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Os rituais dos tribunais da Inquisição A fundação

Capítulo I. O Direito e seus rituais no berço da Religião

10. Religião e Direito na Idade Média

10.2. Os rituais dos tribunais da Inquisição A fundação

20A iconografia (do grego "Eykon", imagem, e "graphia", descrição, escrita ) é uma forma de linguagem visual

que utiliza imagens para representar determinado tema. A iconografia estuda a origem e a formação das imagens. Na indústria editorial, a iconografia é a pesquisa e seleção das imagens que serão publicadas em um livro, seja como tema principal da obra ou como complemento de um texto. A pesquisa iconográfica pode enriquecer um texto sobre um período histórico com imagens de esculturas, obras arquitetônicas, quadros ou fotografias de pessoas. O pesquisador iconográfico pode ser funcionário da editora ou um profissional independente. A iconografia de uma obra editorial é o conjunto das imagens que integram essa obra, seja um livro, série ou coleção.

21O retábulo de Gand refere-se a um políptico complexo e de grandes dimensões do século VX, do período

inicial da pintura flamenga. O retábulo é composto por doze painéis. Ver Jean Delumeau.

22 As opiniões heréticas envolviam os "erros" luteranos, a incredulidade, a rejeição dos dogmas e dos

Segundo Bethencourt, no século XV, o papa Sisto IV redigiu a bula Exigit sincerae devotionis affectus" em respostas às petições do reis católicos da Espanha. A esta bula atribuía-se informações de ritos, desenvolvimentos e práticas de heresias, bem como, autorização aos reis23 para nomearem inquisidores, entre prelados, religiosos ou clérigos com mais de quarenta anos, bacharéis ou mestres em teologia, licenciados ou doutores em direito canônico, para presidirem cada uma das cidades ou dioceses dos reinos.

Em Bethencourt, verifica-se a nítida convergência entre os reis e a Igreja. A prática confirmada e legitimada pela Inquisição como um tribunal eclesiástico funcionou com poderes delegados pelo papa. "É evidente que os ritos de fundação dos novos tribunais de distrito se tornam mais complexos e que o apoio do rei é mais formal e explícito" (BETHENCOURT, 2000, p. 21).

Nos ritos descritos e fixados nos manuais da Inquisição do século XV, constata-se o enraizamento de um tribunal que assinala a rapidez da sistematização das experiências e o esforço de centralização dos procedimentos de fundação e de ação inquisitorial. Bethencourt informa que certas rupturas refletiram a solenidade dos ritos de fundação por terem sido os inquisidores nomeados pelos reis que assumiam a responsabilidade de criação do tribunal e não a Igreja. Os ritos24 de fundação refletiram também a centralização política do reino.

Os delitos religiosos e morais sob a jurisdição inquisitorial eram praticamente os mesmos em todos os tribunais. Dentre as bulas encontravam-se delitos de heresias como feitiçaria, bigamia, adoração ao demônio, violação do sacramento do matrimônio, desprezo pelos sacramentos da Igreja e proposições heréticas que contestavam a virgindade de Maria, a divindade de Cristo e outros correlatos. As bulas difundiam os argumentos régios sobre a difusão de crenças e ritos e atribuía o desenvolvimento de heresias à tolerância dos bispos.

No caso dos relapsos, Peña resume as bulas Cum quorumdan hominum, de 1555, e

Cum ex apostolatus officio, de 1558, segundo as quais o acusado deveria ser entregue imediatamente ao braço secular ao incorrer pela primeira vez em certos delitos específicos: negação da Trindade, da divindade de Cristo, da maternidade divina da Virgem Maria (BETHENCOURT, 2000, p. 32).

Os ritos de fundação revelaram traços estruturais e informaram condições institucionais específicas em que os tribunais trabalhavam. A fundação de um tribunal era um processo que não se limitava à abertura da ação do tribunal em um dado território, ao

23 Os poderes concedidos aos príncipes foram um acontecimento que deu permissão ao Reis Católicos de

nomearem, revogarem e substituírem inquisidores. Observa-se um transferência de competência nesta bula.

