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O debate acerca do conceito de coprodução cinematográfica internacional

CAPÍTULO 1 OBJETO DE PESQUISA E FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.1 O debate acerca do conceito de coprodução cinematográfica internacional

Folheando o Diccionario de cine do jornalista, crítico cinematográfico e pesquisador cubano Rodolfo Santovenia, obra publicada pelo Instituto Cubano del Libro, que compramos, diga-se, por vinte e cinco pesos cubanos, numa pequena feira de livros usados numa praça de Havana, deparamo-nos com o seguinte significado para o termo “coproducción”:

Associação de produtores, pertencentes a vários países, para produzir conjuntamente filmes, os quais se realizaram em tantas versões qunato nações participantes. Este sistema oferece, no terreno econômico, a vantagem de permitir um aporte suplementar de capitais e assegurar a exibição nos países coprodutores, com todos os benefícios financeiros previstos por cada legislação. França e Itália foram os pioneiros desta fórmula, com resultados muito positivos. Hoje se aplica em todo o mundo. (SANTOVENIA, 2006, p. 57, tradução nossa).

Curiosamente, com a mesma sebista ambulante, encontramos também os tomos I e II de La sala oscura (1982), do professor e crítico cinematográfico cubano Mario Rodríguez Alemán. Nessa obra, com trinta e quatro anos de uso, publicada pela União de Escritores e Artistas de Cuba, fomos presenteadas com a nossa primeira informação sobre o filme O canto dos rios (El canto de los ríos/ Das Lied Der Ströme), documentário realizado em 1954 com a participação de operadores de trinta e dois países, que colaboraram com o diretor holandês Joris Ivens. Segundo Alemán, O canto dos rios:

significa uma das contribuições de cooperação internacional mais extraordinárias que já foi realizada na história da cinematografia. Quatro grandes artistas (Ivens, Brecht, Shostakovich e Robeson), assim como dezenas de cinegrafistas, em um ato de solidariedade com a luta dos proletários para romper com as cadeias de exploração de uns poucos sobre muitos, se uniram para cantar ao homem, para denunciar as chagas do mundo, para demonstrar com a força das imagens como é a vida junto às correntes de seis grandes rios da terra: o Nilo, o Mississipi, o Amazonas, o Yangsté, o Ganges e o Volga. (ALEMÁN, 1982, p. 344, tradução nossa).

Seis décadas depois dessa grande realização, em termos de união de artistas em prol da realização de uma obra, e apenas dezessetes anos após a escrita do significado de coprodução exposto naquele dicionário de cinema, quais as semelhanças e diferenças que podemos encontrar no conceito de coprodução cinematográfica internacional contemporâneo? Primeiramente, a legislação vigente no Brasil define coprodução internacional como um filme que vise prioritariamente à exibição em sala de cinema, realizado entre um ou mais produtores independentes brasileiros em parceria criativa e financeira com um ou mais

produtores de um ou mais países. A obra deve, ainda, estar em consonância com um acordo de coprodução cinematográfica firmado pelo Brasil ou, se fora do abrigo de um acordo, deve estar enquadrada no que determina a alínea “c” do inciso V do artigo 1º da Medida Provisória 2.228-1 (BRASIL, 2001), que, entre outros assuntos, estabelece os princípios gerais da Política Nacional do Cinema:

[...] ser realizada, em regime de coprodução, por empresa produtora brasileira registrada na ANCINE, em associação com empresas de outros países com os quais o Brasil não mantenha acordo de coprodução, assegurada a titularidade de, no mínimo, 40% (quarenta por cento) dos direitos patrimoniais da obra à empresa produtora brasileira e utilizar para sua produção, no mínimo, 2/3 (dois terços) de artistas e técnicos brasileiros ou residentes no Brasil há mais de 3 (três) anos. (BRASIL, 2001).

