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1.3 O DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA: DIFERENTES ENFOQUES

1.3.1 O Desenvolvimento da Escrita na perspectiva de Luria

Em 1929, o psicólogo Alexander Romanovich Luria publicou o artigo intitulado “O desenvolvimento da escrita na criança”, o qual descreveu os estágios de desenvolvimento da escrita através de pesquisas experimentais realizadas com crianças de quatro a nove anos de idade. Contudo, Rocco (2013), explica que dada à situação política soviética os estudos deste autor, permaneceram proibidos tanto no oriente quanto no ocidente, sendo divulgados a partir dos anos 60.

De acordo com este autor, antes mesmo de ingressar na escola a criança já adquiriu habilidades que nortearão o processo de escrita quando este lhe for apresentado, na educação formal, “podemos razoavelmente presumir que mesmo antes de atingir a idade escolar, durante, por assim dizer, esta “pré-história” individual, a criança já tinha desenvolvido, por si mesma, um certo número de técnicas primitivas, semelhantes àquilo que chamamos de escrita” Luria (1988, p. 144). Desse modo, o professor não deve considerar uma criança como uma “tábula rasa que possa ser moldada” (Luria 1988, p. 101), mas que esta já vem dotada de técnicas resultantes de sua interação com o ambiente.

Luria defendeu que para uma criança, a escrita esta impregnada de sentido, ou seja, precisa ter relação com algo que ela tenha interesse ou que goste como, por exemplo, um brinquedo. Assim, a escrita acontece culturalmente e tem a função de mediação, isso porque é através da utilização desta técnica, que a criança pode atingir um determinado objetivo, utilizando assim, a grafia como um instrumento. “A escrita é uma dessas técnicas auxiliares usadas para fins psicológicos; a escrita constitui o uso funcional de linhas, pontos e outros signos para recordar ou transmitir ideias e conceitos.” (Luria, 1988. p. 146).

Conforme Luria (1988, p.99),

Escrever é uma das funções culturais típicas do comportamento humano. Em primeiro lugar, pressupõe o uso funcional de certos objetos e expedientes como signos e símbolos. Em vez de armazenar diretamente

alguma ideia na memória, uma pessoa escreve-a, registra-a, fazendo uma marca que quando observada, trará de volta à mente a ideia registrada. Vale ressaltar, que o desenvolvimento da escrita não acontece de forma uniforme em todas as crianças e que este está intrinsicamente ligado as condições culturais e o ambiente em que o individuo está inserido. Durante sua pesquisa Luria definiu que,

O desenvolvimento das habilidades culturais de contagem e escrita envolve uma série de estágios nos quais uma técnica é continuamente descartada por outra. Cada estágio subsequente suplanta o anterior; só após ter passado pelos estágios em que inventa seus próprios expedientes e aprendido os sistemas culturais que evoluíram ao longo dos séculos, ela – a criança – chega ao estágio de desenvolvimento característico do homem avançado, civilizado. (Luria, 1988, p. 101).

Os experimentos de Luria iniciaram a partir do ditado de um grupo de seis ou oito sentenças simples, para que a criança tentasse recordar, as quais eram impossíveis relembrar de memória, e dada à situação entregava-lhes uma folha de papel e um lápis “lhe dizíamos para tomar nota ou “escrever” as palavras por nós apresentadas. É claro que, na maioria dos casos a criança ficava desnorteada com nossa sugestão. Dizia-nos não saber escrever, não ser capaz de fazê-lo” (Luria, 1988, p. 147).

Durante suas pesquisas Luria definiu duas grandes fases no processo de escrita: a fase não instrumental e a instrumental.

A fase “não instrumental”, refere-se ao período em que a criança buscava apenas recordar as palavras, ou seja, a partir da tentativa de usar um recurso mnemônico, dissociado dos rabiscos dispostos no papel, não atribuindo nenhum significado ao que escrevera, “para ela o ato de escrever não é um meio para recordar, mas um ato suficiente em si mesmo, um brinquedo” (Luria, 1988, p 149). Segue um exemplo de escrita de Lena L, de quatro anos de idade apresentado por Luria, que representa a fase não instrumental. Conforme Figura nº 1:

FIGURA Nº 06: Escrita de Lena apresentada por Luria

Fonte: Luria (1988).

Ao observar a escrita desta criança, Luria conclui que esta não tem nenhuma relação com as frases que foram ditadas, sendo consideradas pelo pesquisador, como rabiscos, ou “escritas não diferenciadas”, assim, para ele “escrever está dissociado de seu objetivo imediato...; a criança não tem consciência de seu significado funcional como signos auxiliares” e ainda complementa, “por não compreender o princípio subjacente a escrita, à criança toma sua forma externa e acredita ser capaz de escrever”. (Luria, 1988, p. 150). Está fase foi ainda descrita como o primeiro estágio da pré-história da escrita, ou melhor, “pré-escrita”.

