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O símbolo no processo judiciário como expressão do sagrado

Capítulo III. Rito, Ritual no judiciário contemporâneo em geral e no tribunal do júri:

5. O símbolo no processo judiciário como expressão do sagrado

Segundo Jean Chevalier Alain Gheerbrant o símbolo exprime, de modo indireto, figurado e mais ou menos difícil de decodificar, os desejos ou os conflitos do processo. "Desde que um símbolo seja vivo, ele é a melhor expressão possível de um fato" (GHEERBRANT, 2007, p. 22).

A história do símbolo atesta que todo objeto pode revestir-se de valor simbólico, seja ele natural (pedras, metais, árvores, flores, frutos, animais, fontes, rios e oceanos, montes e vales, planetas, fogo, raio etc.) ou abstrato (forma geométrica, número, ritmo, ideia etc.) (GHEERBRANT, 2007, p. 21).

Alguns destes objetos simbólicos são privilegiados no processo ritual jurídico.

O ritual mergulha no símbolo e o símbolo é uma forma primordial de conhecimento. Essa junção entre Religião e processo jurídico remete-nos ao símbolo que é o elo que a cultura instaura entre um ser concreto, animado ou não e uma ideia que esse ser representa. O simbolismo já estava no seio do pensamento selvagem, dos povos primordiais, das civilizações sem escrita. Ele atravessou séculos e civilizações para continuar habitando grande número de registros culturais, populares ou eruditos.

Na cena judiciária com seus cenários e rituais, a função simbólica é bastante notória. Foi dado ao símbolo um lugar importante no estudo do Direito que o assimilou da consciência popular, assim como assimilou o mito.

Segundo Garapon,

Com o templo e o aparecimento da justiça enquanto alegoria, cujo exemplo mais popular é a sua representação sob a forma de uma mulher com os olhos vendados, transportando na mão um gládio e na outra uma balança, a simbólica judiciária se configura (GARAPON, 1997, p. 31).

Figura IX63

63 Figura IX: Foto da internet (VEJA, 2011). Escultura localizada em frente ao Tribunal Federal de Brasília -

A balança no mundo do Direito é conhecida na qualidade de símbolo da justiça, da prudência, do equilíbrio, cuja função é a "pesagem" dos atos. Associada à espada, a balança simboliza também justiça e a verdade da lei. Constitui o símbolo do julgamento e a manifestação da aceitação precedente da Justiça divina como seu fundamento.

Figura X64

De fato o judiciário preza essa simbologia que confirma o marco da deusa da justiça na sustentação das decisões jurídicas. Assim, podemos ver nos símbolos do Direito a herança dos tempos arcaicos, o material primordial a partir do qual os juristas clássicos, na prática forense e no ato jurídico construíram a maioria dos conceitos e dos instrumentos do Direito.

Nessas fontes simbólicas bebem as ciências jurídicas, continuam a elas recorrendo até na atualidade. Como prova temos os emblemas ainda presentes no poder judiciário. O símbolo constitui atrativo na prática contemporânea do poder judiciário e até hoje é um componente da sua história e arqueologia. Nada marca melhor o aspecto social do judiciário do que o simbolismo com seus sinais como: gestos, palavras, fórmulas, discursos, locais separados, cinto, martelo, ofícios, timbres, logo, brasão, número três e muitas outras simbologias ao lado dos conceitos jurídicos mais em voga.

Retomando as posições da escola sociológica de Durkheim e Mauss trabalhada no capítulo primeiro, quando tomamos por objeto períodos antigos, como a Idade Média ou antigas civilizações precursoras da cultura ocidental, observamos que a história jurídica é sobretudo uma história de textos não excluindo-se o gesto, a imagem, o rito e o símbolo. Assim a questão simbólica do judiciário suscita considerações científicas que não devem ser subestimadas.