Uma nova metodologia aplicada pela Agência Nacional do Cinema, a partir de 2013, provocou mudanças significativas para se refletir sobre o conceito de coprodução cinematográfica internacional. A ANCINE passou a considerar coprodução internacional apenas as obras que atendem a três critérios simultâneos: 1) Longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas do Brasil; 2) Registro de Produto Brasileiro (CPB) expedido pela ANCINE; 3) Informação de coprodutor estrangeiro constando no CPB. Além disso, a agência passou a não considerar coproduções internacionais obras que tenham apontado como coprodutor estrangeiro empresas que aportaram recursos através dos mecanismos de incentivos fiscais previstos nos arts. 3° e 3° - A da Lei do Audiovisual ou Lei Federal nº 8.685 (BRASIL,1993) e no art. 39, X, da Medida Provisória nº 2.228-1 (BRASIL, 2001), conforme o §3°, art. 2º da Instrução Normativa nº 106 (ANCINE, 2012).

Essas mudanças metodológicas da ANCINE não só aumentaram a zona de limite do que é considerada coprodução internacional, como também alteraram os dados quantitativos. Mesmo as obras lançadas anteriormente ao ano da nova norma foram excluídas do banco de dados do Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA), diminuindo assim o número de obras consideradas como coprodução pela agência reguladora.

O Acordo de coprodução cinematográfica entre Brasil e Argentina, assinado em 1988, diz:

Para os fins do presente Acordo, entendem-se por filmes de coprodução películas cinematográficas que superem 1.600 metros de comprimento, para os longa- metragens, e que não sejam inferiores a 290 metros, para os curta-metragens, no formato de 35 mm, ou de comprimento proporcional nos outros formatos, realizados por um ou mais produtores brasileiros conjuntamente com um ou mais produtores argentinos, em conformidade com as normas indicadas nos artigos subsequentes do presente Acordo, com base em um contrato estipulado entre coprodutores e devidamente aprovado pelas autoridades competentes dos respectivos Estados: pelo Brasil, o Ministério da Cultura – Conselho Nacional de Cinema e Embrafilme; e,

pela Argentina, a Secretaria de Cultura do Ministério de Educação e Justiça – Instituto Nacional de Cinematografia. (BRASIL, 1999a).

Outra abordagem essencial no conceito diz respeito aos usos do “modelo” de coprodução internacional, ou seja, aos objetivos práticos da coprodução na atividade cinematográfica. Quando perguntamos ao cineasta brasileiro Henrique Goldman, diretor do filme Jean Charles (2009), uma coprodução entre Brasil e Inglaterra, em entrevista realizada ainda no período do mestrado: “O que é mais forte na prática? O que tem pesado mais? Por que tentar fazer coproduções? Que setor mais ganha com elas: economia, cultura, política internacional?”, ele respondeu: “A coprodução para mim só faz sentido quando a história do filme se presta a isso” (GOLDMAN, 2012, p.193, em entrevista à pesquisadora). Já Erik de Castro, diretor do filme Federal, à mesma pergunta respondeu: “Acho que antes de tudo eles pensam na ampliação do mercado. E também em um intercâmbio cultural. Mas hoje o que se vê muito é essa visão de mercado.” (2012, p. 187)

Quando perguntamos, durante entrevista em setembro de 2014, “O que tem prevalecido nas coproduções internacionais? Coprodução mais como negócio, como troca cultural...?”, o cineasta Beto Rodrigues (2014) dá outro significado às coproduções, lembrando que elas têm um papel de contribuir com a continuidade da atividade. Usando uma ideia da Economia Política da Comunicação e da Cultura (EPCC), podemos dizer que as coproduções diminuem os riscos de aleatoriedade na indústria cinematográfica, como Rodrigues respondeu:

