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O que são as teorias da argumentação e por que a preocupação com elas

1 CAPÍTULO

2.1 Neil MacCormick: a argumentação fundada em consequências

2.1.1 O que são as teorias da argumentação e por que a preocupação com elas

refletir sobre o processo de fornecimento de razões para o convencimento do interlocutor (ou auditório) ou, de forma mais sintética, da apresentação de argumentos persuasivos. Trata-se da atividade de colocar argumentos contra ou a favor de uma tese ou proposição139. Por conseguinte, as teorias da argumentação jurídica cuidam da produção de argumentação em contextos jurídicos, seja na fase de produção de normas jurídicas, seja por ocasião de sua aplicação, de forma concreta ou abstrata (dogmática)140.

138 Idem, ibidem, p. 216.

139 MACCORMICK, Neil. Argumentation and Interpretation in Law. Ratio Juris, v. 6, n. 1, p. 16-29,

1993.

140 Sobre o assunto, confiram-se ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação

Por seu turno, é chamado de justificação o processo de apresentação dos argumentos (razões) que conduziram à decisão, de forma a demonstrar a adequação e a correção das conclusões alcançadas. A justificação não se confunde com a simples fundamentação da decisão141. Esta última é mero requisito de validade das decisões judiciais e para cujo atendimento se reputa suficiente a mera apresentação formal da motivação. Já para que se tenha uma decisão justificada, faz-se necessário que seja embasada em “boas razões”, conforme a argumentação desenvolvida no respectivo contexto (o que sinaliza a inexistência de um padrão único de justificação e que essa depende das condições em que situada).

Há vasta produção intelectual estudando a argumentação. Por não ser esse o escopo central desta dissertação, aqui optou-se por apenas registrar que a preocupação com a argumentação como objeto de estudo existe desde a civilização grega e romana142. Aristóteles (384-322 a.C.) estudou a retórica, e a considerava como a arte de apresentar argumentos com eloquência, de forma persuasiva. Em Aristóteles, “a Retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar persuasão”143. Em seus estudos sobre a retórica, o filósofo grego preocupou-se em identificar melhores técnicas para o discurso alcançar seu propósito em cada situação, pois, não sendo ditos da melhor maneira, os discursos têm sua eficácia comprometida144.

BRETON, Philippe; GAUTHIER, Gilles. História das teorias da argumentação. Tradução de Maria Carvalho. Lisboa: Bizâncio, 2001.

141 CF/88, art. 93, inciso IX: “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob

pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela EC nº 45, de 2004). CPC, art. 458: “Art. 458. São requisitos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.”.

142 Para um panorama da ascensão e declínio do estudo da argumentação, confira-se BRETON, Philippe;

GAUTHIER, Gilles. História das teorias da argumentação. Tradução de Maria Carvalho. Lisboa: Bizâncio, 2001.

143 ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 33.

144 A preocupação de Aristóteles era buscar formas de fazer prevalecer a verdade e a justiça nos discursos

e nas opiniões formadas a partir dele. Com efeito, Aristóteles discorre sobre as paixões como mudanças no estado de espírito da audiência provocadas pelo orador – sistematizou-as como a cólera, a calma, o amor, o ódio, o temor, a confiança, a vergonha, a imprudência, o favor, a compaixão, a indignação, a inveja, a emulação, o desprezo – teorizando que quem discursa deve conhecer bem aqueles que deseja persuadir para poder conduzir habilmente os argumentos e, assim, despertar os sentimentos que deseja em sua audiência. Com efeito, deve-se ter em mente que, por discurso, entende-se “toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase ou por uma seqüência de frases, que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido” (REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins

Durante a maior parte da Idade Média e nos momentos históricos subsequentes, a retórica perdeu seu esplendor, ainda que em alguns breves momentos tenham-se intercalado estudos sobre o tema. No século XX, Chaïm Perelman145 foi o responsável pela renovação do interesse intelectual da retórica. Com o seu Traité de

l’Argumentation: La nouvelle rhétorique (“Tratado da Argumentação: a nova

retórica”146), Perelman retomou o trabalho desenvolvido por Aristóteles, mas renovando-o, o que lhe garantiu o epíteto de fundador da retórica moderna. Concebendo a (nova) retórica de forma mais ampla, como “o estudo das técnicas discursivas que visam a provocar ou intensificar a adesão de certo auditório às teses apresentadas”147, englobou todo o campo da argumentação. Na teoria da argumentação de Perelman, desempenha papel relevante o auditório, definido como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação”148.

