modo que deve ser inserida e contemplada no âmbito do processo decisório com peso no máximo igual ao peso conferido a argumentos não-consequencialistas. Defende, portanto, a postura calcada em um consequencialismo do tipo “fraco”.

Uma grande contribuição deste autor reside na apresentação do que chama “três tipos ideais de um consequencialismo jurídico à brasileira”, quais sejam, o “festivo”, o “militante” e o “malandro” – melhor detalhados adiante –, classificados conforme o grau de reverência à dogmática e às figuras tradicionais da argumentação jurídica, principalmente o raciocínio analógico e o respeito ao precedente258. Conforme explica, cuidam-se de modelos de comportamentos consequencialistas, sem carga valorativa necessariamente negativa, para a descrição e a investigação empírica das atitudes consequencialistas verificadas na jurisprudência pátria.

Embora o autor não tenha desenvolvido seu modelo de forma mais aprofundada ou utilizado na prática os conceitos que criou – relacionando casos concretos para cada um, exemplificativamente –, sua ideia era que os tipos listados de consequencialismo servissem de parâmetros para a caracterização dos posicionamentos que pudessem efetivamente surgir.

Na concepção desse modelo, a preocupação de Schuartz voltou-se para o uso do consequencialismo como estratégia de “driblar” uma decisão diversa necessariamente calcada em regras prima facie aplicáveis. É dizer, o consequencialismo empregado em detrimento das regras jurídicas. Isso se infere do esclarecimento por ele prestado de que os três modelos têm em comum a “(...) oposição de resistência aos resultados de decisões alternativas às preferidas e determinadas por aplicações prosaicas de regras jurídicas. (...)”259.

Assim, o chamado “consequencialismo residual ou fraco” – entendido como a hipótese na qual a menção às consequências é feita apenas para privilegiar um conjunto

258Idem, ibidem, pp. 150 e ss. Aqui, vale registrar o uso indevido do termo “precedente” (oriundo dos

países de origem anglo-saxônica, com sistema do common law) para referir-se à noção que no Brasil se tem da jurisprudência, isto é, o conjunto de decisões judiciais reiteradas lavrados em determinado sentido. Nada obstante, como essa discussão foge aos limites desta dissertação, será deixada para aprofundamento em outra oportunidade.

de regras, em detrimento de outro(s) igualmente defensável(is) – é menos problemático, em sua visão.

Ingressando na lógica dos modelos, a primeira modalidade é o “consequencialismo festivo”, que “(...) advoga uma ampla des-diferenciação entre aplicação do direito e formulação de políticas públicas, comandada por uma apropriação superficial e seletiva da literatura norte-americana de análise econômica do direito.”260. Utiliza-se da chamada estratégia top-down261 e sua principal característica relacionada por Schuartz diz com a repulsa ao modo convencional de solução de problemas jurídicos por juízes e advogados, calcada em outras teorias e métodos cientificamente credenciados. A principal crítica a essa modalidade deve ser reproduzida pelas palavras do próprio autor:

(...) o consequencialismo festivo, apesar da aparência e da ambição transformadora, é impotente e tende a funcionar entre nós como a mais jovial das ideologias conservadoras: impotente, pelo esoterismo e pela estranheza em relação ao modo de pensar e agir dos juristas e juízes; e ideológico- conservador, pela reatualização e a reprodução de um padrão de argumentação que expressa um dos mais antigos e persistentes vícios do pensamento jurídico no país: o da importação elitista para uso meramente ornamental, ao sabor dos caprichos e das veleidades do usuário, de fragmentos de doutrinas e teorias científicas e filosóficas que se encontram em voga nos centros culturais.262

A segunda modalidade é o “consequencialismo militante”. Mais aliado à tradição do que o “festivo”, mas deficitário do ponto de vista teórico e metodológico, é preocupado em ancorar suas posições em normas e costuma fazer menção aos métodos convencionais de interpretação do direito. Schuartz relaciona o “consequencialismo militante” aos movimentos de neoconstitucionalismo e ao recurso às técnicas de

260 Idem, ibidem, p. 152.

261 Em rápida síntese, cuida-se a estratégia top-down de tipo de raciocínio jurídico, em contraposição à

estratégia bottom-up, ambas descritas por Richard Posner, para referir-se basicamente ao raciocínio dedutivo e não-dedutivo. Pela estratégia top-down, o aplicador do direito fixa as premissas teóricas ou previamente adota uma teoria e, a partir daí, articula toda a crítica, explicação, aplicação, rejeição ou distinção em relação ao direito, de alguma maneira reduzindo a importância do texto normativo. Por seu turno, a estratégia bottom-up preza pela análise do sentido, confere mais peso às regras prima facie aplicáveis. Para maiores detalhes, confiram-se: POSNER, Richard A.. Legal Reasoning from the Top Down and from the Bottom Up. The University of Chicago Law Review, vol. 59, n. 1, 1992, pp. 433- 450. Uma boa explicação sobre essas estratégias também pode ser encontrada em SCHUARTZ, Luis Fernando. A Desconstitucionalização do Direito de Defesa da Concorrência. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo. (Coords.). Vinte Anos da Constituição Federal

de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 761-768.