As coproduções como negócio são minoria, em que um país investe na produção de outro país porque vê ali uma forma de ganhar dinheiro. O resultado financeiro do cinema hoje, na esmagadora maioria dos filmes, tem uma perspectiva reduzida de lucros, então é muito difícil ter alguém que vai investir como se você tivesse aberto uma franquia do McDonald’s: se abrir num dia, no outro sabe que já estará vendendo 300, 500, mil lanches, conforme o ponto que abriu. Cinema não! Cinema tem um retorno lento. Às vezes, você investe um super tempo no filme, daí você lança no Brasil e dá apenas cinco mil espectadores, o que não dá dinheiro nenhum. Você vai vender para um canal de televisão no Brasil e eles te pagam vinte mil reais. Você não consegue estrear nunca em canal aberto. Daí você vai botar no video on demand, vai entrar a cada ano um pouquinho de dinheiro.... Não é lucrativo. Agora, se você produz filmes e não produz outros produtos audiovisuais sua produtora para. Então, [a coprodução] é uma forma de manter sua produtora ativa; é uma forma de criar repertório; uma forma de se tornar conhecido e, ao mesmo tempo, lhe remunerar durante a realização do produto. Porque quando se orça um filme, está lá o salário de quem está na produção do filme, porque se não, não ganha salário. Então, é uma maneira de manter a economia funcionando; não numa perspectiva primordial do lucro. Claro, existem exceções, obviamente. Se você vai produzir um filme sofisticado com Ricardo Darín, que é um nome internacional como ator, mais a Alice Braga, você já está com vendas internacionais em vários países, pré-vendas... Mas essa é a minoria da minoria dos filmes que são coproduzidos hoje. Então é uma forma de manter as produtoras ativas. Por isso, eles têm fomento público. Se não fosse o fomento público as coproduções realizadas na América Latina se reduziriam

a menos de 10%. Se dependesse apenas de financiamento privado, deixaria de funcionar, praticamente. (RODRIGUES, 2014, em entrevista à pesquisadora)

Quando solicitamos ao realizador português Tino Navarro (2015), que já realizou coproduções internacionais em parcerias profissionais e financeiras com diversos países, que ele nos apresentasse um panorama sobre as coproduções cinematográficas internacionais em termos globais, Navarro declarou que:

Cada coprodução é diferente de outra coprodução, não existe nenhum modelo internacional que possa ser reproduzido. Cada filme é cada filme. Cada filme tem suas necessidades, suas características e, portanto, pode ser objeto ou não de coprodução; e também, muitas vezes, depende se as coproduções são ou não necessárias. [...] É o que eu digo, tudo isso depende de filme para filme. Se um filme necessita ser filmado em vários países ou em dois países, é natural que se faça uma coprodução com esse país. Se o filme precisa de uma participação estrangeira por um motivo ou por outro, é natural que esse filme possa ser uma coprodução. Na maior parte dos casos, as coproduções ocorrem por razões financeiras. Ou seja, é uma maneira, digamos, de financiar ou cofinanciar parte dos filmes. (NAVARRO, 2015, em entrevista à pesquisadora)

Com o conjunto dessas referências, frutos da nossa pesquisa bibliográfica e das entrevistas realizadas, concluímos esse ítem introdutório do primeiro capítulo. De modo geral, consideramos útil destacar uma potencial dialética em torno das coproduções na Latinoamérica, notadamente por conta das ênfases dadas às pesquisas sobre o tema no Brasil, onde privilegia-se uma matriz teórica da economia política positivista, que tem olhares mais otimistas que desconfiados em torno das amplas possibilidades das coproduções cinematográficas internacionais como fonte de busca por viabilidade e sustentabilidade. Sobretudo em tempos de crises financeiras, quando mais claramente luta-se pela sobrevivência, na atividade cinematográfica não é diferente, mesmo tratando-se de produção de obras de baixo orçamento e de filmes “de autor”. Nesse caso, a busca por ponderação e um olhar mais atento aos contextos locais nos motivou a mergulhar nas especificidades das políticas públicas do Brasil e da Argentina de apoio às coproduções, o que retomaremos com mais detalhes no Capítulo 3.