24 Os reis se faziam presentes nas cerimônias de fundação de novas instituições mas não apresentavam a bula às

autoridades civis. Neste sentido, a própria coroa se encarregava da apresentação da bula ao nomeado e criava suas próprias condições de sobrecarga de ritos de fundação.

contrário, compreendia a criação de tribunais de distritos, de nomeações de inquisidores, elaborações de regras de funcionamento interno e de conflitos.

O organograma da fundação de um tribunal pressupunha um conjuntos de sistemas para a eficácia de seus ordenamentos. Assembleias eram realizadas, conhecimentos eram sistematizados e elaborados com tipologias heréticas. Formulários de ritos orientavam ações judiciais e cópias de manuais com integrações de novas heresias eram tidos como guias de ações.

O tribunal da fé foi um instrumento importante nas mãos papais que conservou o poder da Igreja e forçou esse poder perante bispos e autoridades civis. Inclusive cardeais eram informados de todos os pormenores das atividades de um inquisidor, por outro lado, forneciam instruções precisas sobre formas de resoluções de conflitos, despesas dos tribunais, livros proibidos, jurisdição etc. Os cardeais mantinham os inquisidores informados sobre os assuntos da cúria.

A Inquisição estabeleceu-se em um mundo ibérico como uma organização relativamente autônoma e hierarquizada. Suas fórmulas revelam traços da complexidade daquele sistema jurídico. "Todas as atividades dos tribunais de distrito estavam previstas nos regulamentos e nas instruções internas, em disposições reforçadas por diretrizes precisas emanadas dos conselhos gerais" (BETHENCOURT, 2000, p. 38). Todos os problemas de todos os tribunais eram inventariados e analisados em suas situações político-religiosas e territoriais. Os Inquisidores-gerais eram investidos de autoridade e suas funções eram cumulativas, ou seja, eram "nomeados" politicamente como governadores do Reino.

Quanto ao rito de investidura de um Inquisidor-geral dava-se o norte de suas funções a de controladores de tribunais de distrito. Havia também instâncias superiores. Era papel do tribunal de recurso dar casos reservados ao Inquisidor-geral, cujas lides versavam sobre controle de processos, autos de fé, decisões sobre comunação das penas, cauções e apelações. Era um regimento central, reforçado pelo poder que clarificava a função e a figura do Inquisidor-geral nomeado e reconhecido pelo papa.

O regimento jurídico era um monumento que incluíam numerosas regras e deveres de conduta para os funcionários, principalmente da organização administrativa e sistematização de ritos. Exauria-se uma legislação interna e externa com bulas, breves e diplomas, ordens do inquisidor-geral, consultas do conselho, cartas acordadas. "A cultura administrativa inquisitorial é uma cultura baseada na classificação e na identificação. Em primeiro lugar, a classificação das heresias, que seguem os tratados específicos publicados desde as últimas décadas do século XV" (BETHENCOURT, 2000, p. 49).

Familiares de inquisidores também desempenhavam funções de representação e eram convidados a serem comissários responsáveis para prender e transportar presos, bem como, acompanhar esses presos nos autos da fé. Os comissários eram clérigos delegados dos inquisidores distritais. Eles delegavam os inquéritos, recolhiam denúncias, ouviam testemunhas e controlavam a entrada de livros. Por serem clérigos, suas intervenções eram eficazes no âmbito da justiça eclesiástica. "Eles eram, verdadeiramente, os delegados dos inquisidores, os seus olhos e os seus braços" (BETHENCOURT, 2000, p. 66).

Burocraticamente, cardeais eram livres do trabalho administrativo e de instrução de processos, ocupavam-se estritamente de tomada de decisões sobre nomeações, finanças, conflitos de jurisdição, relações com autoridades civis, classificações de heresias, uniformizações dos éditos da fé e produções de sentenças. Aos comissários cabiam às funções de adjunto dos cardeais, aos quais eram encarregados de receber denúncias, ordenar detenções, instaurar processos e zelar pela boa administração da casa do Santo Ofício.

