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O cristianismo e a separação entre Direito e Religião

Capítulo I. O Direito e seus rituais no berço da Religião

9. Uma primeira tentativa de secularização: Os primeiros filósofos

9.3. O cristianismo e a separação entre Direito e Religião

Flávio Josefo (37 - 103 d.C) ao lado de Heródoto, o pai da história, é considerado o primeiro escritor e historiador do início da nossa era. De Jesus diz Josefo:

Nesse mesmo tempo, apareceu Jesus, que era um homem sábio, se é que podemos considerá-lo simplesmente um homem. Ele ensinava os que tinham prazer em ser instruídos na verdade e foi seguido não somente por muitos judeus, mas também por muitos gentios. Ele era o CRISTO. Os mais ilustres dentre os de nossa nação acusaram-no perante Pilatos, e este ordenou que o crucificassem. Os que haviam amado durante a sua vida não o abandonaram depois da morte. Ele lhes apareceu ressuscitado e vivo no terceiro dia, como os santos profetas haviam predito, dizendo também que ele faria muitos outros milagres. É dele que os cristãos, os quais vemos ainda hoje, tiraram o seu nome (JOSEFO, 2004, p. 837).

Jesus é a personagem central da história da Igreja cristã. Entre as fontes historiográficas estão representadas as epístolas que relatam a história das comunidades cristãs, notadamente pelos quatro evangelhos e a fonte Q19. O exame aprofundado do Jesus histórico é muito bem explicitado nas obras dos estudiosos John Dominique Crossan e John P. Meyer.

19A fonte Q (também conhecida como documento Q ou apenas Q, sendo que a letra "Q" é uma abreviatura da

palavra quelle que, em língua alemã, significa "fonte") é uma hipotética fonte usada na redação do Evangelho de Mateus e no Evangelho de Lucas.

Mesmo com a morte de Jesus, a centralidade da religião para seres humanos manteve- se viva. Religião, Direito e governo continuaram imbricados em suas formas, mas a religião foi sempre a detentora da força organizadora da sociedade sobressaindo-se à política e o Direito.

Com o advento e a expansão do cristianismo e com a doutrina da fé cristã, os princípios e regras da organização social foram modificados. "Esta religião gera o Direito: as relações entre os homens, a propriedade, o patrimônio, o processo, tudo fora regulado, não por princípios de equidade natural, mas pelos dogmas dessa religião, só atendendo as necessidades do seu culto" (COULANGES, 1981, p. 393).

O Estado de outrora sob a vigência da lei santa da vida privada e pública foi modificado com o cristianismo.

Vimos que o fenômeno da mudança é próprio da sociedade. Esse fenômeno lentamente introduz com o cristianismo inovações no governo e no Direito e, óbvio, nas crenças.

Aquele modelo dos séculos precedentes se esvai. De encontro com o cristianismo, o modelo já não é mais uma união indissolúvel entre o Direito, a Política e a Religião doméstica.

O cristianismo é a religião que não tem domicílio, pois a ideia da universalização do Deus único não estabelece diferenças entre judeus e gentios, estrangeiros e marginalizados, não se faz pertencente a uma casta ou a uma corporação. Desde o seu início, o cristianismo, chama a si toda a humanidade e universaliza a filosofia que ensina que o Deus do universo recebe indistintamente a homenagem de todos.

A religião deixa de ser um patrimônio sacerdotal hereditário com o cristianismo. Jesus é o propagador da distinção entre o Direito e a Religião, ele deixa registrado pelo princípio da oralidade a força do seu testemunho: "dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus". As palavras de Jesus levantaram outros vieses pela primeira vez na história da política onde Deus fora distinguido do Estado. Cesar como sumo pontífice era o chefe e principal órgão da religião romana, o guarda e o intérprete das crenças, que reunia em suas mãos o culto e o dogma. Ora, a ordem de dar a Cesar o que é dele (o governo político) e a Deus o que é dele (o campo religioso) trouxeram consequências irreversíveis para as relações do povo com o governo, pois o cristianismo não se ocupava dele. Jesus deixava o ensino de que o reino dele não era deste mundo e separava a lei e a justiça, visto que seus ensinamentos não era o de obedecer a Cesar, sim o de obedecer a Deus.

A religião que professava nada existir de comum entre o Direito e Religião, separa tudo quanto toda antiguidade fundira. O cristianismo acabara com os pritaneus, eliminara as divindades políadas. Coulanges diz que foram três séculos seguidos de separação, a nova religião vivia completamente fora da atividade do Estado. E provou indistintamente que pode viver sem a proteção do governo e muito bem lutar contra ele. Por isso cristãos eram caçados e condenados como ateus, isto é, contrários ao deus César e seus deuses.

A Religião teve um poder de organização inimaginável! Por um lado, o governo se libertava de regras severas da antiga religião. A política tornava-se independente e se regulava, apenas sob a autoridade da lei moral. Por outro lado, o Estado perdia parte do seu público, pois o cristianismo apregoava que o ser humano pertencia à sociedade apenas por uma parcela de sua personalidade que estava sujeita à sociedade pelos interesses materiais e pela presença corpórea. O cristianismo foi a fonte que brotou para a liberdade individual, pois uma vez liberta a alma, o difícil era realizável. O poder da liberdade apregoada pelo cristianismo, mostrou mais uma vez a força organizadora da religião cuja a liberdade tornara- se possível dentro da ordem social.

O Direito enveredou por outros caminhos e mudou a sua natureza de devoto à Religião e recebedor de suas normas. A emancipação do Direito da Religião fez com que este buscasse as suas regras na natureza, na consciência humana, na moral, na concepção do justo que existe em cada ser humano. O Direito pôde desenvolver-se e reformar-se com liberdade para acompanhar a senda do progresso da moral que se curvava aos interesses e às necessidades sociais.

A emancipação do Direito da Religião não a isentou de criar suas regras. Ela continua criando o seu próprio direito religioso, que posteriormente tornará direito canônico que legisla sobre a vida religiosa cristã. O cristianismo não tinha a pretensão de regular o direito civil. Não vemos o cristianismo instituindo regras de propriedade, sucessão, processos e obrigações, pois ele se colocava fora do Direito profano e acima das coisas puramente terrenas.

A nova concepção do cristianismo influiu na história do Direito Romano que já trabalhara por libertar-se da Religião. A medida que o cristianismo conquistava a sociedade, os códigos romanos forjavam novas leis. A antiga constituição de regras de família era extinta, o pai perdia a autoridade sacerdotal e lhe era conferido somente a educação dos filhos. Assim, sucessivamente, o Direito foi gradativamente conquistando com a religião cristã, a sua autonomia.

Entretanto na Idade Média cristã teocrática, cristianismo e Direito voltam a se unir e se confundir em seus rituais religiosos e judiciários.