Perelman, nas mais de seiscentas páginas de sua obra sobre a nova retórica, enfatiza a argumentação como uma renúncia à força como solução única dos problemas,

Fontes, 1988, p. XIV). Diz-se que a retórica se aplica a todos os discursos que visam a persuadir, o que perfaz uma redundância, na medida em que a linguagem é sempre utilizada como um instrumento para que o homem interaja com outros, em relações nas quais são manifestados sentimentos, ideias, imagens, valores, percepções, posicionamentos, ações, interesses, aspirações, dentre outros produtos simbólicos da mente humana. Aristóteles divide a retórica em três gêneros: o deliberativo, o judiciário e o epidítico (ou demonstrativo), cada um com sua finalidade própria. O primeiro tem o objetivo de persuadir ou dissuadir, tendo como exemplos os conselhos, com uma preocupação para o tempo futuro. No gênero judiciário, procura-se defender ou acusar, formulando juízos sobre um acontecimento passado, classificando-o como justo ou injusto. Já o discurso epidítico tem por fim louvar ou censurar, do que são exemplos os discursos dos políticos, os elogios, os efeitos de estilo, concentrando-se nos fatos presentes. A despeito disso, por muito tempo, a retórica continuou sendo vista com desprestígio, dado que era associada aos sofistas – sábios errantes então malvistos pela sociedade por ganharem a vida dando lições de eloquência, ensinando como jogar com as palavras para se sobrepor aos adversários e transmitindo outros conhecimentos filosóficos para que seus alunos alcançassem seus objetivos nos negócios, nas assembleias e nos tribunais. Platão, por exemplo, considerava a retórica imoral, ao passo que Aristóteles ponderava que essa arte em si não poderia ser tomada como moral ou não. Para aprofundamento, por todos, confiram-se ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro, [1980?]; ______.

Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000; PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova

retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998; REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

145 Chaïm Perelman (1912-1984) concluiu seu doutoramento em direito em 1934 na Universidade de

Bruxelas e em filosofia, em 1938, sobre lógica formal. Foi professor de Lógica, Moral e Filosofia na Universidade de Bruxelas até 1978. É tido como o responsável pela reabilitação do valor filosófico da retórica. Sua grande obra é Traité de l’Argumentation: La nouvelle rhétorique (Tratado da

Argumentação: a nova retórica), editada em 1958, com a colaboração de Lucie Olbrechts-Tyteca, após dez anos de pesquisa sobre o assunto.

146 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica.

Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

147 PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo:

Martins Fontes, 1998, p. 154.

148 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica.

Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 22. Para Perelman, todos os que discursam devem ter em mente o conceito de auditório para poder melhor embasar ou adaptar sua mensagem e atingir seus objetivos.

bem assim como uma maneira de conferir sentido à liberdade humana, pois é condição para que o homem faça escolhas de forma racional.

Com efeito, deixando-se para outro momento o aprofundamento dos detalhes da teoria de Perelman, importa registrar, considerando os propósitos desta dissertação, a importância dos estudos feitos por esse autor no campo da argumentação149. Oportunamente, será analisado o seu pensamento sobre o argumento pragmático150, classificado por ele como espécie de argumento baseado na estrutura do real, isto é, que se relaciona a fatos.

Dito isso, retoma-se a explicação do que Neil MacCormick pensa sobre argumentação.