A Idade Média inquisitorial foi o período em que a prática ritualística se confirmou e se legitimou com o tribunal eclesiástico que funcionou com os poderes delegados pelos papas. Foi a época em que deu-se explicitamente o entrelaçamento formal entre a jurisdição eclesiástica e a jurisdição civil.

Os ritos de fundação dos tribunais da inquisição eram centrados na recepção das instituições de autoridades civis e eclesiásticas, espaço onde o movimento era carregado de conteúdo simbólico.

Várias resistências foram suscitadas à época da instauração dos tribunais da inquisição, inclusive argumentos importantes apresentados pelos opositores do Santo ofício, quer sejam: o caráter arbitrário (parcial) do tribunal, o segredo do processo e a injustiça do confisco de bens, que excluía da herança os filhos inocentes, reduzindo à miséria as famílias dos condenados. As resistências conheceram desenvolvimentos diferentes em função do contexto, mas o resultado geral foi sempre o mesmo: o enraizamento judiciário.

Ritos de fundação de tribunais distritais25 eram regulados e suas bulas diziam respeito aos processos e às penas. O povo era convocado mediante o édito para ouvir o sermão da fé na igreja principal do lugar.

25 Em 1484 havia apenas oito tribunais de distrito criados nas regiões periféricas ou mesmo de fronteira (Sevilha,

Córdoba, Valência, Saragoça, Jaén, Ciudad Real, Barcelona e Teruel); até 1493 a Inquisição espanhola estabeleceu mais quinze tribunais de distrito, passando das periferias para as zonas centrais da península Ibérica (BETHENCOURT, 2000, p. 23).

Nessa cerimônia, todos os fieis, de mãos levantadas perante a cruz e os Evangelhos, prestariam o juramento público de favorecer a ação da Inquisição e dos seus ministros. O juramento das autoridade da cidade era objeto de um tratamento especial, sendo registrado em um documento notarial com as respectivas assinaturas. Na mesma cerimônia era publicado um monitório com os crimes que deviam ser denunciados ao tribunal e com as respectivas censuras em caso de omissão (BETHENCOURT, 2000, p. 23).

A maior parte dos ritos descritos já estavam fixados nos manuais da Inquisição do século XIV, "O de Bernard Gui, escrito por volta de 1324, coloca o juramento das autoridades durante a cerimônia de publicação das sentenças, cerimônia que compreendia a imposição de penitências e indulgências" (BETHENCOURT, 2000, p. 23).

Os ritos de fundação da Inquisição em Portugal não se revelam muito diferentes, onde os bispos, religiosos e clérigos formados em teologia ou direito canônico eram nomeados também como inquisidores. Cartas eram expedidas em favor do Santo Ofício. Os reis enviavam aos infantes, duques, marqueses, condes, regedores de Justiça, corregedores, juízes, senhores de terras, meirinhos, cavaleiros e vassalos, pedindo-lhes autorização para execução das fórmulas dos inquisidores gerais.

Urge que a normalização das relações hierárquicas do tribunal foi estabelecida juridicamente pelas instruções de 1541 e pelo regimento de 1552 com o apoio do poder central no papa que concedia subvenções regulares e liberação de novas casas para a instalação de tribunais, geralmente localizados no coração da cidade.

Voltando à Inquisição Romana, as motivações se concentravam na conservação da pureza da fé contra a heresia que ameaçava a ruptura da Igreja cujo poderes religiosos eram delegados aos clérigos formados em teologia ou direito canônico. Assim, a Congregação do Santo Ofício instaurava e concluía todos os processos de heresia.

"A Congregação do Santo Ofício foi a primeira a ser referida, seguida pelas congregações do índex, da execução e interpretação dos decretos do concílio de Trento, dos bispos, dos regulares, dos novos bispados, do édito da graça, dos ritos, da tipografia etc." (BETHENCOURT, 2000, p. 28).

Considere-se que das razões da manutenção da unidade do Império brotavam a defesa da fé. A inserção do poder político na Igreja católica se fez por meio da influência das nomeações de papas e bispos, de doações e de reservas territoriais à custa da perda de liberdade interna da Igreja. Neste período verifica-se o poder emanado do Papa-Rei.