262 SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem.

balanceamento (método da ponderação) à luz de princípios263, como recurso utilizado com o propósito de invalidar regras, pressupondo uma hierarquia entre ambos. Conforme explana, no “consequencialismo militante”, são grandes os riscos de parcialidade e decisionismo, pois:

(...) O recurso às consequências, tipicamente, é a cartada coringa, lançada sobre a mesa de forma a conduzir a discussão para um terreno no qual todos os gatos são pardos: o sujeito que faz uso do argumento não tem como prová- lo aos demais; mas estes tampouco poderão provar a sua negação.264

Para Schuartz, o motor do “consequencialismo militante” é a simpatia por uma determinada causa, o que, em alguns contextos – ainda segundo o autor –, pode eventualmente implicar algo até desejável ou popular socialmente, embora com certa indiferença no sentido de que a não realização dos efeitos pudesse ser algo não- desejável ou impopular:

(...) Quanto mais amplamente compartilhável for o objetivo normativo a realizar (e.g., maximização do bem-estar ou das liberdades públicas e privadas para o maior número possível de indivíduos), e mais distante estiver a decisão segundo regras da realização desse objetivo, menos questionável socialmente tende a ser a decisão que afastar a aplicação de regras em nome do objetivo que se pretendia implementar. Autênticas situações desse tipo podem efetivamente surgir e, quando surgem, o desfecho ideal é a construção dogmática de uma nítida distinção entre condições que acionam a regra, e condições que autorizam uma exceção à regra, bem como a caracterização do caso concreto como exceção que mereceria o correspondente tratamento. (...)265

Entretanto, logo emenda a sua crítica ao “consequencialismo militante”:

(...) A cantilena dos princípios, que dá o acabamento ao consequencialismo militante, é, desprovida de dogmática, uma ameaça à segurança jurídica, e é difícil evitar a impressão de que o Judiciário, que deveria ser seu maior guardião, tenha, em diversos casos, fraquejado diante da tentação de substituir-se a outros poderes públicos na formulação e implementação de políticas cuja necessidade poucos se atreveriam a negar. O preço que a militância cobra em termos da geração de inseguranças quanto à proteção de expectativas e direitos individuais pode ser bastante elevado sob tais condições, sendo certo que, para a redução das mesmas, não existe um substituto à altura da função jurisdicional. O juiz que faz uso do poder que lhe confere o direito para ponderar interesses na defesa de uma determinada causa da qual se apresenta como simpatizante, desatento aos mecanismos de autocontrole que só a dogmática jurídica poderia disponibilizar, lança-se

263 Para uma interessante crítica ao uso desenfreado de princípios, confira-se: STRECK, Lenio Luiz. O

pan-principiologismo e o sorriso do lagarto. Revista Consultor Jurídico, 22 mar. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-mar-22/senso-incomum-pan-principiologismo-sorriso-lagarto>. Acesso em: 23 mar. 2012.

264 SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem.

Revista de Direito Administrativo – RDA, Belo Horizonte, n. 248, maio/ago. 2008, p. 153.

longe demais e põe seriamente em risco justamente o único valor que lhe cabe defender intransigentemente no estado democrático de direito.266

Por fim, apresenta o “consequencialismo malandro”, o mais sofisticado de todos, utilizado como estratégia argumentativa quando o direito positivo, tal como interpretado e aplicado, não oferece a desejada justificação de uma decisão judicial. Por intermédio dele, na decisão, constroem-se conceitos e distinções (em relação ao que está positivado), que sejam adequadas ao caso concreto e pareçam desde sempre juridicamente admissíveis. Aqui reside a principal característica do “consequencialismo malandro”: longe de caracterizar-se como oportunismo, pretende-se dogmático, ao revelar a solução fundamentando-a como se dentro da regra estivesse e, mais, com pretensão de generalidade, permitindo sua aplicação em casos futuros.

(...) uma estratégia argumentativa que se implementa necessariamente através da dogmática jurídica, mais especificamente, para desconstrução e a reconfiguração dos elementos da argumentação na forma requerida para a fundamentação dogmática da decisão buscada. A malandragem, assim concebida, é um tipo de estratégia que recorre à ordem para promover a desordem e apresentar a desordem como proposta de nova ordem. (...) o consequencialismo malandro cria, redesenha e eventualmente aperfeiçoa a dogmática jurídica para colocar a seus serviços (...)267

Schuartz é da opinião que a modalidade “malandra” do consequencialismo constitui “(...) uma qualidade valiosa sobretudo ante regras amplamente percebidas como inadequadas, por exemplo, que produzam, em série, decisões tidas por injustas ou contrárias a valores progressistas.”268. Explica, ainda, a vantagem dessa estratégia em relação ao pragmatismo, consignando que este último acaba ficando a serviço da e condicionado pela concepção particular do decisor sobre a contribuição das regras e dos entendimentos jurisprudenciais ao bem comum. Isso porque o “pragmatismo malandro” faz parecer que a decisão está calcada no passado, não no futuro, e, ao fazê-lo, muda discretamente o rumo da perspectiva até então em voga. O “consequencialismo malandro” cria direito onde direito não há e – para repetir a analogia utilizada pelo próprio autor – esgarça o tecido da dogmática jurídica.

Caminhando para suas conclusões, alerta Schuartz que todas as modalidades de consequencialismo estão associadas a problemas, apresentam riscos e podem ser utilizadas tanto “para o bem” como “para o mal”. Por tudo o que se expôs, arremata que

266 Idem, ibidem, p. 155. 267 Idem, ibidem, p. 156. 268 Idem, ibidem.

seria exigível restringir o recurso a qualquer das estratégias consequencialistas a hipóteses excepcionalíssimas269.

Outra grande contribuição de Schuartz foi a abordagem do consequencialismo jurídico à brasileira como praxe desvinculada de outros programas teóricos ou filosóficos, especialmente do pragmatismo (filosófico ou o jurídico de Posner) e do utilitarismo. Com isso, avança em relação a outros estudos sobre a evolução jurisprudencial do STF, os quais insistem em fazer a correlação do comportamento aqui observado com o pragmatismo norte-americano, simplesmente importando as teorias sem maiores adaptações à realidade brasileira270.