A experiência do passado mostra que o símbolo suscitou fascinação dentro do saber jurídico que foi construído no seu bojo. Tomemos como exemplo o efeito translativo de uma propriedade em um contrato de venda que confere legitimidade pela entrega solene de um bastãozinho, de um galho, um torrão ou qualquer outro objeto capaz de representar o contrato. A estrutura simbólica ganha a sua atualidade no rito. É no cenário e nos ritos da justiça que sua presença é mais patente. A cerca de madeira nos rituais do judiciário da Idade Média, ainda hoje está presente em numerosas salas de tribunal. Suas diferentes denominações, barra ou cancela, foram aplicadas ao longo do tempo, conforme veremos nos itens seguintes.

O simbolismo do Direito reflete a sacralização da justiça. Embora não faça menção explícita ao sobrenatural apela à ele e à sua grandeza que compõe temor e reverência. Por isso Garapon afirma que a linguagem simbólica e o "espaço judiciário constitui um espaço sagrado" (GARAPON, 1997, p. 40).

O símbolo associa a necessidade de reconstituir uma cadeia de associações que o torna significativo dado o seu caráter polissêmico. "O simbolismo65 do judiciário foi buscar muitos dos seus elementos na mitologia, na Bíblia, na história, entre outros domínios" (GARAPON, 1997, p. 27). O judiciário cristianizou-se à medida que a Igreja foi afirmando o seu poder, depois emancipou-se do espaço religioso explícito a para se tornar expressão de uma instituição autônoma. Mesmo assim o registro a inspirar a justiça continuam sendo o simbolismo religioso. O ritual do judiciário não cessou de recuperar o simbolismo religioso para dele e nele firmar seus marcos.

Contrariamente a uma ideia muito em voga, o seu objetivo era não tanto consagrar

in globo uma nova ordem jurídica mas sim mostrar os seus limites, não tanto

65 Segundo Antoine Garapon há diversos registros, cosmológicos, mitológicos, religiosos, históricos que

confundem-se nos edifícios, como ficou demonstrado por um recente estudo feito sobre o Palácio da Justiça de Paris. Para mais informações ver Bem Julgar: Ensaio sobre o ritual judiciário. Na história da arquitetura judiciária francesa, a principal mudança foi iniciada simbolicamente na primeira metade do século XVII com a construção do palácio do Parlamento da Bretanha em Rennes. Prosseguiu com campanhas de construção do século XVIII e, sobretudo, do século XIX. O triunfo do neoclássico exemplifica a procura de uma justiça mais elevada, menos abordável que impressiona e abriga o respeito.

divinizar a justiça humana mas sim recordar à humanidade uma função que continuava a ser de essência divina (GARAPON, 1997, p. 29).

A natureza do símbolo anima os conjuntos do imaginário jurídico: arquétipos, mitos, estruturas. Ele permanece na história e na prática. A partir dele se estabelecem os fatos, os objetos, os sinais, as relações extra-racionais, imaginativas, entre os níveis de existência e entre os mundos cósmico, humano, divino. Resumidamente, o símbolo exerce função de substituto e de mediador, "estende pontes, reúne elementos separados, reúne o céu e a terra, a matéria e o espírito, a natureza e a cultura" (GHEERBRANT, 2007, p. 27).

Da perspectiva de Gheerbrant, o comportamento simbólico possibilita reagir aos estímulos pelas significações que adquiriram em experiências anteriores, sendo até possível falar de uma natureza representativa dos estímulos e padrões de reações. O símbolo reforça a prática judiciária na medida em que esta reage e incorpora seus estímulos pelo significado que adquiriram em experiências passadas e na medida em que os padrões de reações ou comportamentos têm significados além dos diretamente manifestados. Por isso, são símbolos. O símbolo induz um modelo de comportamento padronizado.

Ele pode ser considerado como um estímulo para uma reação condicionada; o símbolo condiciona e envolve a consciência. Assim adquire importância no processo social e judiciário quando se direciona à coletividade. Linguagem, bandeiras, práticas religiosas, todos representam um simbolismo socialmente compartilhado. O simbolismo coletivo sob a forma de emblemas ou de ações expressivas reforça a manutenção da ordem coletiva.

Como vimos nas reflexões de Croatto e Terrin, há estreita ligação entre o ritual e o mito. Ela acontece também nos rituais do processo judiciário. É o que veremos a seguir.