Fundamentalmente, as teses de MacCormick sobre argumentação jurídica encontram-se na obra Legal reasoning and legal theory (traduzida para “Argumentação jurídica e teoria do direito”151), de 1978, e, posteriormente aprofundadas e

149 Perelman esclareceu a diferença entre lógica e retórica, a primeira ocupa-se das verdades absolutas,

enquanto a segunda é absorvida pelo objetivo de convencer ou obter adesão. Dessa forma, os argumentos lógicos são coercitivos e indiscutíveis, ao passo que a argumentação retórica pode ser questionada, também estando a audiência livre para anuir ou não a um discurso. Para Perelman, toda argumentação pressupõe uma seleção de fatos e valores. Faz parte da escolha das premissas: a) escolha dos elementos e a ordem de apresentação; b) escolha do modo de apresentação; e c) os julgamentos de valor, intrínsecos a todo o procedimento. Igualmente, o orador também seleciona como apresentará as premissas: as formas verbais, as modalidades de expressão de pensamento e as figuras retóricas. Validamente, todo discurso é composto por expedientes argumentativos que interagem entre si, divididos em dois grandes grupos, os quais Perelman denomina processos de ligação e processos de dissociação. Os processos de ligação são

“(...) esquemas que aproximam elementos distintos e permitem estabelecer entre eles uma solidariedade que visa, seja estruturá-los, seja valorizá-los positiva ou negativamente um pelo outro” (PERELMAN,

Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 215), são eles: argumentos quase-lógicos, argumentos baseados na estrutura do real e as ligações que fundamentam a estrutura do real. Os processos de dissociação, por sua vez, são “(...) técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, de separar, de desunir elementos considerados um todo, ou pelo menos um conjunto solidário dentro de um mesmo sistema de pensamento. A dissociação terá o efeito de modificar tal sistema ao modificar algumas das noções que constituem suas peças mestras” (Idem, ibidem, p. 215). Os argumentos quase-lógicos são os

que pretendem uma força de convicção semelhante àquela apresentada pelos raciocínios lógicos, sendo construídos à imagem desses últimos, mas tendo o caráter de não-formais. Já os argumentos baseados na estrutura do real valem-se da realidade “(...) para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se procura promover” (Idem, ibidem, p. 297). Por fim, as ligações que fundamentam a

estrutura do real são os raciocínios expressados sob a forma de exemplos, ilustrações, modelos e analogias.

150 “Denominamos argumento pragmático aquele que permite apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas consequências favoráveis ou desfavoráveis. (...)”. (PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-

TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 303.).

151 MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa Barcellos.

amadurecidas, em Rhetoric and the rule of law (no Brasil, “Retórica e Estado de Direito”152), de 2005.

A teoria da argumentação jurídica de Neil MacCormick propõe-se a não somente descrever como as decisões jurídicas se justificam de fato, mas também a prescrever um modelo, um passo a passo, a ser seguido para obter uma decisão bem justificada153.

MacCormick explica a importância que dá à teoria da argumentação jurídica, pois atribui à qualidade desta última um parâmetro avaliativo para medir a qualidade do Estado de Direito. Explica seu pensamento da seguinte forma:

(...) parece-me que o dever que os juízes têm de mostrar fidelidade ao Direito nos seus detalhes, e mesmo o Estado de Direito (rule of Law) em geral, são mais bem realizados no contexto de justificações cuidadosamente construídas, fundamentando as decisões judiciais. Afirmações de razões superficiais, simplesmente recitando uma regra e imputando um significado a ela no contexto dos fatos de um caso, são insuficientes. Sempre que as partes de um caso litigioso levantarem argumentos sérios sobre problemas de interpretação, ou de classificação, ou de relevância, ou de prova, é importante que a corte responda séria e cuidadosamente e leve em conta, na sua decisão, argumentos dos tipos que expliquei. Isso não garante, claro, fidelidade ao Direito, mas tende a favorecê-la.154

Situado o objeto da teoria da argumentação jurídica, bem como revelada a contribuição que dela pode vir para o aperfeiçoamento das decisões judiciais, aos propósitos desse trabalho, importa agora conhecer com mais detalhes o pensamento de Neil MacCormick sobre a aceitabilidade das consequências nas decisões judiciais e em que medida as decisões podem ser justificadas ou tomadas como corretas a partir de suas consequências.

2.1.2. Um consequencialismo “decisivo” comprometido com a coerência e a