Em um segundo momento da pesquisa, o psicólogo percebeu que durante seu experimento realizado com Brina, (cinco anos de idade), ela havia registrado as sentenças ditadas, dispostas em diferentes lugares no papel. Quando foi questionada sobre o que havia escrito a criança identificou com exatidão a sequência das frases, e essa identificação aconteceu, mesmo quando lhe fora perguntado por mais de uma vez, dizia Luria (1988, p.157), “esta criança está passando por um processo de criação de um sistema de auxílios técnicos da memória, semelhante à escrita dos povos primitivos”. Este padrão de dispor as sentenças em diferentes lugares no papel foi descrita como “sinais topográficos”, e de acordo com Luria (1988, p. 158), “esta é a primeira forma de escrita no sentido próprio da palavra[...]. Este é o primeiro rudimento do que mais tarde se transformará na escrita”.

Sentenças ditadas pelo pesquisador: 1. Há cinco lápis sobre a mesa. 2. Há dois pratos

3. Há muitas árvores na floresta. 4. Há uma coluna no pátio. 5. Há um grande armário

(escrita prematuramente). 6. A bonequinha (escrita

Contudo este modelo de escrita ainda é rudimentar e não diferenciado, apesar de já propor mudanças psicológicas na relação que o individuo faz com a escrita, é apenas um signo gráfico e não um símbolo simbólico que pode ser usado como um signo instrumental, descrevendo um significado.

A segunda grande fase descrita por Luria como “Instrumental” aconteceu a partir da inserção em seu experimento de forma e quantidade as sentenças ditadas, além da intervenção do pesquisador em orientar as crianças a representar no papel de forma que pudessem recordar, posteriormente, o que havia escrito. Assim as crianças tentaram representar no papel as frases ditadas utilizando recursos como cor, forma e tamanho, iniciando a fase pictórica da escrita.

A quantidade e a forma distinta levavam a criança à pictografia. Através destes fatores, a criança, inicialmente, chega à ideia de usar o desenho (no qual antes já era bastante boa) como meio de recordar e, pela primeira vez, o desenho começa a convergir para uma atividade intelectual complexa. O desenho transforma-se, passando de simples representação para um meio, e o intelecto adquire um instrumento novo e poderoso na forma da primeira escrita diferenciada. (Luria, 1988, p. 166).

A partir deste momento a criança descobre o uso instrumental da escrita utilizando os signos para representar as sentenças ditadas. De acordo com Luria (1988), por volta dos cinco ou seis anos o período da escrita por imagem estará desenvolvido, caso ainda não o aconteça, talvez este processo já tenha dado espaço a escrita alfabética simbólica, aprendida na escola ou mesmo antes de seu ingresso na educação formal.

A escrita pictórica evolui para a escrita pictográfica à medida que a criança se depara com sentenças que dificultam a representação gráfica no papel a partir do desenho. Nesse momento a criança utiliza dois recursos principais como estratégia para grafar o que fora pedido, “pode em vez do objeto A, anotar objeto B, que se relaciona, de alguma forma, com A. Ou simplesmente anotar alguma marca arbitrária em vez do objeto que acha difícil retratar” (Luria, 1988, p. 177). Sobre o uso da segunda estratégia, o autor destaca que, a escola e a instrução escolar influenciam neste uso de marcas arbitrárias.

Essa tendência à representação das sentenças apenas em parte e não totalmente, constitui a base para a escrita simbólica. Contudo destaca Luria, (1988, p. 179), “Um grau considerável de desenvolvimento intelectual e de abstração é necessário para que a criança seja capaz de retratar todo um grupo por uma ou duas características. Uma criança capaz de agir assim já está no limite da escrita simbólica”.

Na fase simbólica a criança já compreende que pode utilizar os signos para escrever algo, contudo ainda não compreende exatamente como isso acontece. “Esses dados revelam que a habilidade para escrever não significa necessariamente que a criança compreenda o processo de escrita” (Luria, 1988, p. 183).

Os experimentos de Luria demonstraram que o processo de desenvolvimento da escrita na criança, perpassa por diferentes estágios, iniciando com os rabiscos e garatujas indiferenciados, posteriormente, utilizando recursos gráficos para a diferenciação, a partir do uso de recursos pictóricos para recordar as anotações e seguindo em direção aos recursos pictográficos até chegar a fase simbólica da escrita, não sendo este último a etapa final do processo de desenvolvimento da escrita, mas o fim da pré-história da escrita, estudada por Luria, (1988, p. 188),

Uma coisa parece clara a partir de nossa análise do uso dos signos e suas origens, na criança: não é a compreensão que gera o ato, mas é muito mais o ato que produz a compreensão. Antes que a criança tenha compreendido o sentido e o mecanismo da escrita, já efetuou inúmeras tentativas para elaborar métodos primitivos, e estes são, para ela, a pré-história de sua escrita.

Este autor destaca “que uma criança, de inicio, assimila a experiência escolar de forma puramente externa, sem entender ainda o sentido e o mecanismo do uso das marcas simbólicas” Luria, (1988, p. 188). E complementa que, o desenvolvimento da alfabetização “envolve assimilação dos mecanismos da escrita simbólica culturalmente elaborada e o uso de expedientes simbólicos para exemplificar e apressar o ato de recordação”. (Idem, p. 188).